Um Van Gogh para a burguesia, um Van Gogh neoliberal
Os serviços van Gogh dos bancos Real Santander, visando à proeminência no mercado e a superação da concorrência, são oferecidos para clientes que possuem renda mensal mínima de R$ 4 mil ou investimentos acima de R$ 40 mil que incluem espaços privativos nas agências; atendimento gerencial por telefone até a meia-noite 365 dias por ano e participação de encontros e palestras com especialistas em investimentos. No entanto, como foi possível conciliar um serviço reservado às elites financeiras, potencialmente ativas no mercado com um pintor marginalizado, crítico da sociedade de mercado, que vendeu apenas um único quadro em vida, que esteve ao lado de camponeses, tecelões, mineiros, enfim, da escória da sociedade?
Devemos levar em consideração que as grandes corporações (como é o caso destes bancos) não se envolvem com arte por gostar incondicionalmente da arte. Este envolvimento deve ser entendido como forma de distinção social da qual depende sua condição de elite e suas aspirações de classe. Não é a arte como arte, e sim a arte como propaganda, e a arte como propaganda é direcionada a um público-alvo (os clientes que possuem as condições acima descritas). A publicidade faz um trabalho de depuração, isto é, de limpeza das coisas que ela toma, mantendo apenas o lado positivo, entusiástico, festivo, agradável. Temos por objetivo mostrar a forma utilizada pelos bancos para tornar van Gogh o pintor ideal para este tipo de serviço bancário.
No caso de van Gogh, os bancos mantiveram o artista que foi forçado a dar as costas ao cenário humano com toda a sua injustiça para contemplar a calma demasiada grande da natureza (o artista alienado, com acentuado caráter individualista) em detrimento do artista que possui engajamento social, preocupação com a humanidade, principalmente com a classe trabalhadora. Esta divisão entre artista alienado e artista engajado encontra-se num determinado espaço e tempo: seu período holandês (1880-1886) é permeado pela crítica social; já seu período francês (1886-1890) é marcado pelo aprimoramento das técnicas pictóricas e sua total dedicação à natureza. E são justamente as obras do período francês que adornam as agências bancárias.
Dentre os gêneros de pintura “expurgados”, temos os retratos e auto-retratos (altamente valorizados no mercado da arte), o que aumenta a sensação de privacidade no ambiente e pelo fato de o próprio van Gogh não possuir um perfil de cliente van Gogh; as naturezas mortas que remetem a um ethos oposto aos valores do público alvo (como por exemplo, pares de sapatos e tamancos) e pinturas de gênero onde se representa o trabalho manual (gênero este da única tela vendida em vida), também avesso ao público alvo.
Antes da fusão dos dois bancos (prevalecendo a marca Santander), o banco Real oferecia em seu web site a chave para o desvelamento da contradição contida na escolha de van Gogh como o garoto propaganda para os serviços de segmentação alta renda, ao propor que o conhecimento da vida e obra de Vincent van Gogh permitiria perceber que a proposta, a filosofia e os valores do banco encontram neste artista um grande sentido. Percebemos, pelo contrário, que van Gogh se colocava ao lado daqueles que não possuíam perfil nem condições financeiras suficientes para ser um cliente van Gogh; sua arte era para os menos favorecidos, não para a burguesia. Mas a grande contradição reside no fato de que se van Gogh não tivesse ido contra a lógica do mercado e contra o ethos burguês, hoje estes mesmos bancos não poderiam utilizar de suas obras para atrair parte da burguesia para seus serviços. Temos até a impressão de o banco servir como mecenas para van Gogh, sendo que na verdade o banco (ou a classe que o representa), em sua respectiva época, foi seu algoz.
Não desconsideramos estética, histórica e artisticamente as obras selecionadas pelos bancos para adornar suas agências. Devemos admitir que esta vinculação foi extremamente bem feita, pois atende as necessidades do capital (o banco Santander mantém-se na liderança no segmento de alta renda, angariando 1,9 milhões de clientes, mantendo uma marca cuja autoria é de outro banco). A identidade visual é fidedigna ao pintor (van Gogh intitulou-se no período francês como “pintor de girassóis”). No entanto, sob o ponto de vista da Arte, somos levados, a partir desta experiência, a refletir no papel nocivo que possui a publicidade ao desconstruir, ou pelo menos atenuar, o aspecto crítico da Arte e sua utilização como uma forma de resistência, pois a publicidade instila aspectos ideológicos que lhe são convenientes nos seus próprios opositores.
Este texto foi elaborado com os resultados obtidos no projeto de iniciação científica do Centro Universitário Fundação Santo Andre – CUFSA 2011, intitulado “Vincent van Gogh e serviços van Gogh dos bancos Real Santander: a arte a serviço dos bancos”. Orientação de Carlos César Almendra
Davi Rizzate é nascido em São Bernardo do Campo, SP. Graduando em bacharelado e licenciatura do curso de Ciências Sociais do Centro Universitário Fundação Santo André – CUFSA. (3° ano)Bolsista do Projeto de Iniciação Científica – PIIC FSA 2010-2011. Membro do projeto de extensão Cineducação também pela CUFSA. Nas horas vagas freqüenta cursos e grupos de estudo que envolvem as diversas áreas das Humanidades, tais como Teologia, Artes e curadoria, Política, História, Museologia, Música, etc.
2 comentários:
Parabéns por essa pesquisa, realmente chama muito atenção o descaso que as grandes marcas têm pela arte ou cultura, e utilizam dessas para o marketing arrebanhador de clientes, desconsiderando o verdadeiro aspecto e sentido da arte e da cultura.
20 de outubro de 2011 às 21:10excelente iniciativa do Sr. David Rizzate ao abordar esse tema de uma maneira tão inteligente, temos o dever de apoiar e incentivar essa iniciativa.
Att. Marcos R Martinez
hum
22 de julho de 2014 às 15:24Postar um comentário
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