sábado, 3 de outubro de 2009

Nas Vielas Imundas do Amor Bálsamo

Coluna Aline Vilaça









Finda tarde quente, um grudentamente amido, da exótica,
porém muito nossa, ancestral de todos os corpos nacionais,
Bahia. Cai a noite, Só Salvador venta, pulsa, ao som de Gil,
ao som de Caetano, com arrepio dos tambores que ainda evocam,
alegram, entretem (quase sem sentido) e emocionam sempre que
ouvidos.


Só Salvador, de todos os santos.
Quais Santos? De todos os Orixás? De todas as Pessoas?
Quais as da rua?
Só Salvador de todos! Lindo, Lindo, Lindo...
Claro que é lindo!




Mas também roubada, roubada dos seus pelos outros. Invadida.
Estuprada. Violentada. Mascarada.


A Menina andava apaixonada pela arquitetura,
pela verdade natural das ondas, do céu e do verde, e da pele e
sotaque do nascido ali.
Sentada experimentando os sons instrumentais
da percussão solotero-afro- descendente, rindo com os amigos,
enquanto esperava o que saciar a fome.
Ela é parada, invadida, por um olhar que do outro lado da rua
a feria e instigava, permitiu que os olhos da senhora poetisa
de muleta e saco de latas na outra mão, se aproximassem
e trouxessem consigo aquele poder de olhos de fera, que feriu,
que emocionou.

Olhos de Sol, de Solange, moradora do Pelorinho,
com um tubo na garganta, mãos calejadas,
torcidas, contraídas, com o rosto
sofrido, surrado, queimado de sol, queimado de
dor, queimado de solidão, queimado de segregação
e lar roubado., queimado de sonhos em carne viva.
Fitou os olhos da Menina, que como ą todos a recebeu com um sorriso, apresentou-se como poetisa, estendeu a
mão aos amigos da Menina, em seguida começou a declamar
a magnitude singela verdadeira e necessária do Amor Bálsamo,
que acredita a Menina parecer com o que disse Djavan: apenas
"invade e fim". Amor Bálsamo que alimenta a alma.
Solange declamou com tanta verdade, devoção e
expressividade congelantemente ardente, que os
olhos da Menina logo se inundaram, e as lágrimas
correram desavergonhadas, desesperadas,
densas apenas por sentir a agressão de tamanha
expressão reveladora que permitidamente tocou a
pele da menina feito pétala e feriu feito espada
sem corte que rasga com resistência e
calma torturante.
Passados uma hora de conversa entre (segundo Solange)
Menina Iansã, os amigos em especial na conversa a
Amiga Exu, com Solange. A poetisa, catadora de latas,
pediu baixinho no ouvido da Menina com a desculpa que
não pede esmola, e sim, uma contribuição para poder
matar o que lhe deixa nervosa, matar a fome, que por vezes
quase lhe mata, e sim, um pagamento que julgaria o
reconhecimento de seu trabalho.
A Menina alegou só portar o dinheiro para voltar,
mas na verdade achou que só poderia retribuir
aquela inata poetisa se se entregasse ą ela
com tamanha profundidade, e julgou ser em si
sua forma mais submersa: a voz, e começou a
cantar.
Antes do refrão "que o dia termine bem"
a Menina já estava aos prantos novamente.
Mas forçou-se a continuar cantando, a resistir
aquele aperto profundo que sentia, aquele
desespero de sentir seu corpo aflito como se
aprisionasse a si mesmo, como que quisesse
não permitir tamanha emoção que estava explodindo.
E inesperadamente, a poetisa que já estava
a pressionar seu rosto contra o da Menina e a segurar
com força nas mãos as orelhas da Menina, começou
a chorar. Mais uma vez a Menina
impressionou-se com tamanha verdade.
Espantou-se ao ver seu canto sensibilizar
tal pessoa, que provavelmente não derrama
lágrimas. Por que no mínimo sua vida nas Vielas
da cidade que nasceu no mesmo dia, já roubara todas
as lágrimas desta mulher, poetisa, de mãos calejadas,
de bengala e latas que soube como ator nenhum
mostrar a intensidade do Amor Bálsamo, que
alimenta a Alma e justifica a razão enlouquecida de sobreviver.
Talvez a Menina não deveria conversar com estranhos,
ou dar confiança (como diz o popular) a qualquer um
que passa, mas acima de tudo ela aprendeu que
se respeita, se ama, e se valoriza a qualquer um
que passa, mesmo nas
Vielas Imundas do cartão postal Salvador!
Aline Serzedello Vilaça escreve aos sábados, quinzenalmente, no ContemporARTES.

2 comentários:

Anônimo disse...

Lendo seu texto tantas imagens e sabores cutucaram minha memória, do sol ardente que me deixou toda vermelha quando saia das ruas do Pelourinho e caminhava parte abaixo a procura da estátua do Castro Alves, caminhei, caminhei e dentro das deselegâncias discretas de Salvador... me apaixonei na Bahia, pela Bahia.


Os perfumes
(...) Escrínio aveludado onde se guarda
Colar de pedras — a beleza esquiva,
Espécie de crisálida, onde mora
A borboleta dos salões — a Diva.

(...)Alma das flores — quando as flores morrem,
Os perfumes emigram para as belas,
Trocam lábios de virgens — por boninas,
Trocam lírios — por seios de donzelas!

Castro Alves

Fabi
fa_s_f@yahoo.com.br

3 de outubro de 2009 às 20:45
Giliane disse...

Muito verdadeiro, deu pra sentir Salvador em seu poema. Você retratou muito bem, o lado que não é mostrado para os turistas, a verdadeira Salvador.

3 de outubro de 2009 às 20:47

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