sábado, 21 de maio de 2011

Considerações sobre o cinema soviético pós-guerra.




A mitificação de Stalin tornou sua presença onipresente em vários sentidos do cotidiano da sociedade soviética, seja através da arquitetura, pintura, literatura, organização partidária: a imagem de Stalin, após a guerra, adquiriu o status de mito. Era bastante comum que nas casas soviéticas o retrato de Stalin, estivesse pendurado nos locais mais nobres da parede. O culto a sua personalidade foi muito eficiente em enraizar no imaginário da população que a URSS só sobreviveu à guerra devido ao papel que Stalin desempenhou. O entourage de Stalin se esforçava para agradá-lo conferindo títulos, como o de “Generalíssimo”, que ele desprezou, pois só soube que tinha sido condecorado, através da leitura matinal do Editorial do Pravda, como narra Volkogonov em um dos seus livros .









Seu interesse pelo cinema aumentou exponencialmente ao seu isolamento. Se antes da guerra já era um cinéfilo inveterado, com o envelhecimento e o passar dos anos, ele dedicou bastante tempo, para assistir e opinar sobre os mínimos detalhes dos filmes e da indústria de produção cinematográfica soviética. Isso criou uma atmosfera de policiamento semelhante aos anos de terror da década de 1930’s, quando a produção de cada filme era fiscalizada nos seus mínimos detalhes. Taylor possui uma análise bastante inovadora e provocativa sobre a influência que o cinema teve sobre Stalin, durante estes últimos anos de vida e de pouca exposição pública.
A Imagem que os historiadores derivam da união Soviética através do cinema soviético do período de Stalin é uma ilusão, como uma vila Potiómkin. Mas como sabemos a partir do discurso secreto de Kruschióv, para o 20° Congresso do Partido em 1956, foi também essa imagem que o próprio Stalin extraiu do cinema Soviético. Um cinéfilo ávido, que nunca deixou os estreitos limites do Kremlin, ou de sua casa de campo nas proximidades, a visão de Stalin da realidade soviética foi ditada exclusivamente pelos filmes e cinejornais a que ele assistiu. (Taylor, 1990, pag. 48)


Este interesse de Stalin se refletiu na criação do Ministério do Cinema em 1946, que teve como primeiro ministro Ivan Bolshakóv. (Beumers, 2009, pag. 107). A elevação do status da estrutura pública que controlava o cinema na URSS não se refletiu, imediatamente, em uma quantidade satisfatória de filmes produzidos por ano, principalmente para um país, com as dimensões e pretensões como a URSS. O número de filmes realizados na URSS decaiu a partir de 1945, e manteve esta tendência até o fim do Stalinismo. Para efeito comparativo, neste período, proporcionalmente foram produzidos menos filmes do que durante a Segunda Guerra. A destruição da infra-estrutura industrial soviética não explica, totalmente, o motivo de a produção ter caído tanto, pois a economia soviética não demorou muito tempo para retornar aos patamares de produção, anteriores ao período da guerra. A repressão que aconteceu a partir de 1946, sobretudo no campo das artes foi o fator principal da baixa produção fílmica e de outros ramos da indústria cultural. Neste sentido, devemos expor, ao público, alguns dos documentos oriundos de fontes primárias e secundárias que permitem uma maior interpretação do fenômeno repressivo e controlador, no qual o papel de Stalin era central, principalmente, quando a repressão envolvia questões culturais.

Carta de G.V Aleksandrov para I. V. Stalin. Publicada na Glasnost, 28 novembro- 4 dezembro de 1991, no. 48
6 de março de 1946. Moscou

Camarada I. G Bolshakóv informou de sua opinião negativa em relação à segunda parte de “Ivã o Terrível” de S. M. Eisenstein, bem como da decisão da TSK que proíbe a liberação da película para exibição devido a sua natureza “anti-artística e anti-histórica”.
O objetivo da minha carta não é
para defender o filme!
As circunstâncias excepcionais e extraordiná
rias forçam-me a incomodar você. Entre os trabalhos críticos sobre “Ivã o Terrível”, tanto a primeira, quanto a segunda parte evocam duras criticas... Em 02 de fevereiro, Eisenstein concluiu os trabalhos sobre o filme e apresentou o material ao laboratório de cinema, mas algumas horas depois Eisenstein, de repente, sofreu uma angina grave no peito, que durou 36 horas. Apenas a intervenção médica e a aplicação de medidas enérgicas salvou-o da morte.
Tendo ficado doente assim de repente, Eisenstein me pediu para mostrar o filme para o Conselho das Artes da Comissão de Cinema. A maioria dos membros do Conselho das Artes teve parecer negativo do filme e submeteu-o a duras criticas - tendo tomado conhecimento, no entanto, que o trabalho foi feito com muita consciência, que foi original em
métodos criativos, novo, em seus meios de expressão e altamente profissional. Também notaram que as conquistas foram grandes, na área de domínio criativo técnico da filmagem em cores, de acordo com o novo método. O Conselho das Artes decidiu encarregar a Comissão a apresentar propostas para corrigir e acrescentar ao novo filme, mas as condições de Eisenstein eram tão ruins, que não poderia haver nenhum acréscimo em breve.
Eisenstein insistiu em sair do hospital para qu
e o filme fosse mostrado para você, Iossif Vissariónovich. Sua visão do filme tornou-se objeto de sua vida. Esta visão o preocupou mais do que qualquer outra coisa.
Ele investiu mais de cinco anos de sua vida, e de trabalho, neste filme. Ele filmou em condições difíceis, em Alma- Ata, e ele não tinha mais nada na vida além deste filme...
Conhecendo você, Iossif Vissariónovich, como um homem que está atento às pessoas e a infortúnios, um homem sensível e emocional e por outr
o lado, tendo conhecido o diretor por vinte seis anos, como uma figura ativa em nossa cinematografia, como um mestre de muitos mestres de renome, como fundador do cinema soviético, e , tendo em conta as circunstâncias extraordinárias acima, eu seria tão ousado a ponto de lhe pedir a não tomar uma decisão final sobre “Ivã o Terrível” até a recuperação de seu autor...
Estou me Voltando para você, como diretor artístico da Mosfil
m e um ex-aluno de Eisenstein.
Com Profundo respeito e amor por você,
Gr. Aleksandrov.



Algumas características do culto à personalidade e a função que Stalin tinha na vida cultural são evidentes na leitura do texto acima. Aleksandrov, logo no inicio do texto, ressaltou que o objetivo da sua carta não era a defesa do filme. Porém cumpriu esta função de maneira implícita, quando ressaltou que os membros do Conselho das Artes tinham dado a oportunidade de Eisenstein modificar o filme, devido aos avanços técnicos que o mesmo apresentava. Além disso, de maneira muito corajosa, expôs a Stalin o quadro de saúde de Eisenstein e as suas conseqüências para as mudanças que o filme deveria sofrer, devido as críticas que tinha sofrido, bem como a importância de Eisenstein para a cinematografia soviética. A carta também revelou a admiração, respeito e temor dos burocratas do Conselho das Artes: o que importava, mesmo, era a opinião de Stalin. Isso fica claro, nas entrelinhas, principalmente quando Aleksandrov revelou a Stalin que o objetivo da vida de Eisenstein, neste momento, era saber qual a opinião do Generalíssimo sobre a segunda parte de “Ivã o Terrível”
A conjuntura da indústria soviética, neste período, não poderia ser pior para o ambiente criativo. Além de a produção ter caído, e a censura ter se tornado pior do que nos anos 30, os temas que foram filmados não retratavam mais a realidade e os problemas da classe trabalhadora. Na década de 1930, mesmo com um sistema repressivo que tentou formatar um modelo fílmico, o cotidiano dos trabalhadores e os problemas recorrentes da organização soviética do trabalho foram representados em alguns filmes. Porém, com a vitória soviética, o cinema na URSS sofreu uma “despolitização” sem precedentes, na sua breve história. A representação do proletariado, como classe dominante, e as implicações disso na vida social se tornou um tema fora do padrão e, por isso, ele deixou a ser adotado na escolha dos roteiros.
Mesmo em 1930s, poucos filmes tinham lidado com trabalhadores: depois da guerra este aspecto da vida soviética desapareceu completamente de vista. Entre os 124 filmes que foram feitos, apenas quatro lidavam com trabalhadores, e destes “A Grande Virada” e “Fogos de Baku” não foram distribuídos. Os dois filmes restantes foram “O Mineiro de Donbass” de Lukov e “Longe de Moscou” de Stolper, filme baseado no romance de Vassilii Ajáev. O filme de Stolper destinou-se a mostrar que, em tempos de guerra, a produção de óleo foi tão importante como a luta contra o inimigo no front. Os Filmes do pós-guerra, certamente, não celebraram nominalmente a classe dominante, o proletariado. (KENEZ, 2001, pag. 205)

Os gêneros adotados pelo cinema soviético, no Pós-Guerra, não foram tão plurais quando comparados com a década de 1920. Kenez, observa que os filmes que retratavam expedições científicas ficaram muito famosos nesta época, isso, inclusive vai perdurar até depois do Stalinismo com filmes como “Carta Que Não Foi Enviada”, URSS, 1959, de Mikhail Kalatazov, cujo enredo focou na expedição de geólogos em regiões remotas da URSS. Porém, outros gêneros, que fizeram bastante sucesso neste período, foram às comédias e os filmes feitos para crianças, bem como alguns desenhos animados de extrema qualidade técnica, e que não ficam devendo, em nada, aos produzidos na Disney.




Referências Bibliográficas.

CLARK,K & DOBRENKO, E (orgs).SOVIET CULTURE AND POWER: A History in documents, 1917-1953. Ed. Yale University Press. London & New Heaven, 2007.
TAYLOR, R. Soviet Cinema – The Path To Stalin. In: History Today.V.40, Issue 7. UK. 1990
VOLKOGONOV, Dmitri. Stalin: Triunfo e Tragédia. V.1, V2. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. 2004.
KENEZ, P. Cinema and Soviet Society: from the revolution to death of Stalin. Ed. I.B. Tauris & Co, LTD, New York, 2009.






Diogo Carvalho é historiador pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente desenvolve mestrado pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade(UFBA), onde realiza pesquisas sobre o cinema soviético. Membro da Oficina de Cinema-História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA). Trabalha com os seguintes temas: cinema, culturas,História, cultura digital, política humanidades e literatura beatnik. diogocarvalho_71@hotmail.com








3 comentários:

RVivas. disse...

Gosto da ideia de tratar a cultura como um objeto cuidadosamente manipulado pelo poder político de acordo com seus interesses. Ideia, alias, até já muito explorada. Mas o que eu gosto mssmo aqui, é ver que o seu texto quer ir além da simples instrumentalização da sétima arte pelo Estado, mostrando como a cultura também (in)forma o poder político e o instrumentaliza. Viva a dialética (!). Também neste ambiente inegavelmente complexo que é o cinema soviético, filmes captam as feições de uma época: seus valores, suas projeções estéticas, seus interesses. Por outro lado, porém, o cinema também cria valores e inspira atitudes, mesmo em formatos supostamente descomprometidos como os desenhos animados. Não me admira que Stalin estivesse de olho... Mas volto a dizer: a sua grande sacada aqui, na minha humilde opinião, é destacar o desaparecimento dos trabalhadores. Eu gosto dessas pequenas ironias que descontroem certas versões da história.

22 de maio de 2011 às 14:24
Rodrigo Machado disse...

Sua matéria é muito boa mesmo. Não é de hoje que sabemos que a Arte pode ser utilizada para manipular, reprimir, passar imagens e ideologias de determinado governo. De outro lado, ela pode ser extremamente combativa.
Viva a Arte! Utilizemo-na para o bem.
Parabéns pela matéria!

22 de maio de 2011 às 16:53
Ana Dietrich disse...

tbém faço o coro aos dois comentários, sendo que é sempre uma delícia lê-lo Diogo nos trazendo informações às vezes solapadas pela historiografia com as questões que envolvem o cinema soviético. Continue!

26 de maio de 2011 às 17:15

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