sábado, 6 de agosto de 2011

Exílio e Poesia na Lírica Portuguesa Contemporânea




O poético é o estranho necessário a fim de que sejam atravessados os automatismos do cotidiano.
Mário César Lugarinho


Sabe-se que a ditadura deixou marcas profundas na população portuguesa. Durante 41 anos, de 1933 a 1974, Portugal viveu sob um regime totalitário, conhecido como Salazarismo. Esse regime, censurava, coibia, calava as vozes dos que contra ele tinham coragem de se manifestar. Muitos artistas, escritores, poetas, pensadores, políticos, enfim, muitas pessoas viram-se obrigadas a buscar exílios em outros países como França, Brasil, EUA, entre outros.


Ao exilarem-se, as pessoas deixaram para trás a pátria amada, parentes, amigos, conhecidos, sentiram-se muitas vezes sem lugar no mundo, injustiçadas, esquecidas pelos homens e deuses que fechavam os olhos para as barbaridades que contra elas eram realizadas.

Romances de autores portugueses consagrados como António Lobo Antunes, José Saramago, Lídia Jorge, entre outros, refletiram sobre as injustiças cometidas, sobre a política fracassada exercida pelos seguidores de António de Oliveira Salazar, questionaram a História de Portugal, a maneira como os portugueses relacionavam-se com o restante do mundo. Há também muitos poetas que transpareceram na tessitura de seus poemas o descontentamento, o sofrimento, perdas, anseios de mudanças, que, de alguma maneira, dialogaram tanto com a política quanto com a História lusitana.

Há dois poetas portugueses, destacados nesta matéria, que exilaram-se durante a ditadura em Portugal, são eles Manuel Alegre e Jorge de Sena. Ambos elaboraram poemas nos quais o eu-lírico relata um pouco do sofrimento exprimível que a vida de um homem andante pelo mundo pode ter, revelam também as adversidades com as quais o ser humano privado de suas raízes culturais, étnicas depara-se.

O poema de Manuel Alegre que gostaríamos de destacar é chamado “O primeiro soneto do Português errante”:

Eu sou o solitário o estrangeirado
o que tem uma pátria que já foi
e a que não é. Eu sou o exilado
de uma país que não há e que me dói.

Sou  ausente mesmo se presente
o sedentário que partiu em viagem
eu sou o inconformado o renitente
o que ficando fica de paisagem.

Eu sou o que pertence a um só lugar
perdido como o grego em outra ilíada.
eu sou este partir este ficar.

E a nau que me levou não voltará.
eu sou talvez o último lusíada.
do porto que não há.

Nesse poema, percebemos um eu-lírico que, em primeira pessoa, narra todas as suas desventuras, as consequências não só físicas, como também psicológicas que implicam uma evasão. Esse mesmo sujeito poético diz sentir-se “estrangeirado” e, paradoxalmente, fala que possui uma pátria, que não é sua. Há um sentimento um pouco contraditório de pertencimento e não pertencimento, de possuir e não possuir, e a conclusão mais iminente é a de que tudo isso “dói”.

Mesmo que em presente em algum lugar, o eu-lírico sente-se ausente, parte de si foi deixada para trás. A incompletude que ele sente dentro de si, torna-o uma “paisagem”, algo que não possui vontade, ação e somente atua perante os demais. Isso, provavelmente, ocorre de maneira totalmente involuntária, uma vez que o sentimento de não pertencimento que caracteriza esse sujeito faz com que ele sinta-se incompleto em qualquer lugar distinto de sua terra, sua casa.

Assim como na Ilíada de Homero, na qual há anos de lutas para os aqueus conquistarem a cidade de Tróia e em cujo enredo observamos que esses dez anos de luta foram de abdicação, de saudade, de distancia dos entes queridos por parte dos aqueus, no poema de Manuel Alegre, o eu-lírico diz sentir-se em outra Ilíada. Ele sente-se em outra luta, em outra situação que lhe causa sofrimentos.

A nau responsável por levar esse sujeito poético, de acordo com ele mesmo, “não voltará”, não retornará para buscá-lo. Ele diz ser o último lusíada de um porto inexistente, de um lugar físico que não existe, impossível de ser alcançado, mas que vive em seu coração e faz que guarde reminiscências, sentimentos em seu eu interior.




Já o poema de Jorge de Sena que desejamos destacar é o que encontra-se a seguir:

“Quem muito viu ...”


Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
Mágoas, humilhações, tristes surpresas;
E foi traído, e foi roubado, e foi
Privado em extremo da justiça justa;

E andou terras e gentes, conheceu
Os mundos  e submundos; e viveu
Dentro de si o amor de ter criado;
Quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

Não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
Em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
Será sempre sem pátria. E a própria morte,
Quando o buscar, há de encontrá-lo morto.


O sujeito poético de Jorge de Sena, inicialmente, aponta sentimentos e situações pelas quais uma pessoa injustiçada passou. Ela “sofreu”, trabalhou ao que parece contra a vontade, sentiu-se magoada, humilhada, traída, roubada, além de, por não possuir um porto seguro, uma terra a chamar de sua, e, por isso, viu-se obrigada a andar “terras e gentes”, a conhecer “mundos e submundos”. Essa pessoa tudo foi, o verbo ser utilizado no pretérito, indica, neste caso, que no presente esse ser não mais é, perdeu muito do que o caracterizava, constituía seu ser.

Nos deparamos com a afirmação de que “Apenas não viver lhe dava tudo” e perguntemo-nos o porquê dessa afirmação. Se pensarmos nas razões, em que alguém possa desejar a morte à vida, condizentes com a exposição feita no poema, poderemos vislumbrar que esse alguém apresentado já sente-se morto em vida, privado de vida, daquilo que lhe constituía. Esse mesmo ser “Será sempre sem pátria” e “A própria morte,/ Quando o buscar, há de encontrá-lo morto”, sem vida, sem o eu que lhe constituiu e que foi perdido injustamente.

Como observamos nos poemas apresentados anteriormente, as poéticas tanto de Manuel Alegre quanto de Jorge de Sena possuem uma reflexão sobre as difíceis situações pelas quais um eu expatriado pode deparar-se. Além disso, elas também, de alguma maneira, possuem marcas de um período de exclusão, de injustiças, de lutas e desencontros atravessados não somente por um único sujeito, mas por um povo privado de liberdade de expressão.

O leitor que interessou-se pela poética destes autores pode acessar sítios na internet que disponibilizam poemas por ele confeccionados (Manuel AlegreJorge de Sena ). Os brasileiros devem saber de antemão que no Brasil há certa dificuldade em conseguir livros destes dos poetas, quem desejar terá que importar tais obras.
Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.



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