Por Yone Ramos Marques de Oliveira
Não é bem que seja difícil escrever: as vezes é fácil, algumas pessoas tem mais facilidade que as outras, outras têm muito a dizer. Não, não é tão difícil! Mas algumas vezes na vida, nas manhãs como a de hoje, frias e cinzentas, manhãs em que até o silêncio incomoda e que não há nada a dizer, parece algo muito difícil, muito difícil mesmo. Não os códigos e as palavras, elas vão sair! Não também os símbolos porque eles já existem, mas como se expressar quando não se sabe o que expressar? Em dias como hoje, lembro-me de Gregor Samsa e sua metamorfose contraditória numa simples manhã. Apenas me lembro...
Lembro-me da sensação de folhear as páginas daquele livro perguntando qual o segredo tão profundo ele iria me dizer, quais respostas ao meu anseio mais humano ele iria responder. Quem já leu a obra de Kafka deve ter se sentido assim, afinal, uma metamorfose como aquela deve esconder algo de muito valioso. Mas a história fadada do novo inseto me inquietava a medida em que avançava na leitura: será que ninguém percebe que ele sofre, será que nada vai mudar sua estranha situação? Quando ele se livrará do castigo de viver sozinho e tornará a uma vida simples e feliz ao lado de seus amados?
Quando conclui a leitura, todas minhas questões passaram por uma surpreendente mutação, uma verdadeira metamorfose! Porque elas já não faziam mais sentido algum, as perguntas que Kafka queria responder estavam além da minha inicial compreensão e todas foram esplendidamente respondida.
Se no início, a angústia do inseto me incomodava e aquela situação de lhe ser negado o amor familiar me angustiava, no final, elas se apresentaram como um simples destino ao qual todos estão ilimitadamente acessíveis. Ninguém pode conter ou mudar uma metamorfose como a de Gregor, tão insignificante que somos diante da própria vida que cisma em metamorfosear. E o inseto que não era amado pela família não era Gregor, nem pra ele, nem pra sua família: ele era um outro qualquer, tinha lembranças que não mais lhe pertenciam e seu infortúnio nada tinha a ver com os anseios daqueles de quem se lembrava. Se alguém perguntar ao livro, Gregor era amado? Sim, ele era! Gregor tinha uma vida feliz? Sim, ele tinha!
Gregor se foi sem partir! Gregor sempre partia, ele era caixeiro viajante e sua presença se dava na ausência e ele era amado mesmo assim. Mas quando partiu sem partir, deixou em sua família um vazio inconsolável. E eles sobreviveram mesmo assim! Ironicamente, a morte de Gregor foi resultado da inflamação de uma ferida causada pelo próprio pai. Mas que morte? Seu corpo físico, sua memória, sua alma já não estava mais presente para aqueles que amava e então, como culpar o pai de matar de um filho já morto? Irônico, não?! Gregor morrera, exc
eto para si mesmo, instantaneamente naquela transformação.
E meu desprezo por aquela família, diminuiu a medida que percebi que talvez o livro não falasse de Gregor, mas da família de Gregor, na visão do inseto. Sim, sobre uma família que se vê na perda e na angústia de se reconstruir e sobreviver após a partida de alguém que não partiu. A sorte de todos mudou. Como será que descreveria aquela situação a amorosa irmã de Gregor? Posso imaginar a garota escrevendo em seu diário que sentia falta do irmão que lhe abandonara, um irmão que a vida lhe roubou. Ou então se perguntando, "será que aquele inseto no quarto ao lado é meu irmão mesmo, será que Gregor não foi devorado por aquele monstro?".
O livro todo, exceto a mutação e após a morte do Sr. Samsa, é narrado na perspectiva do inseto (mesmo que em terceira pessoa). Assim como nós narramos nossas próprias histórias, com dúvidas, com sentimentos, com perguntas, com desconhecimento do outro.
Que culpa tinham os outros e, que culpa tinha ele, diante de um fato tão surreal? O livro não busca culpados, não julga. Não digo que essa era a intenção do autor, já que a vida do homem simples na sociedade de Kafka (e talvez a do próprio Kafka) poderia ser facilmente confundida com a do inseto. Não sei bem o que Kafka diria de si mesmo! Só me pergunto em que época que não poderia? Não sei se conheço bem de História, mas em qual época que a vida não poderia assim se representar para um qualquer? Pois é, a vida é assim: para uns, como Gregor, para outros, como a família de Gregor e ainda para outros, nem como de um nem de outro. As vezes, qualquer tentativa de expressão poderia ser igualada às palavras que Gregor outrora tentara pronunciar, que saíra como apenas barulho de inseto. Talvez eu tenha me transformado em um, mas isso, é só um talvez!
Yone Ramos Marques de Oliveira, teóloga e historiadora, escreve aos sábados, quinzenalmente no ContemporARTES.
1 comentários:
Que descrição mais formidavel que foi feita pela minha grande amiga Yone!!!!
21 de julho de 2010 às 23:03Parabéns por ser este "poço" cheio de cultura!
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