quinta-feira, 8 de julho de 2010

Férias com Anton Tchekhov


Sempre gostei do mês de julho. Luz bonita, temperaturas amenas. Guardo até hoje a lembrança das férias de colégio, as melhores férias, eu achava, já que as do verão eram muito longas. Eram como uma renovação de fôlego bem no meio do ano.
    Já há muitos “julhos” não tenho férias, mas fica nesse mês sua memória – a lembrança de um revigoramento imprescindível, que, se não pode ser vivenciado em sua “plenitude” de férias, pode e deve ser buscado em nosso cotidiano, cada vez mais atribulado. (Observação talvez óbvia,  mas muitas vezes esquecida, ao menos por mim...).
    Segunda-feira passada, dia 5 de julho, exausta ao fim do dia, e depois de muitas e muitas noites de poucas horas de sono, estava eu a esperar o ônibus que me leva para casa, em Petrópolis, no abafado terminal rodoviário do centro do Rio. E ali, naquele lugar inóspito, pude experimentar um daqueles breves – e imprescindíveis – revigoramentos. Saquei da minha imensa bolsa caderno da última Folha de São Paulo em que estava publicado um pequeno conto de Tchekhov. Com humor e ironia o escritor russo lucidamente escreve da solidão daquele homem oitocentista, há algum tempo editor de sua própria história, sem Deus tampouco o Diabo a guiá-lo. A conversa entre o bêbado e o diabo, supostamente  fantástica, se mostra no texto tão real quanto minha situação ali naquele banco do terminal de ônibus... Logo de início esboço um sorriso – o escritor me conquista ao trazer à tona o diabo como um “jovem de aparência agradável, de cara preta como botas, focinho e expressivos vermelhos olhos”. Um pobre diabo, logo ele se revela, a nós, pobres homens que, no entanto, têm a capacidade de reconhecer nossa miséria com a grandeza de um  Tchekhov. (ou de um Goeldi, artista brasileiro que retrata com precisão o Rio de Janeiro dos anos 30/40/50 através de seus personagens os mais marginais, solitários, acima de tudo, e, por isso mesmo, é capaz de exibir a realidade dessa cidade, e talvez do Brasil, hoje).


Conversa de um bêbado com um diabo sóbrio, por Anton Tchekhov (tradução Paulo Bezerra)


                                                              [BÊBADO SONHANDO]
                                                              sem título, circa 1930, assinado, nanquim e aguada
                                                              23,5 x 21,5cm, título atribuído por Béatrix Reynal
                                                              Coleção Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro


    Lakhmátov, ex-funcionário de intendência e secretário de colegiado aposentado, estava à mesa em sua casa bebendo o 16º cálice e pensando na fraternidade, na igualdade e na liberdade. Súbito, de trás de uma lâmpada, olhou para ele o diabo ... Mas não se assuste, leitor. Você sabe o que é o diabo? É um jovem de aparência agradável, de cara preta como botas, focinho e expressivos vermelhos olhos. Tem chifres na cabeça, embora nem seja casado. Usa penteado 'a la Kapul'1. Tem o corpo coberto por uma lã verde e cheira a cachorro. Abaixo da espinha balança o rabo, que tem uma seta na ponta... Em vez de dedos tem unhas, em vez de pés, cascos de cavalo. Lakhmátov ficou meio confuso ao ver o diabo, mas logo se acalmou quando se lembrou de que diabos verdes têm o tolo hábito de aparecer a todos aqueles que tomaram um trago.
    - Com quem tenho a honra de falar? - perguntou ao intruso.
    O diabo ficou confuso e abaixou os olhinhos.
    - Não fique acanhado – continuou Lakhmátov. - Chegue-se mais perto ... Sou um homem sem preconceitos, o senhos pode ser sincero comigo... Fale como amigo ... Quem é o senhor?
    O diabo chegou-se indeciso a Lakhmátov e, encolhendo o rabo, fez uma reverência cortês.
    - Sou o diabo, ou capeta ... - apresentou-se. - Sou funcionário de missões especiais junto à pessoa de Sua Excelência Satanás, diretor da chancelaria do inferno.


[NOTURNO]
sem título, circa 1950, assinada; xilogravura, sem numeração
20,8 x 26,9cm; gravura premiada na I Bienal de São Paulo, 1951; Coleção Museu Nacional de Belas Arte
s
  
- Ouvi falar, ouvi falar. Muito prazer. Sente-se! Não aceitaria uma vodca? Estou muito contente ... E o que o senhor faz?
    O diabo ficou ainda mais confuso ...
    - Propriamente falando, não tenho ocupação definida ... - respondeu ele pigarreando e assuando o nariz na folha de um “Rébus”2. - Antes nós tínhamos ocupação efetiva. Tentávamos as pessoas ... desviávamos do caminho do bem para as sendas do mal ... Hoje em dia essa ocupação, “entre nous soit dit”3, não vale uma cusparada. E, além disso, as pessoas ficaram mais espertas do que nós. Procure você tentar um homem que já aprendeu todas as ciências na universidade, estudou o fogo, a água e os tubos de cobre! Como posso ensiná-lo a roubar um rublo se, sem minha colaboração, você já afanou milhares?
    - É verdade.... Mas, não obstante, você tem alguma ocupação, não?
    - Sim... Hoje nossa antiga função pode ser apenas nominal, mas mesmo assim temos trabalho ... Tentamos damas de classe, impelimos os rapazinhos para a poesia, levamos comerciantes bêbados a quebrarem espelhos. Já em política, em literatura e em ciências não nos metemos há muito tempo ... Nesse campo não entendemos patavina. Muitos de nós são colaboradores de “Rébus”, há até aqueles que largaram o inferno e se tornaram gente... Esses diabos reformados, que se tornaram gente, casaram-se com comerciantes ricas e hoje levam uma vida ótima. Uns se dedicam à advocacia, outros editam jornais, são pessoas muito ativas e respeitadas!
    - Desculpe a indiscrição: quais são os seus vencimentos?
    - Nossa situação continua a mesma ... - respondeu o diabo. - O quadro de funcionários efetivos não mudou ... Continuamos tendo casa, luz e calefação por conta do erário ... vencimentos não recebemos, pois todos somos extranumerários e porque ser diabo é uma função respeitável ... Para ser franco, em linhas gerais se vive mal, ainda que a gente peça esmolas ... Somos gratos aos homens; eles nos ensinaram a aceitar propina, senão já teríamos esticado as canelas há muito tempo.... E assim vamos vivendo de rendas ... A gente fornece provisões aos pecadores e aí ... mete e mão... Satanás envelheceu, está sempre saindo para contemplar a Zucci4, não liga mais para prestação de contas...
    Lakhmátov serviu um cálice de vodca ao diabo. Ele o bebeu e soltou a língua. Contou todos os segredos do inferno, abriu a alma, desabafou, e agradou tanto a Lakhmátov que este o manteve em sua casa para pernoitar. O diabo dormiu no forno e passou a noite inteira delirando. Ao amanhecer escafedeu-se.


                                                          [A MORTE DO GUARDA-CHUVA]
                                                          sem título, circa 1937; xilogravura, 2/3; 25 x 24,5cm
                                                          impressão póstuma por Reis Júnior, 1976; Coleção Banco do Estado do Rio de Janeiro


1 Penteado usado na Rússia no século 19, que deixava as madeixas caindo sobre  a testa. A expressão se deve a Joseph Kapul, tenor francês que cantou na Ópera de São Petersburgo na época de Tchekhov e foi um criador de moda entre os russos.
2 Revista espiritualista  publicada em São Petersburgo na época de Tchekhov.
3 “Cá entre nós”, em francês.
4 trata-se da bailarina italiana Virginia Zucci (1849-1930). Zucci chegou a São Petersburgo em 1885, atuou e, balés de Marios Petipa, nome fundamental na história do balé clássico russo, tornou-se muito popular e, entre 1885 e 1888, integrou o corpo de balé do teatro Mariinski de São Petersburgo, dançando também em Moscou e Odessa.

Fernanda Lopes Torres é pesquisadora e historiadora da arte. Graduada em Desenho Industrial pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, tem mestrado e doutorado em História Social da Cultura pela PUC-Rio. Atua hoje como pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) e professora do Instituto de Artes da UERJ, tendo publicado artigos em revistas universitárias e na revista Novo Estudos do CEBRAP.

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