segunda-feira, 25 de junho de 2012




O QUINTO FILHO

Menino franzino, meio corcunda, com olhos e cabelos negros, que escorriam pela sua testa teimosamente. Quinto filho de Dona Maria das Dores, Jusué era um menino vencedor. Vencera sarampo, caxumba, meningite até. Sua mãe acreditava que eram suas rezas. A vizinha, que tinha curso de enfermagem e trabalhava no Posto de Saúde da cidade de Guariné, repetia aos vizinhos que eram suas mãos que puxavam o menino do Vale da Morte cada vez que ele escorregava na beirada, enquanto o Padre Severino creditava

suas vitórias ao fato de o menino ser coroinha da igreja desde os sete anos.

Cada um deles concordava, contudo, que não era por causa da Mãe Zíbia, benzedeira e macumbeira, que acendia velas coloridas e falava com voz grossa toda vez que o pequeno adoentava; proclamava que os espíritos do mal queriam levá-lo porque ele traria muita alegria ao mundo.

Para os donos do sítio onde Maria das Dores e seu marido Henriqueto Soares residiam e trabalhavam como caseiros, era apenas um acaso, uma sorte qualquer, que mantinha o menino fora das estatísticas de mortalidade infantil do país. Incomodava-os o fato de o menino consumir tanto tempo dos pais, que apresentavam atestados que a natureza se recusava a ler. O mato crescia, as galinhas tinham fome, o lixo se acumulava, estivesse Jusué doente ou não.

Todos os irmãos de Josué tinham nomes que começavam com a letra J: Jânio, Jerônimo, Jertrudes, Jairo, Jusué e José. Eram seis irmãos apenas; uma irmã tinha morrido afogada, com apenas 4 anos, na represa da cidade. Um menino tinha morrido de complicação de doença, explicava Maria das Dores, a quem perguntava, sem saber exatamente qual doença era. Todos ajudavam na plantação de café ou em casa, cuidando dos afazeres e dos irmãos menores. 

Não havia tempo para brincar, nem brinquedos. O que havia muito era fome.  Mas Jusué era um menino diferente, não comia de tudo, sentia enjôos e, assim, ia perdendo altura em vez de crescer. As costas curvadas e a aparência frágil eram motivos de zombaria dos irmãos mais velhos, que diziam para ele se esconder sempre que passasse um abutre por perto, para evitar ser levado por engano.

Um dia, o patrão estava na varanda ouvindo rádio, um CD de música clássica, e Jusué se escondeu atrás de uma árvore para ouvir. O Dr. Olímpio era homem culto, aposentado agora, alto e com cabelos negros lisos, descendente direto de espanhóis. Quando sua irmã se aproximou gritando seu nome, o Dr. Olímpio percebeu o menino e o chamou.


– Quer dizer que você estava me espiando?
– Não senhor.
– O que você estava fazendo?
– Eu tava ouvindo a música – respondeu, olhando para seus próprios pés.
– Ah, quer dizer que você gosta de música? Escute aqui, quando eu for à cidade, vou comprar um aparelho de som para você, desses que tocam CD, e vou trazer uns CDs para você. A música pode salvar um homem, você sabia?
– Sabia não – respondeu com os olhos arregalados. – Obrigado, doutor. – E saiu correndo atrás de sua irmã, de volta para a plantação.

Jusué ficou a pensar a noite toda. Como a música pode salvar um homem? Esse doutor era mesmo esquisito. Talvez fosse louco. Espingarda, sim, salva um homem. Comida. As rezas da minha mãe, do padre e da Mãe Zíbia. Mas, música?

No outro dia, Jusué acordou com febre. Sua mãe estava estranha. Parecia que seus olhos eram todo brancos. Pela conversa que ele tinha escutado de seus irmãos mais velhos, Jânio, Jertrudes e Jerônimo, a mãe tinha perdido um bebê. Parece que tomara um chá envenenado sem saber. Por isso, perdera muito sangue e não poderia carpir por uns dias.  Seria uma boca a mais para alimentar, disse Jerônimo, imaginando se a mãe tivesse tido o bebê. Jertrudes sentia as lágrimas escorrerem e respondeu que onde comem oito, comem nove; e que ela nunca tomaria desses chás que a mãe fazia quando estava prenha.

– Fio, você tá com febre. Vai tomar banho morno e bebe bastante água. Eu vou pro meu quarto rezar pra você. E assim ele viu, pela porta entreaberta, a mãe deitar-se na cama e voltar a dormir.

Um mal-estar de súbito tomou conta dele, e foi impossível chegar ao banheiro, vomitando ali mesmo, no chão da cozinha, onde acabara de beber água.

– Ô moleque, porque você não vomita lá fora?! Agora vou ter que lavar esse chão, seu porco! – disse sua irmã Jertrudes de forma truculenta. – Sai daqui, sai! – gritou apontando a vassoura como se fosse uma arma.

Ele saiu e sentou-se atrás da jabuticabeira, perto da varando do patrão. A árvore parece com catapora negra, pensou, cheia de bolinhas pelo tronco e galhos. Gosto mais quando ainda está florindo, continuou refletindo, parece uma noiva com os cabelos enfeitados.  Esperou até que o Dr. Olímpio aparecesse, na esperança de que ele não houvesse se esquecido do presente.

O doutor sempre dava presentes para ele. Sua mãe dizia ao pai que não gostava da diferença que ele fazia entre Jusué e os irmãos, que ele tinha dó de ver o menino tão magrinho que aparecia até os ossos. Para Jusué, não era problema. Ele nunca tinha ficado sem agasalho no inverno ou sem chinelo no verão, o que acontecia costumeiramente com os irmãos. Sorte tinha também José, que herdava tudo que nele ficava pequeno.  Ouviu o carro estacionando e o patrão gritar para seu pai:

– Onde tá o Jusué? Eu tenho um presente pra ele. Aliás, pra vocês todos. Mas ele é o dono, ele empresta para os irmãos quando não estiver usando.
 
Dr. Olímpio sempre protege o Jusué, resmungou Henriqueto, bem baixinho. Melhor assim, pensava, não dava conta mesmo de alimentar e vestir os miúdos. Jusué era tão magrinho que, quando os irmãos batiam nele, as marcas se eternizavam por dias em seu rosto de boneca.  Seus olhos escuros eram pequenos e caídos, o que dava a impressão de que estava sempre chorando. Tinha aparência diferente dos irmãos de cabelos crespos e avermelhados.

Jusué deu um salto e disse:

– Precisa me procurar não, pai, eu to aqui. A mãe mandou eu ficar embaixo de uma árvore até minha febre baixar...

– Ah, pirralho, você está aí. Então venha cá. Veja o que eu trouxe. Você tem que ouvir na sua casa, é elétrico.  Pilha custa muito caro e acaba muito rápido. Eu trouxe um CD do Mozart para você. Depois você conta se gostou. Deixe eu sentir a sua testa. Uhm, não tá muito quente não, deve ter sido só uma virose. A música vai curar você.

Jusué não conseguia falar. Sua respiração era tão rápida, como se tivesse visto um anjo, ou a Maria Morena, filha do caseiro do sítio ao lado.Sem saber direito como agradecer, ajoelhou-se e abaixou a cabeça, repetindo “obrigado, obrigado”.

– O que que é isso, moleque, levante já daí. Você endoidou? Se você não levantar, eu vou dar esse presente para outra pessoa. Onde já se viu, é apenas um toca-CD. Paguei 89 reais na promoção. E assim você me deixa ouvir minha música na varanda em paz, sozinho, como eu gosto. Eu me sinto vigiado com você atrás daquela árvore, me espiando, ou você pensa que eu não te vejo?

Jusué levantou-se e correu para casa. Como estava doente, não precisava trabalhar naquele dia. Ligou o rádio e esperou. Silêncio. Chiados. Colocou o CD. De repente, um estrondo maravilhoso. O maestro Leonard Bernstein, conduzindo a Orquestra Sinfônica de Viena, gravara as obras de Mozart, começando por Ave verum corpus.
 
Jusué sentiu-se arrepiar, mais do que quando viu Mariazinha Morena banhar-se no reservatório de água dos cavalos só de calcinha. Seu corpo todo ficou em alerta. Seus cabelos ouriçados. O coração batia velozmente. E assim ficou, durante mais de uma hora enquanto tocava o CD.

A impressão que a música clássica deixou nele foi tão profunda, que todas as noites ele ouvia o CD, bem baixinho, para não atrapalhar a novela das nove que os irmãos acompanhavam. Aos poucos, foi decorando os sons. Gesticulava enquanto ouvia. Chorava quando a melodia era mansa, imitava a voz da soprano nas árias, fingia fazer parte do coro. Seu cabelo liso dançava para cá e para lá, movimentando-se conforme suas viradas fortes de um lado para o outro, a conduzir a orquestra imaginária.

Jusué procurou Dr. Olímpio na varanda, em uma tarde de outono. As primeiras rosas nasciam, o verde das folhas nas plantas era claro e a jabuticabeira já havia sarado da caxumba, seus irmão comeram todas as suas feridas, pensou o menino com ânsia.

Dr. Olímpio estava sentado na varanda, com o gato Filé no colo. Quando viu o menino, perguntou se havia algum problema.

– Ah,  Dr. Olímpio, eu posso pedir uma coisa pro senhor?

– Ai, ai, ai, Jusué, eu acabei de te dar um presente há dois meses e você quer outro? Você pensa que dinheiro nasce em árvore, é? Sua mãe já me procurou para dizer que você tá precisando de roupa nova de frio...

– Não, doutor, não custa dinheiro não. Queria que o senhor perguntasse na cidade se tem vaga pra mim em curso de música do SESI. Eu ouvi dizer que lá se pode estudar de graça.

– Sua mãe sabe disso? Ela não quis colocar vocês na escola; como eu vou convencê-la a deixar você estudar música? Você tá louco? Ela não vai concordar nunca.

– Eu já falei com ela. Ela disse que não aguenta mais ouvir aquele CD, que se tiver um lugar onde eu possa ouvir música bem longe dela, ela não liga não, dá é graças a Deus.

– Entendi. Tá bom, eu vou verificar e depois te falo.

Foi assim que o pequeno Jusué chegou ao SESI, e uma professora de música, percebendo sua sensibilidade musical, pediu que ele dissesse qual era a sua música preferida. Como não sabia ler, Jusué disse que iria “cantar” um pedaço para ela. E, de olhos fechados, ele repetiu sons de violinos, de flautas, de contrabaixos, de coral e de solistas, soprano e mezzo soprano, mexendo os bracinhos para cima e para baixo, rapidamente, freneticamente, para depois virar as pequenas mãos com a maior delicadeza e doçura, sem abrir os olhos por nenhum momento.

No final, quando se recompôs, viu que a professora chorava, enquanto a diretora e outros dois professores haviam se aproximado para saber o que estava se passando. Juntos, os professores inscreveram o menino Jusué em um programa internacional para músicos de comunidades carentes. Também se revezaram em ajudá-lo com lições para que fosse alfabetizado e conseguisse assimilar pelo menos uma parte do conteúdo escolar que ele perdera. 

Para não perder a bolsa de estudos, não podia repetir o ano escolar. O padre ofereceu um canto para ele dormir na igreja, se fosse coroinha e ajudasse nas missas de domingo de manhã.  As intenções do padre, ninguém conhecia, mas a verdade é que o menino era tão bem cuidado pela professora, que ninguém se atreveria a fazer mal àquela criança que aos poucos ganhou um pouco de peso, melhorou sua autoestima e perdeu até a corcunda, andando orgulhoso de si, sem jamais perder a humildade.

Jusué tinha dez anos quando isso aconteceu. Sua mãe, quando soube, não demonstrou surpresa nem alegria nem tristeza. Talvez a apatia fosse por conta dos remédios para depressão depois do último parto de feto sem vida. Mas não se opôs. Achou até bom. Menino doente dá muito trabalho, disse quando entregou o menino para a professora que o acompanharia até Viena, depois de três anos de aulas.

E lá, onde Mozart conheceu o sucesso, Jusué se tornou um grande maestro internacional.  Nas suas primeiras férias, ofereceram uma viagem a Paris. Mas jusué declinou, já falando um pouco de alemão. Ele queria conhecer Salzburg, o berço de Mozart. Queria saber mais da vida daquele homem morto há mais de duzentos anos e que ainda inspirava corações pelo mundo todo.

Em suas turnês internacionais, hoje, após quase trinta anos, ele às vezes passa pelo Brasil. Vem a SP. Sua família não é mais caseira de sítio, agora são proprietários de um pequeno sítio em Louveira. Seus irmãos puderam estudar, apesar de que vários preferiram não fazê-lo. Jusué aprendeu a ler e escrever em português, alemão, inglês e mais cinco línguas diferentes. Nunca mais ficou doente. Sua fraqueza não era do corpo, era da alma. Sua alma tinha fome de música.

Ele faz palestras e visita escolas contando sua história, em vários países. Provando que cada um faz o seu destino, se tiver coragem de correr atrás de seus sonhos.

E a Rosinha Morena, o que aconteceu com ela? Sempre que vinha de férias para o Brasil, ele a encontrava. Foi sua primeira e única namorada. De volta à Europa, eles escreviam cartas apaixonadas. Quando ela fez dezoito anos, mudou-se para Viena. Depois, já com o primeiro filho nos braços, o pequeno Mozart da Silva, mudaram-se para Paris, onde vivem até hoje, com o filho único. Além de cuidar do marido e do filho, Rosinha é poeta. Mesmo depois de trinta anos, ela chora todas as vezes que assiste a seu marido reger uma orquestra. 
O que o quinto filho nunca soube, é que seu pai biológico era o patrão de cabelos pretos e lisos.





Simone Pedersen escreve contos, crônicas e poemas para crianças e adultos.

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