sexta-feira, 16 de julho de 2010

Amanda e Monick e a nova ordem sexual



Hoje não vou falar de teatro, mas de espetáculo cultural contemporâneo a partir de um documentário que ganhei de alunos em Campina Grande, na Paraíba. Achei importante e tomei a liberdade de invadir outras praias. Essa paria nova tem como cenário o município de Barra de São Miguel, no Cariri da Paraíba. O roteiro é o encontro de dois travestis. Monick é uma é prostituta, a outra, Amanda, é Professora de História dos ensinos fundamental e médio.

O caso Amanda e Monick surpreende a classificação de identidade, gênero e sexualidade. Elas são personagens reais e vivem em Barra de São Miguel, região do cariri paraibano cuja população é quase duas mil vezes menor que a do município de São Paulo. Nasceram homens, Artur Marculino Gomes e Hernando Porfírio da Silva se tornaram mais tarde, respectivamente, Amanda e Monick. Estamos falando, pois de uma identidade de travestis que são, de certo modo, estigmatizados pela maioria das pessoas como exóticas, estranhas, bizarras e ameaçadoras. A leitura, no pior dos casos, é que devemos ter medo delas; no melhor, que devemos ter pena.

Vale aqui, a guisa de esclarecimento, que travestis são aqueles que invertem os papéis masculino e feminino, por meio de práticas que introduzem atributos femininos na aparência física masculina. Essa prática de inversão de gênero é geralmente associada a outros exemplos de inversão, como, por exemplo, os homens que se vestem de mulher no carnaval, no último dia do ano nos famosos “Bloco das piranhas. O que pretendemos não é falar sobre esse travestimento, que por ser episódico, procura demonstrar o quanto nós brasileiros somos liberais, tolerantes e modernos. Queremos apontar nesse pequeno estudo que, ao invés de simplesmente inverter um conjunto de idéias, representações e práticas virando-os de cabeça para baixo carnavalescamente, o que Amanda e Monick fazem é contribuir para uma discussão bastante séria sobre a elaboração de determinadas configurações acerca da identidade, do gênero e de sexo na sociedade brasileira.

Amanda é professora de História. Magra, longilínea, elegante, com olhar confiante, conquistou o respeito dos alunos e dos pais dos alunos. Prefere o dia à noite. Seu figurino é sempre o clássico, o discreto. É melancólica e sua tristeza latente distancia-se do humor irreverente e desafiador que marcam os travestis. Maquiagem sóbria, cabelos bem penteados, sapatos de bicos finos e linguagem impecável, nem de longe se aproxima daquela vertente do homossexual como um instrumento de denúncia social, o outsider, cuja preferência amorosa desfaz o silêncio tecido pela sociedade em torno de sua origem e funcionamento escusos; pouco lembra também o homoerotismo exótico tão bem pintado por Oscar Wilde; nem tampouco o do parasita que provoca repulsa e reprovação [1]. Amanda parece uma mulher e age como se assim fosse. Não transgride, não subverte o dia a dia da pacata cidade. A base, o sustentáculo dessa auto-afirmação está centrada na figura de seu pai, Sílvio Gomes, que trata a condição sexual do filho sem segredos ou anormalidade, sem chegar nem perto do "politicamente correto". Entende como normal a condição de Amanda e sempre o apoiou irrestritamente.

Aliás, o diretor dá muita ênfase a essa parte final do filme. Na sequência desse plano, Amanda desce uma rua que tem a igreja da cidade como fundo. Ela desce de mãos dadas, carinhosa e afetuosa. O público intui que ele seja seu marido, mas logo sabemos que se trata de seu pai, que não demora muito a se transforma no personagem principal do filme. Ele faz um depoimento bastante comovente, realmente impensável para um homem do sertão. Numa viagem que fiz a trabalho para a cidade natal do diretor, Campina Grande (PB) ouvi de pessoas que a aceitação de Monick é real, que sempre se reúne com os tios e o pai para tomar cerveja. Amanda é família, embora nada se tenha falado sobre sua prática sexual é mulher para se casar.

Monick, a antinomia de Amanda, segue outro caminho, embora o início evoque um tipo de experiência compartilhada, não só por elas, mas por todas as travestis, como aponta Kulick (2008,71):
Sempre que olham para trás, para a infância, buscando os indícios que podem tê-las feito virar travesti, o que parece mais nitidamente e de maneira mais elaborada é o tema da atração por homens e do prazer proporcionado pelas brincadeiras sexuais com seus jovens parceiros. Em outras palavras, elas focalizam explicitamente o desejo homossexual como força motriz de sua auto-realização como travesti. O desejo homossexual, aflorado desde muito cedo na infância, está ligado a papéis femininos ou afeminados (brincar de boneca, atuar como mãe nas brincadeiras de casinha, ter o ‘pulso fraco’, ‘desmunhecar’).

Monick Mashahara é kitsch, “almodovariana”, uma mistura divertida de vários elementos, cores e estampas de uma forma harmônica e irreverente. É a idéia do so-bad-it’s-good que faz Monick performativa em tudo. No nome, carregado de um glamour decadente próprio das divas travestis, na maneira em que se pinta – exagerada, como se fosse um bufão das peças de Goldoni e no figurino indefectível. Assumida desde os 17 anos, trabalha como prostituta em Santa Cruz do Capibaribe, em Pernambuco. Tem um sex-appeal indescritível e faz o gênero “cavalona”, potranca vulgar. Através de sua performance, a “dama da noite” ficou fora da roda gigante e passou a representar o lado inescrupuloso da sociedade. Monick é fora-da-lei, fora-de-série, fora-da-ordem, um sujeito darwiniano que quer provar que o sujeito é social ou anti-social conforme ordena sua natureza animal. Ora dócil, ora transgressora, aparenta ter uma realidade familiar bastante diferente de Amanda porque em nenhum momento do filme é citada e, parece-nos que a relação delas com a família é que marca a diferença de suas trajetórias.


Sua sexualidade é outro ponto complexo. Monick mostra que nem todo homem com aptidão para se relacionar homoeroticamente seja incapaz de se relacionar sexualmente com mulheres, que a idéia de que a prática do homoerotismo exclua a capacidade de manter relações sexuais com mulheres. Ela afirma-se gay, mas engravidou uma mulher, Nilda, que é lésbica. Não sabemos muito bem sua profissão, mas os dois vivem juntos como “marido e mulher” numa casa muito simples. "Quando a criança nascer, eu vou ser a mãe e a Nilda [sua companheira] será o pai", confessa Monick", que é aluna de Amanda em uma das escolas em que leciona.

E a sala de aula é o cenário onde a trajetória de professor e aluno se cruzam no documentário curta-metragem do diretor paraibano André da Costa Pinto.

André mostra que apesar compreender a incapacidade do modelo binário em apreender a diversidade dos papéis, comportamentos e orientações sexuais existentes, as relações não-heterossexuais, muitas vezes, reproduzem os padrões heterossexuais, tanto nos papéis de gênero que os casais assumem, quanto no modelo estável de relacionamento. Por detalhes de criação e convivência social, histórias parecidas como as de Amanda e Monick, podem tomar rumos tão diferentes e tão parecidos ao mesmo tempo.

Se num primeiro momento “Amanda e Monick" coloca o espectador urbano no assento da dúvida e desconforto, afinal como em uma cidade de seis mil habitantes um travesti é aceito pela família, alunos e pais? Em uma sociedade machista e heterocentrada, acostumada com os classificações simplistas de heterossexual, homossexual e bissexual, a condição de Monick (um homem travesti casado com uma sapatão grávida) colocaria mais caldo na história, certo? Errado. Se isso acontece nos primeiros momentos do filme, em seguida o incômodo se dilui. A realidade supera a ficção e enquadra os personagens na velha tradição do binarismo sexual. Ao final, Amanda se transforma no arquétipo da professorinha de interior, que dá conselhos para os alunos e é bem quista por todos; Monick, mãe de família tradicional casada com um marido e capaz de qualquer sacrifício para manter o bem estar do rebento. Ou seja, apesar de reconhecer que hoje a sexualidade é encarnada numa construção discursiva-performativa (Butler, 1990), em “Amanda e Monick” há um curto-circuito conceitual nos sistemas de gênero e identidade, a transgressão se dissolve e o caminho final, o ponto de chegada é a constatação tácita da força do binarismo essencialista. O depoimento do pai, que emociona, é a imagem típica do Romantismo, totalmente familiar e domina o imaginário no qual o amor é o supremo Bem, afinal, como o pai herói de Amanda afirma, "O que vale em qualquer relacionamento é a felicidade".

"Amanda e Monick" não estão na terceira margem do rio, como tão enfaticamente escreveu Arnaldo Jabor, parece-nos que no filme de André elas não encerram perigo algum, risco nenhum, são mansas e não querem mudar nada.

“Amanda e Monick” poderia ser um réquiem às tradições opressivas, captandos-as em franca desintegração, mas, ao contrário, reforça-as e sustenta a idéia de que seja extremamente difícil imaginar outros modos de auto-realização pessoal numa cultura em que o amor romântico e “heterossexual” se tornou sinônimo de quase tudo que entendemos por felicidade.

1 - Sobre esse assunto, sugerimos a leitura do capítulo “Os amores que não se deixam dizer”, de Jurandir Freire Costa encontrado em A inocência e o vício – Estudos sobre o homoerotismo.

Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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