terça-feira, 21 de setembro de 2010

A metamorfose de Luiza





Há pouco tempo, me deparei com um texto crítico sobre os poemas de uma autora da poesia portuguesa contemporânea chamada Luiza Neto Jorge. O que prendeu minha atenção, em um primeiro momento, foi a forma distinta do poetar desta mulher, além disso, a maneira como ela retrata o corpo também é extremamente instigante.

Esses fatos, juntamente com o fato de que a obra desta poeta é leitura obrigatória para o processo seletivo de mestrado que prestarei, me levaram a adquirir um livro dela chamado 19 Recantos e Outros Poemas e mais tarde, por vontade própria, Corpo Insurrecto.



A singularidade da poesia de Luiza em um primeiro momento me chocou, depois me encantou. O choque, provavelmente, se deu devido ao hermetismo da linguagem poética desta autora, da grande utilização de metáforas. Ela pertenceu ao grupo de poesia português nomeado Poesia 61, que buscou renovar a linguagem poética, para isso, explorou novas possibilidades linguísticas no interior do discurso e na passagem deste para a escrita. Na obra de Luiza há o que muitos estudiosos chamam de consciência feminina da escrita com a invenção de uma poesia crua, na qual o corpo da linguagem e o corpo do sujeito poético se confundem.


A meu ver, as obras desta poeta são marcadas pelo feminino que desbrava continentes, que ultrapassa as fronteiras do real em busca de revelar-se. Há o olhar feminino sobre o mundo, sobre a vida, sobre a ditadura, sobre a guerra, sobre o cotidiano. Para exemplificar, hoje, apresentarei a vocês um dos poemas que mais me encantam, “Metamorfose”:




METAMORFOSE

Quando a mulher
se transforma cabra
marés anuíram
ao ciclo recente
das águas
ah
as bombas
desceram em paraquedas
antes dos homens

Esta é a revolta
a metamorfose
onde equinócios mecânicos
abortam os filhos

Cabra só cabra
espeta
nas pernas dos pagens
os cornos alucinantes
como para ergueres dos mortos
a necessidade da vida
antes

A mulher se transformou cabra
ritual de emigração
em resposta à raiz
constante das árvores
ao grande silêncio
empastado nas letras
de imprensa

Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem notas
dos gritos da música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
volta mulher –
ressureição)

Tantos sentidos podem ser depreendidos destas palavras. Falarei sobre a minha leitura destes versos, que mostram uma mulher em transformação, talvez, não por vontade própria, mas num “compasso de fúria” de revolta contra os “chefes da orquestra”, aqueles que comandam as vidas e o mundo, que fazem guerras, que lançam bombas e soldados em paraquedas, que através de “equinócios mecânicos/ abortam os filhos”, matam os que viveram e os que estavam por conhecer a vida.

A mulher, perante esses acontecimentos, se torna uma cabra, um animal forte, que vive em lugares mais inóspitos, ela tem necessidade de “espetar nas pernas dos pagens”, de descobrir as verdades acobertadas, de lutar por sua vivência e a dos demais, a ponto de se fazer “desatenta de origens” e de, principalmente, apontar todo aquele “grande silêncio/ empastado nas letras/ de imprensa”. Essa mulher transformada em cabra, quando volta a si, volta como em ressurreição, como espírito limpo, claro, como alguém que sabe da sua importância e do bem que possa ter feito aos demais.


Minha leitura se baseia, principalmente, no contexto pós-61 em Portugal, marcado pela guerra com as ex-colônias africanas, que se estendeu até abril de 1974. Luiza escreveu muitos de seus poemas dentro do contexto de guerra colonial e ditadura portuguesa, talvez este fato contribuiu para o hermetismo linguístico, para o excesso de metáforas em seus poemas.

Quem gostou da poesia de Luiza Neto Jorge pode encontrar aqui mais alguns poemas.












Rodrigo C. M. Machado é Graduando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa e, neste momento, pesquisa a representação dos corpos na poesia de António Botto.

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