quinta-feira, 20 de maio de 2010

Olhar Reflexivo


“OLHAR APENAS PARA UMA COISA NÃO NOS DIZ NADA. CADA OLHAR LEVA A UMA INSPEÇÃO, CADA INSPEÇÃO A UMA REFLEXÃO, CADA REFLEXÃO A UMA SÍNTESE, E ENTÃO PODEMOS DIZER QUE, COM CADA OLHAR ATENTO, ESTAMOS TEORIZANDO.”
(Goethe)

Este texto surgiu como um ensaio fotográfico e etnográfico sobre o trajeto por mim realizado todos os dias de casa para a Universidade. A idéia de perceber melhor e produzir um texto sobre a paisagem de todos os dias se constituiu num primeiro momento como um desafio. Faço aqui um resumo desse exercício visual e teórico.

Descartei em princípio, enfocar pessoas, equipamentos urbanos tais como pontos de ônibus, edifícios e ruas como um todo. Foram eleitas finalmente, as mensagens escritas, e também os desenhos e cartazes que ilustram pictoricamente as ruas. Eles se encontram por toda parte, mas devido à opacidade ou seja, a poluição visual que causam, passam despercebidos. Existem em princípio mensagens de diferentes naturezas: comerciais, religiosas, políticas, grafites, e outras – que se veiculam sobre suportes também diferentes como cartazes, banners, outdoors, placas ou o que é mais comum, escritas sobre os muros.

Para minha surpresa, o que parecia a escolha de um tema irrelevante, demonstrou várias faces desconhecidas e revelou um universo de significados. Começando pelas imagens, observando e fotografando o que me parecia interessante e significativo para o trabalho. Com as primeiras fotos digitais diante dos olhos, teve início a classificação, o processo de escolha, porque “classificar, dar nomes, é por si só uma maneira de significar, dar sentido às coisas, valorar”.

Como diz José de Souza Martins, “o sociólogo me pede que faça de preferência fotografia documental, que registre o mais minuciosamente possível os fatos sociais, que faça uma fotografia descritiva, etnográfica. Mas o fotógrafo se insurge contra essa demanda, prefere os diálogos com o expressionismo da xilogravura de Oswaldo Goeldi e, por meio dele com os duplos significados, com as ocultações, com o antietnográfico da demanda documental, com os sobresignificados das sombras que decodificam o mundo da luz, que é o mundo da fotografia”.

No princípio era o verbo...e nesse caso, como o objeto se expressa também através da palavra escrita, e está presente em locais de domínio público, percebe-se “intenções ocultas” por detrás das mensagens, que podem ter um sentido de alerta ameaçador, de intimidação, como no caso de “Cuidado. Cão Bravo” ou “Cuidado. Cerca Elétrica”, numa evidente defesa do patrimônio. Assim como existem aquelas que tendem a levar a uma reflexão, possuindo um sentido moral, como “Deus 100 você, é Deus. E você, 100 Deus é quem?” ou ainda “Você já nasceu de novo?”. As mensagens políticas buscam demonstrar credibilidade e uma afinidade com o suposto futuro-eleitor, quando o candidato afirma em seu slogan que sua candidatura é unicamente “Por amor à cidade de Curitiba”. Há ainda frases engraçadas, como “Fábrica de Sonhos, atendemos nos fundos”.

No campo das palavras-de-ordem, coisa que parece estar um pouco em desuso, encontram-se frases como “Porcos fardados, seus dias estão contados” ou ainda “Só sangue-bom para acabar com a corrupção” demonstrando uma certa consciência política e uma ameaça velada, e aquelas que atacam a super-poderosa rede televisiva: “Globo e você, nada a ver”.

Para Panofsky, “o homem é na verdade, o único animal que deixa registros atrás de si, pois é o único animal cujos produtos “chama à mente” uma idéia que se distingue da existência material destes. Outros animais empregam signos e idéiam estruturas, mas usam signos sem “perceber a relação da significação” e idéiam estruturas sem perceber a relação da construção.” Somos portanto, animais que usam símbolos, que compreendem esses mesmos símbolos, e estamos constantemente fazendo e refazendo, interpretando e inferindo valores das construções culturais.

Pode-se pensar também nas dualidades que a fotografia comporta: negativo/positivo, tempo/espaço, imagem composta/imagem invertida... daí a razão da escolha de um tapume com a emblemática foto do “Che” como a mais importante do ensaio fotográfico. Da mesma forma em que ela nos remete para a figura do mito, também nos lembra a passagem do tempo sobre pessoas e coisas. Também a ação da chuva, do sol, ou mesmo de pessoas que rasgam pedaços de cartazes na rua, vão compondo uma “obra do acaso”: um sorriso pela metade do “Che”, uma colagem composta pelo tempo em um espaço determinado, frente e verso, negativo e positivo.

Enfim, ao que é impossível descrever, torna-se indiscutível a prioridade da imagem visual, por sua capacidade de reproduzir e sugerir, por meios expressivos e artísticos, sentimentos crenças e valores.

Izabel Liviski, Mestre em Sociologia na linha de Imagem e Conhecimento pela UFPR e consultora da Contemporâneos, escreve quinzenalmente às 5ªs. no ContemporARTES.

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