Amor Incondicional
Estava eu sonhando com um lindo jardim, cheio de borboletas coloridas, quando acordei com o despertador insistente, anunciando a hora de levantar. Rapidamente me lembrei que ela ainda não havia acordado, e decidi, como em todas as manhãs, cheirar seu lindo pescoço para despertá-la suavemente nesse novo dia. Ela se virou murmurando algo inteligível, quando então passei para a segunda tática que sempre funciona: mirei bem aqueles lábios carnudos e aquele narizinho empinado, e então, lhe dei uma enorme lambida, bem molhada! Abruptamente ela se sentou na cama gritando, cheia de energia para o novo dia: “Rex, eu vou te matar! Quantas vezes te pedi para não me lamber?”.
Eu adoro quando ela acorda dizendo o meu nome! Comecei então a puxá-la pela camisola, abanando a cauda freneticamente, para que ela abrisse a porta e eu corresse para o jardim, para esvaziar minha bexiga. Volto sempre correndo para estar ao seu lado por alguns minutos antes dela partir para o longo dia de trabalho.
Depois do banho e de escovar os dentes, ela sobe na balança todos os dias. Nesse momento eu fico tenso, levanto as orelhas e aguardo sua reação, que por vezes é um grito de dor, e em outras, um monte de palavras horríveis. Normalmente às segundas-feiras, ela bate a cabeça na parede, repetindo algo do tipo: “nunca mais comerei lasanha na minha vida”. Se ela não comesse tudo que já prometeu para a balança, ela viveria de filé de frango e eu seria um cão muito mais feliz e esbelto.
No quarto, em frente ao espelho, ela começa brincar. Nunca entendi muito bem o porquê dela fazer isso, se está sempre atrasada. Parece que sem esse jogo ela não pode sair de casa: tira uma roupa do armário, veste, dá uma volta em frente ao espelho e dá a sentença: “muito gorda”, “aparece a celulite”, “não sobressaem meus olhos azuis”, “quanta flacidez”, “uma ruga nova”, “cabelos brancos”, etc.Depois de uns quarenta minutos, ela encontra algo que a faz pular feliz,sendo então aquela roupa a escolhida do dia, enquanto ela cantarola: “pareço 2 quilos mais magra” ou “parece que rejuvenesci 5 anos”.
Eu, um mero cachorro, jamais entenderei a raça humana, pois ela fica linda de qualquer jeito. Quem vai olhar suas dobrinhas quando ela abre aquele sorriso encantador? Quem vai reparar naquelas jóias brilhantes quando seus olhos verdes brilham mais que esmeraldas? Nós, os cachorros, somos seres inferiores, muito simplistas. Para nós não importa se a coleira tem diamantes ou é de couro velho. Se encontrarmos outro cachorro que não queira brigar, pronto, seremos amigos instantaneamente. Não sabemos classificar nossos amigos pelo que usam. Tampouco nos importa se somos de raças ou cores diferentes. Só nos importa que sejam alegres e espontâneos. Mas eu sei, sou apenas um cachorro, como entenderia a complexidade da raça humana, ainda mais de suas fêmeas?
Outro dia minha dona dizia ao telefone, que sentia solidão, sentia falta de uma família, um marido e filhos, e que eu só lhe trazia problemas. Eu não fiquei magoado com ela, porque logo lembrei que os humanos nem sempre falam o que realmente sentem. Muitas vezes eles preferem culpar algo ou alguém pela sua dor, porque a dor é grande demais para ser expressa em palavras. E se não me amasse, porque teria ela me abraçado outro dia e estalado um beijo na minha bochecha caída? Dizem que os elefantes não esquecem, mas nós cachorros também não. Como temos um cérebro pequeno e só podemos nos lembrar de poucas experiências, preferimos nos lembrar só das boas. Somos mesmo seres inferiores e simplistas.
De repente, percebo que ela já passou pelo ritual da transformação, quando coloca muitas cores em seu rosto e parecendo outra pessoa, sobrepõe inúmeros objetos brilhantes nos dedos, braços, pescoço e orelhas, que desviam a atenção da sua alma. Nunca entendi muito bem o porquê dela precisar trabalhar disfarçada, mas acredito que ninguém possa descobrir quem ela realmente é. Uma pena, porque eu acho que ela é muito mais agradável quando está sem a armadura, e não precisa fingir ser outra pessoa.
Quando ela está assim, também muda seu comportamento, e até sua voz fica mais austera, o sorriso parece mecânico e a gargalhada programada. Eu acho que ela trabalha no exército. Talvez seja por isso que ela sente solidão! Ela precisa afastar as pessoas e esconder quem ela realmente é. Já sei, ela é uma agente secreta, só pode ser isso. Nada mais justificaria esse comportamento complexo, pois até mesmo os cachorros sabem que ninguém gosta de alguém que tenta ser quem não é.
Eu a acompanho até a porta todos os dias, e fico observando sua imagem desaparecer. Ela sempre esquece de se despedir de mim, já que está sempre correndo. Eu dou umas boas latidas para ela saber que vou esperá-la ansiosamente. Quando ela se vai, o tempo parece não passar.Meu dia não é importante como o dela.Eu passeio pelo jardim desengonçadamente, corro atrás do gato do vizinho, tomo sol, roo mais um pedaço do sofá, brinco com um galho que encontro por aí e caço borboletas que nunca pego.
Sou um cachorro muito feliz. Tenho uma dona maravilhosa que me deixa água e comida, e com ela não preciso fingir ser quem não sou. Ela sabe que eu tenho bafo canino (da lasanha, obviamente), solto pum e muitas vezes sou atacado por pulgas oportunistas. Além de que estou ficando calvo com a idade e solto pelos o tempo todo. Mesmo assim, ela me dá banho, remédio e osso para roer. Para nós cachorros, o amor é tudo, e não precisamos de sofisticadas demonstrações. Somos mesmo uma raça simples e pouco evoluída.
Quando a noite chega e eu escuto seu carro estacionando, meu coração começa palpitar como uma revoada de maritacas e eu fico louco de felicidade. Corro para recebê-la. Sempre esqueço que ela estará cansada, dirá para eu sair, e fechará a porta do quarto no meu fucinho. Mas eu não fico magoado com ela, sei que é muito desgastante passar o dia tentando ser outra pessoa, preocupando-se com o seu disfarce, escondendo seus sentimentos e encenando ser uma pessoa perfeita.
Eu deito no chão gelado e aguardo pacientemente ao lado da porta. Sei que depois do banho, quando ela tirar aquele disfarce, ela se sentará no sofá usando uma camisola larga e pantufas velhas. Tranqüila, ela finalmente permitirá que eu me aproxime dela.Então, eu vou me sentar aos seus pés, feliz de sentir o seu cheiro, o seu calor, e ver a beleza daquela pessoa humana, tão complexa, tão forte, e tão frágil ao mesmo tempo.
Quando ela com suas mãos delicadas acariciar minhas costas, eu vou ronronar como um gato, e ela saberá que eu a amo mais que tudo, exatamente como ela é.
Eu adoro quando ela acorda dizendo o meu nome! Comecei então a puxá-la pela camisola, abanando a cauda freneticamente, para que ela abrisse a porta e eu corresse para o jardim, para esvaziar minha bexiga. Volto sempre correndo para estar ao seu lado por alguns minutos antes dela partir para o longo dia de trabalho.
Depois do banho e de escovar os dentes, ela sobe na balança todos os dias. Nesse momento eu fico tenso, levanto as orelhas e aguardo sua reação, que por vezes é um grito de dor, e em outras, um monte de palavras horríveis. Normalmente às segundas-feiras, ela bate a cabeça na parede, repetindo algo do tipo: “nunca mais comerei lasanha na minha vida”. Se ela não comesse tudo que já prometeu para a balança, ela viveria de filé de frango e eu seria um cão muito mais feliz e esbelto.
No quarto, em frente ao espelho, ela começa brincar. Nunca entendi muito bem o porquê dela fazer isso, se está sempre atrasada. Parece que sem esse jogo ela não pode sair de casa: tira uma roupa do armário, veste, dá uma volta em frente ao espelho e dá a sentença: “muito gorda”, “aparece a celulite”, “não sobressaem meus olhos azuis”, “quanta flacidez”, “uma ruga nova”, “cabelos brancos”, etc.Depois de uns quarenta minutos, ela encontra algo que a faz pular feliz,sendo então aquela roupa a escolhida do dia, enquanto ela cantarola: “pareço 2 quilos mais magra” ou “parece que rejuvenesci 5 anos”.
Eu, um mero cachorro, jamais entenderei a raça humana, pois ela fica linda de qualquer jeito. Quem vai olhar suas dobrinhas quando ela abre aquele sorriso encantador? Quem vai reparar naquelas jóias brilhantes quando seus olhos verdes brilham mais que esmeraldas? Nós, os cachorros, somos seres inferiores, muito simplistas. Para nós não importa se a coleira tem diamantes ou é de couro velho. Se encontrarmos outro cachorro que não queira brigar, pronto, seremos amigos instantaneamente. Não sabemos classificar nossos amigos pelo que usam. Tampouco nos importa se somos de raças ou cores diferentes. Só nos importa que sejam alegres e espontâneos. Mas eu sei, sou apenas um cachorro, como entenderia a complexidade da raça humana, ainda mais de suas fêmeas?
Outro dia minha dona dizia ao telefone, que sentia solidão, sentia falta de uma família, um marido e filhos, e que eu só lhe trazia problemas. Eu não fiquei magoado com ela, porque logo lembrei que os humanos nem sempre falam o que realmente sentem. Muitas vezes eles preferem culpar algo ou alguém pela sua dor, porque a dor é grande demais para ser expressa em palavras. E se não me amasse, porque teria ela me abraçado outro dia e estalado um beijo na minha bochecha caída? Dizem que os elefantes não esquecem, mas nós cachorros também não. Como temos um cérebro pequeno e só podemos nos lembrar de poucas experiências, preferimos nos lembrar só das boas. Somos mesmo seres inferiores e simplistas.
De repente, percebo que ela já passou pelo ritual da transformação, quando coloca muitas cores em seu rosto e parecendo outra pessoa, sobrepõe inúmeros objetos brilhantes nos dedos, braços, pescoço e orelhas, que desviam a atenção da sua alma. Nunca entendi muito bem o porquê dela precisar trabalhar disfarçada, mas acredito que ninguém possa descobrir quem ela realmente é. Uma pena, porque eu acho que ela é muito mais agradável quando está sem a armadura, e não precisa fingir ser outra pessoa.
Quando ela está assim, também muda seu comportamento, e até sua voz fica mais austera, o sorriso parece mecânico e a gargalhada programada. Eu acho que ela trabalha no exército. Talvez seja por isso que ela sente solidão! Ela precisa afastar as pessoas e esconder quem ela realmente é. Já sei, ela é uma agente secreta, só pode ser isso. Nada mais justificaria esse comportamento complexo, pois até mesmo os cachorros sabem que ninguém gosta de alguém que tenta ser quem não é.
Eu a acompanho até a porta todos os dias, e fico observando sua imagem desaparecer. Ela sempre esquece de se despedir de mim, já que está sempre correndo. Eu dou umas boas latidas para ela saber que vou esperá-la ansiosamente. Quando ela se vai, o tempo parece não passar.Meu dia não é importante como o dela.Eu passeio pelo jardim desengonçadamente, corro atrás do gato do vizinho, tomo sol, roo mais um pedaço do sofá, brinco com um galho que encontro por aí e caço borboletas que nunca pego.
Sou um cachorro muito feliz. Tenho uma dona maravilhosa que me deixa água e comida, e com ela não preciso fingir ser quem não sou. Ela sabe que eu tenho bafo canino (da lasanha, obviamente), solto pum e muitas vezes sou atacado por pulgas oportunistas. Além de que estou ficando calvo com a idade e solto pelos o tempo todo. Mesmo assim, ela me dá banho, remédio e osso para roer. Para nós cachorros, o amor é tudo, e não precisamos de sofisticadas demonstrações. Somos mesmo uma raça simples e pouco evoluída.
Quando a noite chega e eu escuto seu carro estacionando, meu coração começa palpitar como uma revoada de maritacas e eu fico louco de felicidade. Corro para recebê-la. Sempre esqueço que ela estará cansada, dirá para eu sair, e fechará a porta do quarto no meu fucinho. Mas eu não fico magoado com ela, sei que é muito desgastante passar o dia tentando ser outra pessoa, preocupando-se com o seu disfarce, escondendo seus sentimentos e encenando ser uma pessoa perfeita.
Eu deito no chão gelado e aguardo pacientemente ao lado da porta. Sei que depois do banho, quando ela tirar aquele disfarce, ela se sentará no sofá usando uma camisola larga e pantufas velhas. Tranqüila, ela finalmente permitirá que eu me aproxime dela.Então, eu vou me sentar aos seus pés, feliz de sentir o seu cheiro, o seu calor, e ver a beleza daquela pessoa humana, tão complexa, tão forte, e tão frágil ao mesmo tempo.
Quando ela com suas mãos delicadas acariciar minhas costas, eu vou ronronar como um gato, e ela saberá que eu a amo mais que tudo, exatamente como ela é.
Simone Pedersen é escritora para crianças e adultos.
Autora de quatro infantis e duas coletâneas de poemas e crônicas,
todos no prelo e sendo lançados nos meses de junho e na Bienal do
Livro de São Paulo em agosto.
http://www.simonealvespedersen.blogspot.com/
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