quinta-feira, 1 de março de 2012

Oscar merecido; “A separação” trata de conflitos universais em terreno iraniano


Peyman Moaadi, Farhadi e Leila Hatami na festa do Oscar 2012
A separação é uma problemática do mundo contemporâneo que envolve questões sociais, culturais e religiosas. Em muitos lugares do mundo as pessoas tem livre arbítrio para escolherem sua cara metade, no entanto, nem sempre a escolha poderá perpetuar  até que a morte os separe. Casamento é cumplicidade, abnegação, companheirismo, mas não é só isso; é preciso que duas pessoas também queiram coisas semelhantes para terem objetivos comuns.  Por quanto tempo isto será possível? O tempo pode mudar os interesses destas pessoas, os lugares que freqüentam, os amigos, a profissão? Como então conservar amigos semelhantes, objetivos e vontades em comum? Qualquer um da dupla em questão pode cansar de conviver com os amigos do outro, com os familiares do outro, com as vontades do outro. Será que há esperança para o casamento? A solução estará no amor?

O amor platônico 

O amor é vivência e convivência. Mas amar inclui, às vezes,  fazer o que o outro quer, abrir mão da própria vontade em prol do ser amado. Até que ponto é possível amar um ser e compartilhar momentos comuns e felizes sem sentir-se sufocado ou prejudicado?
O amor está dentro de cada um dos amantes assim, o outro é sempre o objeto de seu amor. Platão, o mais importante discípulo de Sócrates, na obra “Timeu”, estabelece a famosa  diferença entre o mundo sensível (o concreto em que vivemos) e o mundo das idéias, lugar da perfeição onde acontece o amor platônico, fantasiado e idealizado, que   objetiva um ser perfeito. 


Para nós, mortais e reais, o amor é compromisso e esse compromisso é muitas vezes  selado pelo casamento. Voltamos ao casamento, que pode ser conseqüência do amor. As culturas judaico-cristãs ou até as egípcias tem nas alianças um símbolo semiótico de enlace e perfeição que expõem as pessoas que as usam a deveres e obrigações. Quem as usam, devem satisfações de seus atos para o ser amado e vice-e-versa. Como num lacre supremo segurado pela fidelidade austera, casar é mais que prova de amor, é responsabilidade e juramento severo.  Um juiz de paz, um padre, um rabino ou seja lá quem presencie e sele o pacto de amor, testemunha o acontecido. Um pacto financeiro, social, cultural, de bens, de fidelidade e religiosidade. Um amálgama de quereres e deveres.

O amor shakesperiano  


Shakespeare imortalizou o amor de Romeu e Julieta matando os amantes, assim, o amor não precisaria ser gasto com a convivência, com os filhos, com os problemas de amigos diferentes, de ciúmes, de familiares... Para conservar o amor perfeito, o dramaturgo inglês preferiu matar os objetos do que o amor.
a morte de Romeu
É, de cara o filme “A separação”, do iraniano Asghar Farhadi, que ganhou o Oscar 2012 na categoria melhor filme estrangeiro, conseguiu tratar de um tema universal, polêmico e atemporal pelo viés iraniano. Com um roteiro simples mas instigante, o filme conta a história do divórcio de Naader (Peyman Moaadi) e  Simin (Leila Hatami). Ao que tudo indica o motivo da separação é a incompatibilidade de objetivos; enquanto Naader precisa cuidar do pai com Alzheimer, Simin quer deixar o país para que a filha do casal não cresça no Irã.

Pessoas que se amam e desenvolvem ideais diferentes costumam se separar; o fato é, Naader não pode deixar o pai doente e seguir para uma vida com sua mulher e filha fora do Irã. Já Simin, não consegue continuar cuidando do sogro. Assim o casamento está em cheque, a solução é ir cada um  pro seu lado. É, mas as coisas não são tão simples assim, eles tem uma filha que fica dividida e sofre por ter de escolher entre o pai e a mãe.
Farhadi constrói personagens complexos com sentimentos e emoções imprevisíveis, colocando nós, expectadores, diante de um jogo antagônico de tomada de decisões. Estamos presenciando testemunhos dos personagens diante da justiça do Irã, peculiarmente estranha para nós brasileiros, tentamos nos posicionar querendo achar os culpados, as vítimas, mas sabiamente Farhadi nos conduz para o universo das possibilidades. Sem a intenção maniqueísta do diretor não é possível tomar as razões e as dores de um só personagem. Apesar de terem sido colocados um contra os outro é muito difícil para nós concluirmos quem é o vilão e quem é o mocinho desta história.


Algumas características típicas dos filmes iranianos são conservadas como: as crianças em cena, o naturalismo quase documental e  a câmera na mão. No entanto, é notório observar como o diretor trabalhou a montagem, muito bem cuidada com planos bem pensados e com  supressão de cenas chaves que instigam o espectador e dão beleza e dinamismo ao filme. Farhadi é generoso, lança um olhar cúmplice e poético para seus personagens, desenha lindas imagens dos sentimentos e atitudes deles durante o filme. Reparem nas imagens como a separação entre o casal proporciona conflitos de ordem estrutural na família,  no próprio amor e como as cenas são signos destes sentimentos. Apesar do filme ter uma vertente naturalista, a atuação dos atores é um ponto forte.  Fiquei particularmente encantada com o ator que interpretou o pai de Naader. Uma cena inesquecível acontece no quarto; neta e avô sentados na cama, ele corcunda pela doença, ela com a cabeça baixa de tristeza, a posição semelhante dos dois que dividem o mesmo sentimento pela separação do casal. 


Lindas cenas, ótimo filme, vale muito a pena conferir e entender como a separação envolve tantas questões aqui e no Irã ou talvez em qualquer lugar do mundo. Separar é ir cada um para seu lado, lados opostos e, deste amor que nada lembra o amor shakespeariano ou platônico, parece sobrar apenas dores, magoas, um velho e um filho.
Bom filme!

Para terminar, um poema do Leandro Daniel (Musseque) inspirado no livro que também fala sobre o amor:

"O Amor é sexualmente transmissível" - do livro de Marçal Aquino, "Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios" - Homenagem ao professor Schianberg.
 

E hoje, você está se sentindo bonita?
Tem alguém aí?
Ou são só ruídos bastardos?
Tem alguém aí?
Atrás do que está na frente?
Tem alguém aí?
Embaixo da máscara,
ou serão máscaras ao infinito?
Alguém se espreita aqui
irrequieto, quer fugir de si
sem saber que o que consegue
em seus áureos esforços
é uma versão do ponto inicial
Aqui – fronteira - Aí
só pra constar:
se tiver alguém aí
tire-me daqui por uns instantes
de minhas versões infindas
quem sabe daí
ouça melhor meus ruídos criptografados.


Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sobre a direção de Antônio Benega.

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