Amor meus, pondus meum; illo feror, quocumque feror
(O meu amor é meu peso, por ele vou aonde quer que vá)
Tenho estudado a temática do amor na dramaturgia brasileira contemporânea há alguns anos e, por isso, tem sido natural jovens autores pedirem para que eu conheça suas incursões e tentativas. Também eu, na ânsia de ampliar repertório, sempre fico atento ao que vem escrevendo. Esse é o caso de Queria te falar, texto que Renata Thurler escreveu a partir de Eu sei que vou te amar, de Arnaldo Jabor.
Meu texto, aliás, poderia ser um texto investigativo acerca das semelhanças existentes entre os dois, feito através do aprofundamento de alguns pontos, como a questão da ação das personagens, das passagens idênticas e do tema do casamento desfeito que toma grande parte dos dois enredos, mas não. Essas semelhanças são evidentes, e em nenhum momento a autora pareceu ter tido a intenção de esconder essa matriz referencial.
Referência que não está somente em Jabor, afinal há mais de dois séculos que se fala de e sobre o amor. Todas as épocas, todos os tempos, desde Platão a Scheler, passando por Descartes e Espinosa vimos tratando sobre o amor, cada vez mais complexo, cada vez mais apurado. Assim, Queria te falar, ao devorar Arnaldo Jabor impõe um processo de ampliação de algumas informações ali contidas, que serão transformadas assumindo novos significados em diversos contextos sobre gênero e ideologias.
Se compreendermos, com Butler (1990), que gênero não é uma categoria fixa e pré-discursiva, mas algo que se constrói por atos repetidos e estilizados pelo sujeito generificado, gênero passa a ser compreendido para além da mera representação de papéis a serem desempenhados por corpos de homens e mulheres sob a hegemonia da heteronormatividade; é uma complexidade permanentemente aberta. Assim, gênero é uma representação que é vivenciada pelas performances dos sujeitos sociais que a experienciam através da vivência espacial cotidiana e concreta.
Queria te falar, através das personagens femininas Manu e Rafa, duas jovens mulheres que se reencontram para um papo-cabeça acerca das (des)razões que as fizeram romper seu casamento, comungam as idéias e as hierarquias que a heteronormatividade instituiu. Manu/homem trai, enquanto Rafa/mulher sofre. Manu/homem se apaixona por uma jovem muito jovem, enquanto Rafa/mulher, nem tão jovem, canta Chico Buarque e Maysa, se desespera, se desconcerta:
“Quando você foi embora... de repente, sem falar nada, eu morri mais que cem vezes, eu vivi de pura sorte... Até hoje ainda arrasto pedaços por aí... eu achei tantas coisas, me senti tão abandonada... E você agora vem me dizer na minha cara dizendo que se apaixonou por outra... Enquanto eu te amava, te amava tanto...voava...E nem vi você partir com a menina cor de rosa, você era o meu espinho, minha planta venenosa!”
Renata Thurler, nesse fragmento, evita pensar a desnaturalização da hegemonia dos 'laços afetivos' nascida da necessidade de perpetuação de um discurso heteronormativo e compulsório, patriarcal e machista; não quer questionar as hierarquias sexuais que precisam ser questionadas a fim de que outras subjetividades sejam visíveis, para além daquela eleita como o modelo heterossexual, branco e burguês. E também, que não há linearidade entre sexo, gênero e desejo, pois as identidades instituídas de ilimitadas configurações entre estes elementos estão em permanente transformação e sempre abertas ao novo.
Para Butler, um conceito se constrói através da repetição "estilizada do corpo, um conjunto de atos repetidos em um marco estritamente regulador que vai se sedimentando ao longo do tempo para produzir a aparência e a sensação de algo natural, permanente". Manu e Rafa poderiam ser as transgressoras da ordem compulsória heterossexual, afinal “o questionamento de condições tidas como evidentes torna-se possível, mas não se pode chegar lá através de um experimento imaginado, um epoché, um ato de vontade. Chega-se lá através do sofrimento da deiscência, de ruptura do próprio terreno” (BUTLER, 2003); poderiam desafiar suas formas de expressão e linguagem, afinal, segundo Butler (2004), é esta última quem constitui os sujeitos.
Mas se Thurler não se aproveita de suas personagens para transgredir a nova ordem, colabora para a discussão sobre o amor e do desejo. Quando Manu começa a explicar o começo da crise, assegura que foi por causa de uma outra pessoa,
“uma menina, assim, menina, que cismou comigo, me queria, me seduzia, sem cansar, sem parar... e eu fui ficando fraca...fraca...não resisti...menina Rosa, era assim que eu chamava, assim que me foi apresentada. E eu sabia que aquela menina ia me levar... ia me tirar daqui.”
Assim a autora começa a delinear que o desejo é em definitivo caminhar para sua posse, ou como diz Ortega Y Gasset, “possuir significa então, de uma forma ou de outra, que o objeto entra na nossa órbita e passa de algum modo a fazer parte de nós. Por essa razão, o desejo morre automaticamente quando se realiza, fenece ao satisfazer-se”.
E Manu, pouco depois, conclui: “Agora... eu voltei pra casa, não pra “nossa casa”, voltei pra cá, e queria te encontrar. (...) Simplesmente eu voltei e ela ficou, entende? Eu voltei sozinha”.
No amor é assim, mais uma vez com Ortega Y Gasset, “em vez de esperar que o objeto venha até mim, sou eu quem vou até o objeto e me torno parte dele, (...) sou eu quem gravito em torno dele.” Em Queria te falar amor é gravitação em direção à amada mesmo que às vezes, triste como a morte.
Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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