IMPRESSÕES ACERCA DE Caio F.
[Virando a noite pelo avesso da noite]
Esse é um texto oportunista que quero dividir com o leitor dessa coluna. Estamos concentrados na produção do espetáculo Pelo avesso da noite, uma homenagem aos 15 anos da ausência/presença de Caio Fernando Abreu, poeta a quem devo boa parte da minha formação como homem e artista.
Convidado a escrever sobre a peça, especialmente sua concepção cenográfica e trilha, fiquei lembrando Patrice Pavis, para quem o texto cênico é fruto da composição de vários códigos que o encenador mobiliza na estruturação de uma gigantesca partitura, em que espaço, ator, texto verbal, música e demais matérias teatrais traçam figuras, ritmos, organizações formais, cadeias de motivos e atitudes, quadros estáticos e em movimento, mutações de situação e de ritmo, na organização de um discurso teatral de múltiplos enunciadores.
Então começo a falar que essa homenagem que prestamos a Caio é multifacetada, plural. Dois planos, dois atos, dois campos astrais.
De acordo com os primeiros indicativos, nossa metáfora inicial, nossa trilha sonora de trabalho são os noturnos, gênero musical do século XIX, afinal, como afirma o Diretor, é uma peça de um homem “virando a noite pelo avesso da noite”.
De todas as pistas dadas por Caio, seja através de suas próprias falas, seja através de seus personagens, os astros ocupam espaço privilegiado. Assim, as estrelas noturnas são metonímias de nosso processo de construção e, tal como para os românticos do século XIX, se identificam com a alma do poeta.
Num primeiro momento resgatamos o lado lírico e melancólico de Caio, sua produção mais sentimental e solitária, sua crise como sujeito contemporâneo e o ambíguo desejo de amar. A cenografia abraça esse universo. Universo de poucos elementos que remetem ao tempo que viveu em Saint Nazaire, na França. As noites frias de Paris o sufocam e sugerem sobretudos compridos e elegantes, sua máquina de escrever Olivetti Lettera 22, vermelha e portátil, é sua companhia de todas as horas, além dos livros, muitos livros que mostram a diversidade cultural que o alimentava.
Nesse cenário Caio escreve e reflete, é existencial, profundo, revela sua fascinação pela morte e os desajustados, pensa sobre o amor e sua falta. Conhaque e cigarros também o acompanham. A trilha sonora, cantada e ouvida reforça o peso de suas reflexões e suas principais inspirações nacionais e estrangeiras. Ele ouve Joana Francesa, do Chico na versão emocionante de Daniel Szafran e Serge André Mor, mas ouve também Patrick Bruel, Badi Assad, Elis, Angela Ro Ro e Cida Moreira, suas amigas e intérpretes preferidas. As músicas, os intérpretes, acentuam a densidade e o clima.
Na segunda parte, os astros mudam e revelam um outro Caio, uma outra faceta, desbocada, irônica, “naja”. Caio, aos poucos, vai abandonando seu lado mais melancólico e assume-se como Jacira, uma espécie de drag, musa performática do basfond paulista.
Nesse cenário, a noite-melancolia sofre uma mutação, passa a receber os boêmios e “ex-cêntricos”, os loucos os bêbados, os outros caios, o Caio inclassificável, o Caio-abobrinha, o Caio pop. A noite ganha ares mais arejados e leves. Por baixo do sobretudo, roupas femininas, sensuais e provocativas. Aos poucos o público vai percebendo a metalingüística proposta, o ator da primeira cena se transformando no personagem da segunda. O público assiste a essa preparação, o ator se maquiando, se “montando”.
A trilha é mais alta astral. Ela dubla uma música de Laura Finocchiaro, Jandira bandida, mas também ouve Rita Lee, ovelha negra, claro. Também dubla em inglês Dream a little dream of me, na voz inconfundível de Cida Moreira.
Os signos aqui, não servem só para criar uma “polifonia significante”, como atestou Barthes, uma espécie de “percepção ecumênica de artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior”, mas para fazer uma crítica em ato da significação.
Por enquanto é isso.
Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.
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