sexta-feira, 7 de maio de 2010

POR UM TEATRO IMAGINADO


 OU
“ME ABRACE SIMPLESMENTE, NÃO FALE, NÃO LEMBRE, NÃO CHORE MEU BEM”


Aléxis Loviz,


O que define o encantamento? Segundo o Dicionário Houaiss, encantar é enfeitiçar, envolver ou ser envolvido por algo sedutor. Signfica ainda: maravilhar-se.

Pois é assim que me sinto depois de nossas intensas trocas de correspondências. Sei que as cartas ficaram obsoletas nesses tempos modernos... Assim mesmo, ontem, cuidei de guardar tuas palavras, tão importantes, recebidas nos últimos dias. Numa das minhas muitas caixas de guardados, passei a acumular esses nossos afetos.

E são tantos, Álexis. Tuas mensagens chegam, às vezes, objetivas, outras cifradas, quase um enigma. Mas enchem meus dias com uma dúvida, uma tal perplexidade, que quase sempre me conduzem pela mão a um mundo de sensações novas, reveladoras. Algumas, cheias de humor inteligente, revelam a genialidade de algumas idéias. Outras são breves e ternas declarações de amor mútuo, compartilhado à arte de Talma. Não me esqueço de tuas belas atuações, de personagens memoráveis que você trouxe para o palco, seu respeito à sua vocação que trabalhava dia-a-dia, com o labor do ourives, “beneditinamente”. Quando me lembro de tuas atuações, lembro das palavras da Tânia Brandão quando, ao longo da História do teatro, identifica uma única linha contínua de ação, uma fonte inesgotável de todo o fazer: “a força e o desejo dos atores. São eles, na verdade, o alicerce do teatro brasileiro. Desde João Caetano até o vertiginoso ritmo atual de nomes e cartazes, são os atores os responsáveis pela vitalidade do palco no país” (BRANDÃO, 2003, 14.).

Tenho ainda o prazer de trocar informações, dicas, sugestões, enfim, referências. Tudo isso me deixa tão pleno, com um desejo tão forte de expandir esses caminhos.

Uma coisa, porém, é certa.

Ao ler tua última carta, fiquei absorto. Não pela surpresa da missiva, mas pelo fato da inesperada resolução.

Realmente tua consulta coloca-me em apertadíssimo embaraço.

Quase todas as cartas trocadas entre nós possuem um elo em comum: o respeito e a admiração pelo ator. E me sinto recompensado por falar sobre isso, praticamente todos os dias. Esta profissão não é apenas mais uma profissão, tu bens sabe. A singularidade que a cerca está ligada, necessariamente, à palavra que cito no início dessa carta, encantamento, mas, também, à busca de leis objetivas na aprendizagem das regras elementares contrárias à criação ao acaso e sem fundamentos.

Você, como ninguém, acompanhou durante tanto tempo essas idéias, soube do meu esforço em manter viva a mágica, a aura, o sentido, em torno do ator. Portanto, se eu tivesse que aconselhar uma criançola fútil, sem outra noção de prática social além das leviandades tributárias aos 18 anos, não hesitaria na resposta, peremptória, incisiva e rude até, em mandá-lo bugiar se me viesse perguntar se era bom entrar para o teatro.

Mas a ti? Isso se torna gravemente sério.

Raciocinemos.

Sabes o que é, ou por outra, o que está sendo atualmente o teatro neste país? De Norte a Sul? Leste e Oeste? Valerá a pena falar dele?

O teatro – a arte de um modo geral – é uma traficância, um negócio de balcão, uma feira de novidades, em que a imprensa faz de arlequim à porta da barraca, anunciando e pufiando as sumidades, conforme a gorjeta dos patrocinadores. Os atores, ah, os atores, Álexis, estão morrendo. Em seu lugar está nascendo o ator-cacoete; o ator-clichê; o ator-timidez; o ator-superficial, de voz fanhosa, olhar vago, gesto indefinido; o ator-tensão, desprovido de energia e objetivos; o ator-obscuro; o ator-vadio-faltoso-atrasado; ator-picareta; o ator-sub-reptício, que “quanto menos tem valor, mais tem pretensão e impertinência, mais se emproa e se pavoneia. E todos acham quem compre sua mercadoria” (ROTTERDAN, 1997, P. 52).

Essas novidades, ambicionadas a todo o momento, são estrangeiras. Tu és estrangeiro? Não.

Este é o teatro, esta é a nossa vida.

Tu me dirás: e tu, homem, se o teatro é tudo isso, se tu falas dele com essa angústia, por que ainda aí permaneces?

Não argumentes comigo.

Tu saíste quando manifestavam no Brasil os sintomas mais graves da decomposição geral, saíste, por conseqüência, na melhor das ocasiões. Eu, porém, fiquei e fui preso por contágio. Fiquei e hoje para mim o hábito constitui-se em lei, que jamais poderei derrogar, se não quiser arriscar-me a sucumbir na luta. Para mim, hoje, “fazer teatro é um ato de heroísmo” (BRANDÃO, 2002, 13.), sou uma espécie de cristo da humanidade e o teatro muito mais uma condenação do que uma dádiva.

Ah, Álexis, o teatro, o ator, hoje é um engodo, um mistifório ao sabor do público, que adora de preferência tudo quanto corrompe e decai; um gênero de arte fácil e sem regras, onde a careta é uma criação e o esgar trejeitoso e descompassado uma especialidade de mérito que toca às raias do gênio.

Uma miséria. Tu nunca depravaste a arte, tu nunca concorreste para a desmoralização dos teus colegas; ao contrário, foste vítima, como eu, dos gaviões, das rapinas daqui. Queres voltar? Queres comer um novo pão, ainda mais amargo e duro do que já comeste?

Por favor querido amigo, repenses, repenses.

Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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