terça-feira, 10 de novembro de 2009

Bar ContemporARTES - Cansaço / Outra vez











...palavras on the rocks, bacos e apolos, poetas e prosadores, anjos e demônios fazem encontros marcados para essa conversa de bar virtual. Sempre às 3a. feiras no ContemporARTES







O sol ia se pondo no Guaíba. Lento e sôfrego, como o ânimo de Justine. Já estou indo, avisou ela pelo telefone celular. Tristeza? Melancolia? Frustração? Não. Cansaço. Era cansaço que ela sentia. Aquele tipo de cansaço que uma noite de sono não tira. Desligou o laptop e espichou o olhar pra fora da janela. No céu, poucas nuvens imitavam ondas do mar. Só mais um pouquinho e estaria protegida na segurança e aconchego do colo da mãe. Será que Deus não havia se excedido no peso e tamanho da cruz? Tempos de treva e resignação, solidão e inércia, pensou consigo.

O elevador foi descendo um a um, os 14 andares. Boa noite, dona Justine, despediu-se o zelador. Até amanhã, respondeu a publicitária. Cara esquisito o zelador. Justine gostava de observar as pessoas e depois transformá-las em personagens de suas histórias. Nas horas vagas, distraía-se escrevendo contos, crônicas ou poesias.

O carro estava estacionado na outra quadra. Percurso florido, mas já perigoso àquela hora. Pensando bem, ser uma pessoa introspectiva, sensível, artista e observadora tinha suas vantagens... O charme do ar misterioso, por exemplo, quase blasè. Mas charmoso pra quem? Pergunta simples, resposta idem: pra todos e pra ninguém, em se tratando respectivamente de olhar e possuir.

Sentiu uma pressão no braço esquerdo. A ela seguiu-se uma ordem: continua caminhando, moça, e nada vai te acontecer. Assalto? Seqüestro? Estupro? Um frio percorreu o corpo inteiro de Justine. Não quero lhe fazer mal, disse o homem cujo rosto a moça preferiu não observar. O que ele iria querer? Dinheiro? O carro? Poderia levar tudo, ponderou ela. Mas por favor não me machuque, foi sua mais sincera súplica não verbalizada. Emocionalmente já estava em frangalhos... Pois que poupasse o físico, pensava ela em seu pânico silencioso...

Continue caminhando, disse ele em tom natural. Agora entre no carro e dê a partida. Ele sentou-se no banco ao lado. Não tinha pinta de criminoso. Vamos até o centro, disse resoluto.

Era assalto, concluiu ela. Em vez de levar os mil reais que estariam disponíveis no caixa eletrônico, ele poderia levar seus medos. Mas por que ele iria querer somente o dinheiro disponível pra saque? Poderia ser mais ambicioso, ou mal-intencionado.

Não tem rádio no seu carro?, o rapaz quis saber. Justine continuou dirigindo, sem desviar os olhos. Não; levaram, respondeu. Não seria nada mal se tivessem levado suas inseguranças, pensou.

É o seguinte, prosseguiu ele. Nós vamos até a Borges. Você estaciona próximo às escadarias. É seqüestro, ela concluiu. Que seqüestre minhas frustrações!, bradou ela em seu íntimo, sem deixar o nervosismo transparecer. Quis perguntar sobre as intenções do rapaz, mas desistiu. Não porque achara mais sensato, mas porque já começava a se sentir paralisada.

À medida que se aproximavam do local estipulado, ia aumentando no rapaz a ansiedade. Gesticulando as mãos, olhando para os lados, ele prosseguiu em suas ordens. Agora presta atenção, falou. Não quero surpresas. Não quero sobressaltos. Você está sendo vigiada por todos os lados. Você vai estacionar o carro, pegar essa maleta e entregar pra um cara de terno e gravata que conversa ao celular na Duque. Ok? Ok, confirmou ela. E depois?, perguntou. Depois você faz o que ele pedir, e estará tudo bem.

Justine quis gritar. Quis fugir. Quis sair correndo. Onde estava metida? Tráfico? Lavagem de dinheiro? O que teria na maleta? Dólares? Armas? Droga? Era só que faltava, pensou. Não bastassem todos os problemas, mais este agora! Tudo bem, confortou-se em silêncio. O que não te mata te deixa mais forte, pensou.

Pegou a mala e voou pelas escadarias. De soslaio, pôde observar a movimentação sobre o viaduto. Um homem de terno falava ao celular. Aproximou-se devagar, com respiração ofegante, quase sem sentir as pernas. Ele parou de conversar ao telefone, aproximou-se dela e deu dois beijos na face com naturalidade, como se fossem velhos conhecidos. Eu estou sonhando, pensava ela. Isso não pode ser verdade.

Alto e robusto, com um ar executivo, o homem pegou a maleta e em tom amável agradeceu pela gentileza. Abrindo a porta da BMW prata estacionada junto ao meio fio, perguntou pra onde ela ia e se queria carona. Não, obrigada. Tudo que ela queria era ir embora. Ele a olhou seriamente, como a águia que contempla sua presa.

Você não entendeu, disse outro rapaz que se aproximou vindo do outro lado da rua. Ele quer que você entre! Pegou-a pelo braço e a conduziu até o carro. Quando se aproximou do veículo, percebeu que haviam outros dois rapazes lá dentro. Um sentado no banco traseiro e outro no do motorista. É estupro, violação, concluiu. Se não fisicamente, pelo menos na psique. Estava sendo obrigada a fazer algo que não queria. Que não devia! Aliás, como em boa parte de sua vida. Por muito tempo agiu conforme as expectativas e sonhos dos outros. Há poucos anos descobrira o sabor do livre arbítrio e, sinceramente, ainda não sabia lidar bem com ele.

O que aconteceria se ela reagisse? Se não entrasse no veículo? Apanharia? Seria violentada? Seria morta? Um turbilhão de pensamentos agitou sua cabeça, enquanto o carro deslizava pela cidade já imersa na escuridão da noite. Resolveu tentar relaxar, quieta no banco de trás, quase acreditando na promessa de que nada lhe aconteceria.

Nem se atreva, falou um dos rapazes, quando fez menção de atender ao celular que tocava. Deve ser minha mãe, argumentou. Combinamos de jantar hoje. É o aniversário dela! O silêncio que se seguiu foi intimidador e Justine preferiu desligar o celular. Desistiu também de ter medo. De se importar com o que poderia acontecer. Desistiu inclusive de ter esperanças. Viver pra quê?

O carro continuou circulando. Ela conhecia cada rua, cada reentrância da cidade. Conhecia a alma das calçadas, das esquinas. Suspirou profundamente. Ao lado de três desconhecidos, acabou por esquecer de si mesma. Eram quatro fantasmas, quatro espectros, absortos em suas expectativas, ou ausência delas. Cadê a moça cheia de vitalidade e energia?, perguntou pra si mesma. Cabeça recostada no banco, viu sua vida passar pela mente como um filme. Trágico ou cômico? Nem trágico, nem cômico, porque em ambos o enredo seria repleto de tempero. Sua vida estava mais pra documentário, avaliou.

Divagando em pensamentos, Justine já nem ouvia mais os rapazes. Nesse momento, constituía o retrato perfeito da não resistência. Já havia inclusive perdido a noção do tempo em que estava circulando pela cidade. Tá com fome?, perguntou um deles. Fome? Ah, não. Nem de comida, nem de nada. Houve um tempo em que tinha fome, sim. Tinha sede. Tinha gula pela vida. Queria experimentar, aventurar. Nem o oceano representou limite. Do alto de seus quase quarenta anos, agora já não tinha certeza se o ano que passou fora do país serviu pra fugir da realidade ou pra efetivamente encontrá-la. Tem certeza?, perguntou novamente o rapaz. A noite vai ser longa, advertiu. Justine não respondeu. Todas suas noites eram longas. Não existe noite breve pra quem tem a solidão por companhia, sabia? A solidão castiga, maltrata, mata, tal qual o veneno dos escorpiões.

Em um posto de combustível, o automóvel pára. Um dos rapazes salta e logo retorna com biscoitos e refrigerante. Representação perfeita de seus maiores fantasmas, esses executivos. Sóbrios, alinhados... E guardavam um segredo. O que eles não sabiam era que ela também tinha um segredo. Seu, apenas seu. Até já tentara compartilhar com algumas pessoas, mas nenhuma entendera. Será que um dia teria a satisfação de conhecer alguém mais interessado em compreender, do que em ser compreendido? Por isso desistira de falar. Junto aos outros seres humanos, por vezes, seu silêncio fazia mais eco que dezenas de bits e bytes de poesias viscerais ou tentativas de diálogo. Pra que se expor, afinal?

Impressão sua ou já tinham se passado horas? Olhou pro relógio... Já tinham se passado horas. Ao dobrarem a esquina, Justine foi avisada de que já não havia mais razão para acompanhá-los. O mesmo rapaz que falava ao celular na Duque agora lhe pedia desculpas pelo incômodo e perguntava onde preferia ficar. Hein? Deveras gentis aqueles bandidos. Ou será que não seriam bandidos? O que é ser bandido, afinal, neste mundo em que vivemos? E será que já se nasce bandido ou se torna bandido? Chega de filosofias, advertiu a si mesma. Melhor ir pra casa dormir. Não! Melhor ir para a casa da mãe, que deve estar preocupada. Antes, no entanto, era necessário dar uma passada no escritório e deixar um recado de que tiraria uma folga.


O dia já estava amanhecendo. Fico aqui mesmo, respondeu apática. Pegaria um táxi. O rapaz sentado ao lado, que até então permanecera quieto, achou melhor descer um pouco mais à frente, em algum local com mais movimento. A moça não entendeu nada. O bandido estava preocupado com sua segurança? E a polícia, que teoricamente ela conhecia tão bem depois de ter passado no concurso, estaria preocupada com o que? Em caso de socorro, a quem gritar?

O carro parou em outro posto de combustível. Exausta, com a mente turva e o corpo pesado, Justine pegou o primeiro táxi que apontou na Assis Brasil. Até chegar ao escritório teria que atravessar a cidade. Pela janela do carro, os prédios desfilavam aos seus olhos. Os primeiros raios de sol iam cobrindo o concreto de um dourado lindo. Aquele amanhecer parecia único. Pôs-se a observar o verde do parque, os passos ligeiros dos operários pelas calçadas. A cidade assim, acordando, parecia expandir sua alma.

Resolveu baixar o vidro pra sentir todo frescor da brisa daquele novo dia, em uma Porto Alegre coberta por folhas e flores. Por instantes, quis descer e caminhar com o pé descalçado, pisando na grama do primeiro parque que encontrasse. Era assim que fazia na fazenda. As lembranças do campo a fizeram ficar com vontade de andar a cavalo. E de pescar! E de caminhar no meio do mato! E de observar a plantação crescendo, com o som dos bichos ao longe.

É aqui?, perguntou o taxista. Justine havia se desplugado do mundo. Tinham chegado. É sim, respondeu ávida por pagar e sair. Quando desceu do carro, uma grata surpresa. Seu carro estava estacionado em frente. Mulher de sorte, pensou consigo, espichando-se demoradamente. O rapaz que na noite anterior lhe proporcionara um tremendo susto havia devolvido o carro, sem um único arranhão... Uma sensação de leveza tomou conta de Justine, que sorriu como há muito não fazia. Sim. Havia vida.

Entrou no prédio, cumprimentou o zelador com empolgação e subiu. Quando entrou no escritório, a primeira coisa que fez foi ligar pra mãe, que devia estar preocupadíssima. Já estou indo, avisou ela sem deixar que lhe fizesse qualquer pergunta. Alguns dias mais tarde ela leria no jornal que uma quadrilha de lavagem de dinheiro com atuação em Porto Alegre havia sido desbaratada, depois de usar diversas pessoas como ‘laranjas’ pra entrega de documentos falsos.

Mas naquele momento Justine não tinha todas as respostas e, sinceramente, isso não fazia a menor diferença. Desligou o telefone e se aproximou da janela gigante.

O dia ia nascendo sobre o Guaíba. Tranqüilo e sereno, como o ânimo de Justine. Era paz de espírito que ela sentia. Aquela paz de espírito que os fantasmas de uma noite sem sono não tiram.




Sandra Veroneze – Jornalista com MBA em Estratégia e Competitividade e especialização em Economia Social. Escreve crônicas por prazer, contos por ideal e poesias por ‘dever moral’, como editora do Caderno Literário Pragmatha. Sente-se mais à vontade no papel de incentivadora e promotora dos escritos do que no papel de escritora.


sandra.veroneze@pragmatha.com.br

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