'Palavra Limada - a carpintaria dos sentidos"
Às vezes, em meio a
nossas leituras e descobertas, nos deparamos com ótimas composições artísticas
que devem ser compartilhadas com mais pessoas. Isso ocorreu comigo nas últimas
semanas, quando ganhei de presente um livro de poemas intitulado “Palavra Limada
– A Carpintaria dos Sentidos”. Talvez não somente uma surpresa quanto às
composições poéticas, mas também em relação à maneira como foram elaboradas. Em
primeiro lugar, o que nos chama atenção é o fato de serem três os autores de
todos os poemas, ou seja, um livro escrito em conjunto, ou, como um dos autores
me advertiu, uma obra surgida de seis mãos. Na apresentação da obra, há um
texto em que é revelado o caráter polifônico desta escrita. Interessante, não?
Eu não me recordo de
ter me deparado com essa nova maneira de compor até essa obra me ser
apresentada e, após as leituras dos poemas, acredito que, no caso presente,
isso foi muito bem desenvolvido. Outra coisa que devo destacar é, como o
próprio título insinua, os poemas estão divididos conforme os cinco sentidos
humanos, a saber: Visão, Olfato, Tato, Audição e Paladar.
Assim que abri o livro
encontrei um lindo poema “Camélia”:
Hoje
abri o velho armário
e
admirei de novo o vestido bordado
com
camélias brancas
-
densas, no fundo vermelho de musselina.
Que
veste tentadora!
Quis
rasgar a loucura
na
formosura da camélia.
Quis
colar ao corpo nu
a
força da camélia branca
e
subverter o tempo proibido
o sexo recolhido
a cor acorrentada
a voz da mudez.
Subverter
o abafamento
daqueles
verões empapados de medo
em
porões intensos
de
tanto negrume.
Subverter
vertida
no vestido de camélias brancas
até
florir no inverno...
nua
como uma camélia na lapela.
(RESENDE,
SILVA, HADDAD, 2010, p. 15).
Acredito que esse poema
que está alocado na primeira parte do livro, intitulada “visão”, é intenso,
forte e sensual. Primeiramente, o vislumbrar o vestido “bordado com camélias
brancas” é suficiente para levar o sujeito poético a uma viagem pela memória,
pelos medos, tensões e desejos. Há uma loucura a ser rasgada, o corpo nu, o tempo proibido, os verões passados que
traziam tanto o medo como a intensidade do vivido. O presente poema é um
composição a partir da qual podemos observar traços de diálogos coma poesia de
Adélia Prado, Guimarães Rosa, dentre tantos outros poetas, tornando a questão
da polifonia, do diálogo ainda mais intensa e criando imagens dignas de serem
apreciadas por todos os leitores que com elas se deparam.
Não posso deixar de dar
destaque ao que é dito mesmo na apresentação do livro: os sentidos revelam
memórias, cheiros, essências e também a cultura culinária. Sendo assim, alguns
poemas, dentre os quais destacarei apenas um, possibilitaram-me não só ler,
como também sentir o aroma da comida. Esse aroma invadiu meus poros e deixou-me estarrecido:
Pão Nosso de cada dia
E
da água fez-se a massa,
sovada
e fermentada.
Forno
aquecido
tempo
cozido
cheiro
de poema.
Pão-palavra,
nosso
maná com casca
cada
dia serrilhado na bandeja
e
servido nas horas.
O
miolo do verso
desperta
a forma
de
poesia nascente.
Sorvidão.
Bandeja
abandonada.
Farelos...
Sabor
Saliva
Poeta
pó
no
sopro do verso:
Fênix de sobra.
(RESENDE,
SILVA, HADDAD, 2010, p. 73).
Este poema que é um
misto de exploração do paladar e constituição de uma “Arte Poética”. Ele
conjuga exatamente o lado lúdico da palavra que, ao mesmo tempo que nos faz
imaginar o início do dia com o sovar do pão, a feitura do café quentinho, o
sabor que o encontro de ambos elementos traz ao serem degustados, também revela
o processo de construção do poema que, assim como o pão, deve ser sovado,
fermentado (limado), pensado para, somente após
ter crescido, despertar da forma nascente e ser entregue aqueles que
também o degustarão, não com o paladar, mas com o intelecto. É um “Pão-Palavra”
para não se dizer um “Poema-Pão” que pode nos alimentar todos os dias através
da percepção de sua constituição.
Esses dois poemas são
apenas alguns dentre os de “Palavra Limada- a carpintaria dos sentidos”. Esse
livro é cheio de magia, percepções e conjugação entre sentidos e intelecto,
explorando não somente a palavra em si, bem como a capacidade do leitor de
perceber as nuances que são reveladas ao longo dos poemas.
Referência:
RESENDE, José Antônio Oliveira de; Silva, Roginei Paiva da; Haddad, Sônia Moraes. Palavra Limada: a carpintaria dos sentidos. Belo Horizonte: Via Comunicação & Editora, 2010.
Rodrigo C. M. Machado é mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa. Dedica-se ao estudo da poesia portuguesa contemporânea, com destaque para a lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen.
4 comentários:
Rodrigo, como foi emocionante ler seu comentário! Perceber outras leituras a respeito do que escrevemos, principalmente vindas de um ávido leitor de poemas como você, foi gratificante. Você me fez reler os poemas e experenciar outras novas sensações. Acho que isso é o mágico da poesia, sempre revelar novas emoções. Muito obrigado..
26 de maio de 2012 às 17:03Roginei, os poemas são mesmo lindos e fico feliz que minha matéria tenha infundido em você tão bons sentimentos. Parabéns!
26 de maio de 2012 às 17:39Oi, Rodrigo! Obrigado por ter recriado os nossos versos pela sua leitura sensível e poética. Tudo isso nos confirma a condição da poesia de ser constantemente eternizada em cada novo sentido, em cada nova ousadia do olhar, em cada nova voz que se ajeita no mosaico polifônico da palavra literária. Nossa obra ganhou com a sua leitura. Um cordial abraço. José Antônio Oliveira de Resende
27 de maio de 2012 às 20:26Oi, Rodrigo! Obrigado por ter recriado os nossos versos pela sua leitura sensível e poética. Tudo isso nos confirma a condição da poesia de ser constantemente eternizada em cada novo sentido, em cada nova ousadia do olhar, em cada nova voz que se ajeita no mosaico polifônico da palavra literária. Nossa obra ganhou com a sua leitura. Um cordial abraço. José Antônio Oliveira de Resende
27 de maio de 2012 às 20:2827 de maio de 2012 20:26
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