domingo, 18 de março de 2012

A fotografia, o tempo e os esquecidos nos embates de memória.


 “Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nome de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes? (...)
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os césares? (...)
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.”
 – “Perguntas de um operário que lê” – Brecht (1)

Fotografia 1 – Tomada externa registrando a presença do ex-presidente Nilo Peçanha na Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil em Entre-Rios, quando da campanha para a eleição do presidente do Estado do Rio de Janeiro de 1914. Os apoios da cobertura da plataforma em frente à estação ficavam fora da área da mesma, apoiadas na calçada. Esta fotografia do primeiro quarto da década de 10 do século XX do acervo do Srº Altair.

Fotografia 2: Ex-presidente Nilo Peçanha junto as autoridades quando da sua passagem pela Estação Ferroviária da Estrada de Ferro Central do Brasil no distrito de Entre-Rios, registro externo do primeiro quarto da década de 10 do século XX. Sua figura foi destacada com uma seta feita à caneta por uma pessoa desconhecida. Acervo Sr. Altair.

Nos dois registros fotográficos que apresento sobre a passagem do então ex-presidente da república Nilo Procópio Peçanha (2)  pelo distrito de Entre-Rios (hoje Três Rios) exemplifica-se o reconhecer na fotografia a sua capacidade de ativar memórias enquanto fragmento do passado, que permite revivê-lo redimensionado no presente, mesmo que o instante, os objetos, espaços sociais e as sensações experimentadas não pertençam ao indivíduo que a observa e estuda.
Uma diferença marcante entre as duas está que na fotografia 1 além dos políticos, comerciantes e outros representantes das elites do município de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios (reconhecidos principalmente pelas suas vestimentas e por se encontrarem entorno do presidente), e membros de sua comitiva, temos a presença de populares e de crianças em número significativo, agrupadas e localizadas abaixo da posição do ex-presidente mas em condições de serem “captadas” com destaque pela objetiva. A imagem valoriza a presença destas pessoas junto a Nilo Peçanha.
Em confronto com o vetor escravidão, um dos constituintes sociais da base de formação da sociedade trirriense, tem-se a presença em bom número de adultos e crianças negras entre as pessoas referenciadas na fotografia, bem como a ausência nas duas imagens da representação feminina, tendo em vista que a mulher brasileira adquiriu o direito de votar nas eleições nacionais somente no Código Eleitoral Provisório, de 24 de fevereiro de 1932, mas, à época, apenas as mulheres casadas devidamente autorizadas pelos seus maridos, as viúvas e solteiras com renda própria.
Na fotografia 2 observa-se claramente o desejo de registrar a presença do Sr. Nilo Peçanha junto com as autoridades e os indivíduos expoentes das classes econômicas e políticas de Paraíba do Sul e do distrito de Entre-Rios. Os dois registros atendem a vontade de se comprovar a receptividade positiva e o apoio a sua campanha para presidente do Estado do Rio de Janeiro junto as diferentes grupos sociais. Percebe-se também a direita presença de uma criança segurando um chapéu, vestido com camisa e calça compridas e calçado com botas, demonstrando uma condição social superior as destacadas na fotografia 1.
Um outro aspecto observado é o espaço físico onde as imagens foram construídas: ambas na Estação Ferroviária da Rede Central do Brasil, mas a primeira em local mais amplo, junto aos trilhos, propício a maior aglomeração popular, tendo ao fundo os prédios do trecho urbano da Estrada União e Indústria (depois Avenida Condessa do Rio Novo); e a segunda, próximo a sede da estação onde o espaço reduzido serviu para limitar a presença apenas para representações políticas e econômicas da região.
Enquanto instrumento capaz de possibilitar a rememoração histórica dos indivíduos em seu tempo, como fragmento distanciado do instante de sua elaboração, a fotografia permite o superar pelo historiador das estruturas sociais, políticas e econômicas que permanecem como “a opção” dos que se encontram como vencedores nos embates de memórias, podendo este não se ater apenas nas lembranças daqueles que na atualidade são reconhecidos pela história. 
O que nos informam esses personagens, suas roupas e adereços [também a falta destes como os sapatos nos pés de algumas crianças do registro 5], seus olhares, posição corporal e distribuição espacial na fotografia, seus espaços de relação, entre outros aspectos do registro imagético?
Para a formulação das respostas é imprescindível que o historiador supere a condição de “pretenso historiador neutro, que acede diretamente aos fatos “reais”, na verdade apenas [confirmando] a visão dos vencedores, dos reis, dos papas, dos imperadores... de todas as épocas” (3),   dando voz aqueles com os quais se solidariza Benjamin, ao defini-los como os oprimidos pela história.
A fotografia na sua relação com a memória e a história quando não consideradas na construção historiográfica, são rastros esquecidos pelo tempo em silêncio, pela necessidade de sobrevivência de alguns indivíduos na suas “lutas” com o que precisa ser deslembrado, pelos sentimentos de culpa, pelo não desejo de rememoração, pelo desvalor imputado por alguns pesquisadores das ciências sociais.
São também fragmentos das disputas de memória, por permitirem o configurar das ações dos indivíduos e dos grupos sociais quando estes estabelecem o que deve constar como lugares de lembranças ou esquecimentos, o que interfere diretamente nos processos de rememoração das transformações dos espaços urbanos de relação social, ambiente manifesto das memórias individuais e coletivas, e consequentemente na formação da identidade dos sujeitos históricos e na construção historiográfica. 

NOTAS

[1] Citado por LÖWY, Michel. “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história””. BOITEMPO Editorial. São Paulo/SP. 1ª reimpressão, 2007, p 77.

[1] “Presidente da república brasileira (1909-1910) nascido em Campos dos Goitacases, RJ, que como presidente da república, procurou manter-se neutro durante a disputada campanha eleitoral entre Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, pela sua sucessão. Filho de camponeses humildes formou-se pela Faculdade de Direito de Recife, PE (1887), onde depois criou um escritório de advocacia. Atraído pela política, fundou, com Francisco Portela, o Clube Republicano de Campos e foi membro do Congresso Constituinte (1890-1891) e da primeira legislatura do Congresso Nacional. Reeleito sucessivamente, foi eleito presidente do estado do Rio de Janeiro (1903), onde se mostrou um administrador dinâmico e eficiente. Compondo como vice a chapa vitoriosa de Afonso Pena, assumiu a presidência com a morte do titular. Após passar o governo para o eleito Hermes Rodrigues da Fonseca, foi para Europa (1910-1912), só voltando para assumir a cadeira de senador pelo Rio de Janeiro. Eleito presidente do estado do Rio de Janeiro (1914), antes do término do mandato foi nomeado para o Ministério das Relações Exteriores (1917). Formou uma chapa oposicionista com José Joaquim Seabra, presidente da Bahia, com o apoio dos maçônicos da Grande Oriente do Brasil, na chamada Reação Republicana (1921), contra o candidato das correntes oficiais, Artur Bernardes, presidente de Minas Gerais, apoiado pela Igreja Católica, e foi derrotado (1922). Publicou os livros Impressões da Europa (1913), com suas observações sobre a primeira viagem ao exterior, e Política, economia e finanças (1922), com os discursos de campanha da Reação Republicana, e morreu no Rio de Janeiro, RJ, em 31 de março.” Disponível no site: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/governo-nilo-pecanha/governo-nilo-pecanha.php> Acesso em 24 de junho de 2011.

 [1] Idem 1, p 65.

 




André Luiz Reis Mattos é Mestrando em História Cultural pela Universidade Severino Sombra – Vassouras/RJ

A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.


1 comentários:

Incontros- foto&texto disse...

Parabéns, André.
Muito legal sua matéria, gostei pacas.
Um abraço,
Izabel

26 de março de 2012 às 23:36

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