domingo, 25 de julho de 2010

A outra


Quando era mais nova, eu conseguia transpor todas as descobertas, desamores e inquietações que somente uma adolescente de 15 anos consegue sentir, e transformá-las em poesia.
Escrevia poemas quase todos os dias, principalmente, durante aulas que me sufocavam e que me limitava a pensamentos pragmáticos e lógicos.
Hoje, não consigo ter a mesma leveza, a sutileza das palavras me abandonou e quando escrevo algo já não tem mais estrofes, versos ou rimas. São palavras corridas, com orações subordinadas ou não, que enchem as laudas do meu computador.
As palavras são ásperas, críticas e às vezes levemente irônicas. E como uns textos são tão diferentes dos outros, não encontrei um gênero para catalogá-los, assim, recentemente, tomei a liberdade de chamá-los de coisas.
Afinal, chamá-los de crônicas ou contos, seria colocá-los no mesmo gênero que autores como: Fernando Sabino ou Luis Fernando Veríssimo estão, e sei que não é o caso.

Hoje, tomo a liberdade e a coragem de expor uma dessas minhas coisas na coluna Drops Cultural.
Essa se chama
 A outra

Não, não e definitivamente não.
Olho para baixo, vejo o piso do banheiro, o mesmo de sempre, não mudou nada. Em volta, todas as outras coisas também no mesmo lugar, do mesmo jeito de sempre. Tudo estático, tudo igual. Naquele ambiente tão familiar eu me sentia uma estranha, a única que não era a mesma, a única que já não se reconhecia, mesmo procurando atentamente no espelho, por algum sinal ao menos, do que foi antes.
Sentei-me no vaso, fiquei ali parada, pensando por alguns instantes. Seria possível encontrar alguma resposta para toda aquela confusão em minha mente, para toda aquela minha necessidade repentina de me encontrar. Talvez fosse possível.
Queria o maior encontro que o ser humano pode ter em sua vida, o encontro com seu eu. Não, não é conflitante e também não envolve metafísica. É simples, porém evitado, talvez por ser doloroso, afinal a verdade sempre dói.
O meu encontro, meu melhor encontro. Era isso que queria, era nisso que me concentraria agora. Levantei-me, tinha um encontro.
Fui tomar banho, e durante o banho não consegui pensar em outra coisa, estava muito ansiosa. Lavei meu cabelo, sentia a textura e o comprimento dele, estava tão diferente, será que agradaria?
Fui ao armário, escolhi meu melhor vestido, aquele que me deixava mais jovem e mais feminina. Escovei meu cabelo e depois me maquiei. Olhei mais uma vez no espelho, estava bonita, mas ainda insegura.
Sentei no sofá da sala e apanhei um livro para folhear, os minutos não passavam. A campainha tocou, corri para atender, e era a outra. Ela me olhou dos pés a cabeça, depois fez o mesmo com o resto da sala e por último cumprimentou-me. Sentou-se ao meu lado no sofá, ofereci alguma bebida, mas ela não aceitou.
Era ela mesma, aquela que passou anos do outro lado do espelho apenas me olhando, aquela que eu nunca pedi opinião, aquela que durante esses últimos 15 anos da minha vida tem sido apenas a outra e nada mais.
Perguntou o que eu queria com ela agora, sendo que nunca tinha dado importância ao que ela pensava. Bem, na verdade eu também não sabia ao certo o que tudo aquilo significava para mim ou o que eu pretendia com aquilo tudo. Apenas pedi para ela continuar e me ouvir.
Ela concordou e permaneceu ali, sentada, me olhando, aqueles olhos que eu tão bem conhecia. Comecei, eu precisava falar o que estava sentindo há dias ou seriam meses? Abri minha boca e as palavras começaram a saltar, como se elas já estivessem ali, há muito antes de eu saber, como se durante minha vida toda eu estivesse esperando por aquele momento.
Ela me olhava atentamente, parecia compreender tudo que se passava comigo. No entanto, não conseguia saber se compartilhava da mesma opinião. Seu rosto era vago, não continha expressão alguma.
Continuei falando por um longo tempo, parecia que poderia continuar falando pela eternidade. E quando terminei, quando me calei, cai aos prantos. Meu choro contido durante todos esses anos, todos esses anos que fingi ser forte. Chorava como uma criança, aquela criança que reconhece seu erro. Ela me abraçou, apanhou minha cabeça e colocou-a docemente sobre seu colo e começou a alisar meus cabelos.
Quando finalmente me acalmei, ela falou. Suas palavras, sua doce voz, ecoaram pela sala toda. Há anos não sabia o que era aquilo, há anos eu não sabia como era sentir aquilo. Disse que estava disposta a me perdoar, disse que pessoas erram, e que isso era normal.
Olhei-a bem nos olhos, sorri, e senti que ela também sorriu com os olhos. Pensei em abraçá-la, mas percebi que minha situação não permitia, afinal foram muitos anos de descaso. Ela se despediu, caminhou em direção a porta e antes de sair disse para eu não esquecer jamais daquela noite. Concordei com a cabeça e ela foi embora.
 Depois disso, fui para meu quarto, talvez pudesse até sonhar, talvez pudesse até voltar a sonhar. Talvez minha vida mudasse completamente, ou talvez eu me conformasse com a frase que li num livro enquanto esperava a outra, era mais ou menos assim: “Você não é quem você pensar ser, você é apenas a cópia mal feita daquilo que um dia sonhou ser”.






Ana Paula Nunes é jornalista, Pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura pela Universidade de São Paulo/USP. Coordenadora de Comunicação da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades. Escreve aos domingos na ContemporARTES.

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