sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O movimento anárquico e a retomada do poder em Ensaio de Orquestra de Felllini


Depois da parceria com Roberto Rossellini em Roma Città Aperta, 1945, e Paisà, 1946, Fellini preconizou o esgotamento do movimento cultural neorrealista e optou em seguir solo, delineando seu próprio caminho, encarando o desafio de fazer cinema num momento em que as dores e as incertezas do pós-guerra italiano ainda pulsavam intensamente. Com uma levada mais alegórica, surreal e entorpecida pela ludicidade dos espetáculos, sugeriu protagonizar um tom mais irônico e fantástico aos seus filmes, distanciando-se assim definitivamente de seus antecessores neorrealistas. 

Sua paixão pelos HQs e sua vocação pelo desenho, principalmente pela caricatura, deu-lhe inspiração para criar personagens com vestimentas e trejeitos únicos que nasciam no papel e se consolidavam nos sets de filmagens, para depois brilharem na telona ou na telinha de TV. 
Cenas do filme La Strada, 1954 ( Gelsomina e Zampanò)
Um exemplo dessa bem sucedida forma de criar suas personagens pode ser visto logo nos seus primeiros filmes como em La Strada, 1954, na criação das personagens Gelsomina – Giulietta Masina ( a Clown  indefesa) e Zampanò – Antony Quinn ( o cigano forte do circo ). A personagem Gelsomina nasceu da execução de vários esboços nos quais Fellini quis se aproximar ao máximo da idéia de representar um clown ingênuo e triste. Nos desenhos preparativos aparecem uma mulher com um chapéu coco, cabelos espetados, paletó largo e desajeitado, rosto pintado, gravatinha borboleta e sapatos largos que lembra bastante Carlitos, a personagem de Charles Chaplin.
As referências óbvias de Fellini a um universo aparentemente próprio, fez com que alguns pensassem seus filmes como obras meramente autobiográficas. No entanto é mais provável que Fellini tenha usado seus delírios de infância e de adolescente para inserir-se como mais uma personagem, que conta histórias de uma Itália sofrida, desestruturada pela guerra e pelo conseqüente domínio cultural norte americano. A opção em criar personagens caricatas, como no desenho, tinha o propósito de nos fazer  rir de nossas próprias deficiências, mazelas e dores. O relaxamento provocado pelo riso pode servir como uma espécie de estranhamento brechtiano, provocando uma espécie de distanciamento, fazendo-nos repensar a respeito de nós mesmos. O cenário fílmico felliniano era povoado por personagens exóticas, excêntricas e até bizarras que, de alguma forma, representam a estrutura política, cultural, religiosa e social da Itália de Fellini.
Cabíria em As Noites de Cabíria
Portanto, partindo do pressupondo de Luis Renato Martins que em seu livro, Conflitos e Interpretações em Fellini, defende um Fellini bem consciente e acordado,  é possível afirmar  que o cineasta utilizava os espetáculos para se embrenhar  numa aguda crítica à sociedade italiana. Compartilho dessa idéia reafirmada por Ettore Scola, que diz acreditar que Fellini foi o mais político dos cineastas italianos. É por esse viés que assumo o desafio de falar de Fellini.
Na semana passada participei do IV Simpósio de Política e Cultura: Diálogos e Interfaces, do mestrado em História da Universidade Severino Sombra, em Vassouras, Rio de Janeiro. Apresentei um trabalho sobre o filme Ensaio de orquestra, de Fellini.  Achei interessante fazer uma prévia desse meu trabalho para fechar a semana com uma aura felliniana.
O copista em Ensaio de Orquestra
O trabalho intitulado: O movimento anárquico e a retomada do poder em Ensaio de Orquestra de Felllini, é fruto de mais uma inquietação minha na intenção de defender a idéia de que os filmes de Fellini propõem um pensamento politizado em relação ao Estado, ao autoritarismo, ao fascismo e a subserviência. O fascismo aparece aqui, nesse filme, não somente como algo datado, mas principalmente como uma postura arraigada e integrada ao comportamento social e cultural do povo italiano.
A orquestra continua a tocar nos escombros

Ensaio de Orquestra (Prova d’Orchestra), é um filme de 1978, que se passa nos fins da década de 1980 e que tem como pano de fundo um período de ascensão de algumas correntes da FAI. A FAI (Federação Anarquista Italiana) tinha a idéia de fazer acordos com os humanistas, com os anarco-comunistas e os sindicalistas. Mas a FAI, em 1968, foi subdividida em outras organizações como a GIA, que eram contra os órgãos e aos sistemas, inclusive a dos sindicatos. No filme vemos esse cenário externo propor uma paralelo com as cenas que acontecem tão somente numa sala de ensaio.
Sala de ensaio da orquestra
O cenário do filme retrata um momento de tomada de consciência dos músicos em relação a  subordinação pregada pelo maestro da orquestra. No ensaio de uma orquestra os músicos jovens e velhinhos rebelam-se contra o poder do maestro. O ensaio acontece numa antiga tumba que possui uma ótima acústica e que está carregada de significados por ter sido um  local ligado a papas e bispos, possuindo todo um fardo histórico. O Velho copista é a personagem que costura o tempo passado com o tempo presente. O maestro alemão representa o fascismo, a figura do Estado, do poder. A televisão está ali para filmar o ensaio da orquestra para o sindicato. A televisão, o sindicato, os músicos e o maestro estão em tensão pois ocupam o mesmo espaço, porém possuem propósitos distintos.
Os músicos não mais acreditam no sindicato nem no poder do maestro. Não consideram a história pregressa daquela sala  como algo importante, pois não retrata a idéia do presente; o copista saudosista não consegue voltar para o passado, diante desse impasse.
Surge um movimento anárquico encabeçado pelos músicos que, entediados com a autoridade do maestro, passam a questioná-la, desencadeando uma verdadeira batalha.
Fellini cava o caos que parece vir de fora para dentro mas que se constitui também de dentro para fora. Mesmo na mais sublime arte dos músicos eruditos, a descrença incendeia o confronto com o poder. O metrônomo entra no lugar do maestro, as pichações nas paredes do antigo lugar é invadido pelas palavras fortes de abaixo o poder.
O filme invade a alma dos músicos que se rebelam e mostram seu descontentamento com a música, com seus instrumentos e o seu trabalho. A televisão assiste a tudo; passível, torna-se cúmplice primeira e eterna das intimidades, das incongruências do mundo moderno. A luz chapada e forte denuncia a falta de naturalidade, a inquisição e o ostracismo. O que pode sobrar diante do caos.
Fellini subverte a ordem, pondo em cheque a figura do maestro, do sindicato e denuncia a televisão como testemunha ocular do crime, presenciando desde a mais íntima conversa até as grandes catástrofes. O que faremos diante da mídia? Diante do descrédito? De que forma a ausência de poder poderá ser a solução para um povo que ainda não discute em grupo, que não sabe opinar e que precisa ainda do maestro alemão para guiar  seus passos?
Assistam Ensaio de Orquestra e viagem nas incertezas de Fellini.
Queria agradecer ao Eduardo Scheidt, a Ana Maria Dietrich e a Rosangela de Oliveira por terem me acolhido com tanto carinho no Simpósio e desde já dizer que amei conhecer a Ana Maria Moura, o Ney Lared, o André, o Rubem, a Soraia e tantos outros.
Beijos a todos
Bom Filme!
A última trilha sonora de Nino Rota



Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.

1 comentários:

Soraia O Costa disse...

Também amei conhecê-la, me tratou tão bem, eu debilitada e nervosa antes da apresentação dando trabalho!! rsrs

Sobre o Fellini, já adorava ele, mas não conhecia a produção Ensaio de Orquestra. Depois de sua apresentação e agora com o texto muito bem embasado, ficou muito mais claro o potencial do Fellini.

Vou divulgar sua matéria! Parabéns e muito obrigada por tudo!

13 de dezembro de 2010 às 23:11

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