O
QUINTO FILHO
Menino
franzino, meio corcunda, com olhos e cabelos negros, que escorriam pela sua
testa teimosamente. Quinto filho de Dona Maria das Dores, Jusué era um menino
vencedor. Vencera sarampo, caxumba, meningite até. Sua mãe acreditava que eram suas
rezas. A vizinha, que tinha curso de enfermagem e trabalhava no Posto de Saúde
da cidade de Guariné, repetia aos vizinhos que eram suas mãos que puxavam o
menino do Vale da Morte cada vez que ele escorregava na beirada, enquanto o
Padre Severino creditava
suas vitórias ao fato de o menino ser coroinha da
igreja desde os sete anos.
Cada
um deles concordava, contudo, que não era por causa da Mãe Zíbia, benzedeira e
macumbeira, que acendia velas coloridas e falava com voz grossa toda vez que o
pequeno adoentava; proclamava que os espíritos do mal queriam levá-lo porque
ele traria muita alegria ao mundo.
Para
os donos do sítio onde Maria das Dores e seu marido Henriqueto Soares residiam
e trabalhavam como caseiros, era apenas um acaso, uma sorte qualquer, que
mantinha o menino fora das estatísticas de mortalidade infantil do país. Incomodava-os
o fato de o menino consumir tanto tempo dos pais, que apresentavam atestados
que a natureza se recusava a ler. O mato crescia, as galinhas tinham fome, o
lixo se acumulava, estivesse Jusué doente ou não.
Todos
os irmãos de Josué tinham nomes que começavam com a letra J: Jânio, Jerônimo,
Jertrudes, Jairo, Jusué e José. Eram seis irmãos apenas; uma irmã tinha morrido
afogada, com apenas 4 anos, na represa da cidade. Um menino tinha morrido de
complicação de doença, explicava Maria das Dores, a quem perguntava, sem saber
exatamente qual doença era. Todos ajudavam na plantação de café ou em casa,
cuidando dos afazeres e dos irmãos menores.
Não
havia tempo para brincar, nem brinquedos. O que havia muito era fome. Mas Jusué era um menino diferente, não comia
de tudo, sentia enjôos e, assim, ia perdendo altura em vez de crescer. As
costas curvadas e a aparência frágil eram motivos de zombaria dos irmãos mais
velhos, que diziam para ele se esconder sempre que passasse um abutre por
perto, para evitar ser levado por engano.
Um
dia, o patrão estava na varanda ouvindo rádio, um CD de música clássica, e
Jusué se escondeu atrás de uma árvore para ouvir. O Dr. Olímpio era homem
culto, aposentado agora, alto e com cabelos negros lisos, descendente direto de
espanhóis. Quando sua irmã se aproximou gritando seu nome, o Dr. Olímpio
percebeu o menino e o chamou.
–
Quer dizer que você estava me espiando?
–
Não senhor.
–
O que você estava fazendo?
–
Eu tava ouvindo a música – respondeu, olhando para seus próprios pés.
–
Ah, quer dizer que você gosta de música? Escute aqui, quando eu for à cidade,
vou comprar um aparelho de som para você, desses que tocam CD, e vou trazer uns
CDs para você. A música pode salvar um homem, você sabia?
–
Sabia não – respondeu com os olhos arregalados. – Obrigado, doutor. – E saiu correndo
atrás de sua irmã, de volta para a plantação.
Jusué
ficou a pensar a noite toda. Como a música pode salvar um homem? Esse doutor
era mesmo esquisito. Talvez fosse louco. Espingarda, sim, salva um homem.
Comida. As rezas da minha mãe, do padre e da Mãe Zíbia. Mas, música?
No
outro dia, Jusué acordou com febre. Sua mãe estava estranha. Parecia que seus
olhos eram todo brancos. Pela conversa que ele tinha escutado de seus irmãos
mais velhos, Jânio, Jertrudes e Jerônimo, a mãe tinha perdido um bebê. Parece
que tomara um chá envenenado sem saber. Por isso, perdera muito sangue e não
poderia carpir por uns dias. Seria uma boca a mais para alimentar,
disse Jerônimo, imaginando se a mãe tivesse tido o bebê. Jertrudes sentia as
lágrimas escorrerem e respondeu que onde comem oito, comem nove; e que ela
nunca tomaria desses chás que a mãe fazia quando estava prenha.
–
Fio, você tá com febre. Vai tomar banho morno e bebe bastante água. Eu vou pro
meu quarto rezar pra você. E assim ele viu, pela porta entreaberta, a mãe
deitar-se na cama e voltar a dormir.
Um
mal-estar de súbito tomou conta dele, e foi impossível chegar ao banheiro,
vomitando ali mesmo, no chão da cozinha, onde acabara de beber água.
–
Ô moleque, porque você não vomita lá fora?! Agora vou ter que lavar esse chão,
seu porco! – disse sua irmã Jertrudes de forma truculenta. – Sai daqui, sai! – gritou
apontando a vassoura como se fosse uma arma.
Ele
saiu e sentou-se atrás da jabuticabeira, perto da varando do patrão. A árvore parece com catapora negra,
pensou, cheia de bolinhas pelo tronco e
galhos. Gosto mais quando ainda está
florindo, continuou refletindo, parece
uma noiva com os cabelos enfeitados.
Esperou até que o Dr. Olímpio aparecesse, na esperança de que ele não
houvesse se esquecido do presente.
O
doutor sempre dava presentes para ele. Sua mãe dizia ao pai que não gostava da
diferença que ele fazia entre Jusué e os irmãos, que ele tinha dó de ver o
menino tão magrinho que aparecia até os ossos. Para Jusué, não era problema. Ele
nunca tinha ficado sem agasalho no inverno ou sem chinelo no verão, o que
acontecia costumeiramente com os irmãos. Sorte tinha também José, que herdava
tudo que nele ficava pequeno. Ouviu o
carro estacionando e o patrão gritar para seu pai:
–
Onde tá o Jusué? Eu tenho um presente pra ele. Aliás, pra vocês todos. Mas ele
é o dono, ele empresta para os irmãos quando não estiver usando.
Dr. Olímpio sempre
protege o Jusué, resmungou Henriqueto, bem baixinho.
Melhor assim, pensava, não dava conta mesmo de alimentar e vestir os miúdos.
Jusué era tão magrinho que, quando os irmãos batiam nele, as marcas se
eternizavam por dias em seu rosto de boneca.
Seus olhos escuros eram pequenos e caídos, o que dava a impressão de que
estava sempre chorando. Tinha aparência diferente dos irmãos de cabelos crespos
e avermelhados.
Jusué
deu um salto e disse:
–
Precisa me procurar não, pai, eu to aqui. A mãe mandou eu ficar embaixo de uma
árvore até minha febre baixar...
–
Ah, pirralho, você está aí. Então venha cá. Veja o que eu trouxe. Você tem que
ouvir na sua casa, é elétrico. Pilha
custa muito caro e acaba muito rápido. Eu trouxe um CD do Mozart para você.
Depois você conta se gostou. Deixe eu sentir a sua testa. Uhm, não tá muito
quente não, deve ter sido só uma virose. A música vai curar você.
Jusué
não conseguia falar. Sua respiração era tão rápida, como se tivesse visto um
anjo, ou a Maria Morena, filha do caseiro do sítio ao lado.Sem
saber direito como agradecer, ajoelhou-se e abaixou a cabeça, repetindo
“obrigado, obrigado”.
–
O que que é isso, moleque, levante já daí. Você endoidou? Se você não levantar,
eu vou dar esse presente para outra pessoa. Onde já se viu, é apenas um toca-CD.
Paguei 89 reais na promoção. E assim você me deixa ouvir minha música na
varanda em paz, sozinho, como eu gosto. Eu me sinto vigiado com você atrás daquela
árvore, me espiando, ou você pensa que eu não te vejo?
Jusué
levantou-se e correu para casa. Como estava doente, não precisava trabalhar
naquele dia. Ligou o rádio e esperou. Silêncio. Chiados. Colocou o CD. De
repente, um estrondo maravilhoso. O maestro Leonard Bernstein, conduzindo a
Orquestra Sinfônica de Viena, gravara as obras de Mozart, começando por Ave verum corpus.
Jusué
sentiu-se arrepiar, mais do que quando viu Mariazinha Morena banhar-se no
reservatório de água dos cavalos só de calcinha. Seu corpo todo ficou em
alerta. Seus cabelos ouriçados. O coração batia velozmente. E assim ficou,
durante mais de uma hora enquanto tocava o CD.
A
impressão que a música clássica deixou nele foi tão profunda, que todas as
noites ele ouvia o CD, bem baixinho, para não atrapalhar a novela das nove que
os irmãos acompanhavam. Aos poucos, foi decorando os sons. Gesticulava enquanto
ouvia. Chorava quando a melodia era mansa, imitava a voz da soprano nas árias,
fingia fazer parte do coro. Seu cabelo liso dançava para cá e para lá,
movimentando-se conforme suas viradas fortes de um lado para o outro, a
conduzir a orquestra imaginária.
Jusué
procurou Dr. Olímpio na varanda, em uma tarde de outono. As primeiras rosas
nasciam, o verde das folhas nas plantas era claro e a jabuticabeira já havia
sarado da caxumba, seus irmão comeram todas as suas feridas, pensou o menino
com ânsia.
Dr.
Olímpio estava sentado na varanda, com o gato Filé no colo. Quando viu o
menino, perguntou se havia algum problema.
–
Ah, Dr. Olímpio, eu posso pedir uma
coisa pro senhor?
–
Ai, ai, ai, Jusué, eu acabei de te dar um presente há dois meses e você quer
outro? Você pensa que dinheiro nasce em árvore, é? Sua mãe já me procurou para
dizer que você tá precisando de roupa nova de frio...
–
Não, doutor, não custa dinheiro não. Queria que o senhor perguntasse na cidade
se tem vaga pra mim em curso de música do SESI. Eu ouvi dizer que lá se pode
estudar de graça.
–
Sua mãe sabe disso? Ela não quis colocar vocês na escola; como eu vou
convencê-la a deixar você estudar música? Você tá louco? Ela não vai concordar
nunca.
–
Eu já falei com ela. Ela disse que não aguenta mais ouvir aquele CD, que se
tiver um lugar onde eu possa ouvir música bem longe dela, ela não liga não, dá
é graças a Deus.
–
Entendi. Tá bom, eu vou verificar e depois te falo.
Foi
assim que o pequeno Jusué chegou ao SESI, e uma professora de música,
percebendo sua sensibilidade musical, pediu que ele dissesse qual era a sua
música preferida. Como não sabia ler, Jusué disse que iria “cantar” um pedaço
para ela. E, de olhos fechados, ele repetiu sons de violinos, de flautas, de contrabaixos,
de coral e de solistas, soprano e mezzo
soprano, mexendo os bracinhos para cima e para baixo, rapidamente,
freneticamente, para depois virar as pequenas mãos com a maior delicadeza e
doçura, sem abrir os olhos por nenhum momento.
No
final, quando se recompôs, viu que a professora chorava, enquanto a diretora e
outros dois professores haviam se aproximado para saber o que estava se
passando. Juntos, os professores inscreveram o menino Jusué em um programa
internacional para músicos de comunidades carentes. Também se revezaram em ajudá-lo
com lições para que fosse alfabetizado e conseguisse assimilar pelo menos uma
parte do conteúdo escolar que ele perdera.
Para
não perder a bolsa de estudos, não podia repetir o ano escolar. O padre
ofereceu um canto para ele dormir na igreja, se fosse coroinha e ajudasse nas
missas de domingo de manhã. As intenções
do padre, ninguém conhecia, mas a verdade é que o menino era tão bem cuidado
pela professora, que ninguém se atreveria a fazer mal àquela criança que aos
poucos ganhou um pouco de peso, melhorou sua autoestima e perdeu até a corcunda,
andando orgulhoso de si, sem jamais perder a humildade.
Jusué
tinha dez anos quando isso aconteceu. Sua mãe, quando soube, não demonstrou
surpresa nem alegria nem tristeza. Talvez a apatia fosse por conta dos remédios
para depressão depois do último parto de feto sem vida. Mas não se opôs. Achou
até bom. Menino doente dá muito trabalho,
disse quando entregou o menino para a professora que o acompanharia até Viena,
depois de três anos de aulas.
E
lá, onde Mozart conheceu o sucesso, Jusué se tornou um grande maestro
internacional. Nas suas primeiras férias,
ofereceram uma viagem a Paris. Mas jusué declinou, já falando um pouco de
alemão. Ele queria conhecer Salzburg, o berço de Mozart. Queria saber mais da
vida daquele homem morto há mais de duzentos anos e que ainda inspirava
corações pelo mundo todo.
Em
suas turnês internacionais, hoje, após quase trinta anos, ele às vezes passa
pelo Brasil. Vem a SP. Sua família não é mais caseira de sítio, agora são
proprietários de um pequeno sítio em Louveira. Seus irmãos puderam estudar,
apesar de que vários preferiram não fazê-lo. Jusué aprendeu a ler e escrever em
português, alemão, inglês e mais cinco línguas diferentes. Nunca mais ficou
doente. Sua fraqueza não era do corpo, era da alma. Sua alma tinha fome de
música.
Ele
faz palestras e visita escolas contando sua história, em vários países.
Provando que cada um faz o seu destino, se tiver coragem de correr atrás de
seus sonhos.
E
a Rosinha Morena, o que aconteceu com ela? Sempre que vinha de férias para o
Brasil, ele a encontrava. Foi sua primeira e única namorada. De volta à Europa,
eles escreviam cartas apaixonadas. Quando ela fez dezoito anos, mudou-se para Viena.
Depois, já com o primeiro filho nos braços, o pequeno Mozart da Silva,
mudaram-se para Paris, onde vivem até hoje, com o filho único. Além de cuidar do
marido e do filho, Rosinha é poeta. Mesmo depois de trinta anos, ela chora
todas as vezes que assiste a seu marido reger uma orquestra.
O que o quinto filho nunca soube, é que seu pai biológico era o patrão de cabelos pretos e lisos.
Simone Pedersen escreve contos, crônicas e poemas para crianças e adultos.
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