quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

"Cuide de você"


A primeira vez que vi um trabalho de Sophie Calle foi no Beaubourg, o Centro Georges Pompidou, em Paris, no ano de 1996; uma série de fotografias em que Calle aparecia como camareira em quartos de diferentes hotéis. Eram imagens bonitas, bem produzidas, algumas delas em ambientes elegantes (que pareceram bem francesas para uma jovem em sua primeira visita em Paris). E provocavam sensação estranha, de invasão de privacidade, como se a artista incitasse nosso lado voyeur, levando-nos à intimidade alheia – ao mesmo tempo em que suscitava certa cumplicidade com ela mesma.

Artista visual, fotógrafa, escritora e performer francesa, Sophie Calle faz livros, fotos, vídeos, filmes e performances para contar sua vida. Uma contadora de histórias, segundo o escritor norte-americano Paul Auster, capaz de igualar vida e arte “para se manter viva, para criar uma realidade para si mesma” – e para cada um de nós que a assiste/observa/lê... Afinal, não é o que faz toda arte?, criar certa “realidade” a fim de re-encantar nosso entorno, de promover o re-envolvimento positivo com a Realidade – na qual nos sentimos cada vez mais incertos de nossas identidades/papéis sociais....

Há pouco vi um segundo trabalho de Sophie Calle, uma mostra intitulada
“Cuide de você” (Prenez soin de vous), que passou no ano de 2009 pelo SESC-Pompéia em São Paulo e pelo (lindo!) Solar do Unhão, em Salvador, e agora está (somente até dia 21 de fevereiro) no MAM-Rio. A partir de uma carta que ela recebe de seu namorado, uma carta em que ele rompe com o relacionamento amoroso, a artista pediu a 107 mulheres suas interpretações:

Recebi uma carta de rompimento.
E não soube como respondê-la.
Ela terminava com as seguintes palavras: ‘Cuide de você’.
Levei essa recomendação ao pé da letra.
Convidei 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão,
Para interpretar carta do ponto de vista profissional.
Analisá-la, comenta-la, dança-la, cantá-la.Esgotá-la.
Entende-la em meu lugar. Responder por mim.
Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.
Uma maneira de cuidar de mim
.”


Especialista da ONU em direitos da mulher

Atriz
 
Revisora

Atrizes, advogada, juíza, filósofa, professora de francês, lingüista, bailarina, cantora, delegada de polícia, jogadora de xadrez, historiadora do século XVIII, mulheres nas suas mais diversas atividades vão interpretar a carta (que segue em anexo) de acordo com suas respectivas visões de mundo/formações profissionais.

Nas paredes da sala de exposição vemos algumas dessas respostas em criações gráficas variadas, fotografias e vídeos de todas as intérpretes lendo a carta (cuja tradução para o português, aliás, encontra-se disponível em cópias para os visitantes). Vemos essas mulheres atentas, muitas vezes com a folha de papel a encobrir seus rostos, a compartilhar algo importante/íntimo com a artista – assim como nós (em tempo: a mostra, exibida pela primeira vez na Bienal de Veneza de 2007, aconteceu também, naquele mesmo ano, numa biblioteca; escolha feliz, pois capaz de enfatizar a atmosfera de intimidade e silêncio que existe na leitura de uma carta).

O único verdadeiro objeto da exposição, porém, é a carta, página impressa que passa de mão em mão, por essas mulheres unidas em reações, críticas e criações.
Como que encurralado na sala de exibição, o visitante sofre o peso dos olhares e dos desprezos das mulheres fotografadas. Compreender o ato, compartilhar com a artista a dor da separação ou simplesmente reviver suas próprias falhas, nós, visitantes, assumimos postura de culpado, vítima ou testemunha. Transferida a carta, transmitida a mensagem, cada um de “nós” - nas imagens em fotografia/vídeo ou nas presenças corpóreas na sala - participa de uma mesma empreitada, estabelecendo na sala uma espécie estranha de polifonia silenciosa (silêncio tão esquecido!), em que cada um exprime sua indignação, sua dúvida ou sua empatia. Sem uma palavra, a artista focaliza o fundamental da estética: a recepção. A densidade da obra se desloca para fora, e assiste-se, impassível, à materialização da ruptura, da ausência de ligação, que se transmite em cadeia.

Daí a “emergência do compartilhar”: é “pelo movimento do outro que uma cura é possível” (Guillaume Benoit). É ao ser reconhecido pelo outro que se encontra o sentimento de existir. A busca do outro através da procura da comunicação com ele é a expressão de uma inquietação por essa ligação.

Sophie Calle desloca seu próprio mundo e o faz objeto de todos, promovendo uma “polifonia formidável onde cada um encontra sua singularidade” (Guillaume Benoit).
Cuide de você, ela nos recomenda. E assim toma conta de nós.



 
Escritora de cartas 







Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.

Sophie,

Há algum tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu último email. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor conversar com você e dizer o que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito.
Como você pôde ver, não tenho estado bem ultimamente. É como se não me reconhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível, contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para tentar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs uma condição: não ser a "quarta". Eu mantive o meu compromisso: há meses deixei de ver as "outras", não achando obviamente um meio de vê-las, sem fazer de você uma delas. Achei que isso bastasse; achei que amar você e o seu amor seriam suficientes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizontes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e "generoso", se aquietasse com o seu contato e na certeza de que o amor que você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que jamais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu "desassossego" se dissolveria nela para encontrar você. Mas não. Estou pior ainda; não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que me encontro.Então, nessa semana, comecei a procurar as "outras". E sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando. Jamais menti para você e não é agora que vou começar. Houve uma regra que você impôs no início de nossa história: no dia em que deixássemos de ser amante, seria inconcebível para você me ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta ( já que você ainda vê B., R., ...) e compreensível (obvimente ...); com isso, jamais poderia me tornar seu amigo. Mas hoje, você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de ver você e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma saudade infiinita. Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da maneira que sempre amei desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá. Mas hoje, seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tão bem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.
Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide de você.

X.

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