O HAIKAI E SEUS AFLUENTES
O Haicai é um poema de origem japonesa, que chegou ao Brasil no início do século 20 e hoje conta com muitos praticantes e estudiosos brasileiros. No Japão, e na maioria dos países do mundo, é conhecido como haiku. Segundo Harold G .Henderson, em Haiku in English, o haikai clássico japonês obedece a quarto regras: Consiste em 17 sílabas japonesas, divididas em três versos de 5, 7 e 5 sílabas. Contém alguma referência à natureza, no sentido de ser diferente da natureza humana.
O grande mestre desta arte é Matsuo Bashô (1644-1694). Ex-samurai, monge praticante do Zen e estudioso das escritas clássicas chinesas e japonesas, dedicou sua vida ao seu aperfeiçoamento espiritual e à escrita. Observações da natureza, impessoalidade, rapidez, síntese e transcendência deram um toque zen a esta forma de poesia.
No Brasil foram feitas algumas traduções de Bashô; no entanto, como o idioma japonês é feito de ideograma, a tradução literal torna-se impossível. Mas a beleza permanece.
“Velha lagoa
o sapo salta
o som da água”
“Primavera não nos deixe
pássaros choram lágrimas
no olho do peixe”
(Tradução de Paulo Leminski – Ed.Brasiliense - Matsuo Bashô – A Lágrima do Peixe – 1983 – Coleção Encantos Radicais )
“A nuvem atenua o cansaço das pessoas
olharem a lua”
Em cima da neve
o corvo esta manhã
pousou bem de leve”
(Tradução de Millôr Fernandes – Kai-Kais – 1997)
Quando o haicai começou a ser feito no Brasil, ele tropicalizou-se. A primeira mudança visível foi a rima, não praticada originalmente. Isso já deu um jeitinho mais brasileiro ao poema. E também deixou de existir a necessidade do haikai tratar de observações da natureza e da impessoalidade.
O cartunista Solda cometeu esse haicai que considero genial:
"Faltou assunto
fiquei a sós
com o defunto"
Millôr Fernandes saiu com esse:
"O que me adiantaria
comer Maria
se ninguém saberia?"
No meu livro “Bambus”, bashô o santo em mim:
"Blues morcego blues
diabo botando letra
na melodia de Deus"
O Baianárabe Waly Salomão criou:
"saudade
é uma palavra
o sol da idade
e o sal das lágrimas"
Gostei tanto da brincadeira de rebuscar os haicais, que tive a curiosidade de verificar o que tenho em casa de livros de poetas “haikaistas” brasileiros. Verifiquei que, ao tropicalizarmos o zen, brotaram uns haikais bastardinhos bem zenvergonhas, porém deliciosos! Dos livros que tenho, peguei dois poemas de cada. Mergulhe !
Ricardo Silvestrin:
"Oswald
pôs o pau do
Brasil pra fora"
"Porta de escola
eu sentado
dentro de mim"
Jaques Brand:
"Muro caiado
Ah meu amor de olvido!
Muro caído Ah meu amor de enfado!"
"um tigre
dois cisnes
três signos"
Edu Hoffmann:
"memória rã
meu micro sóft!
na lagoa
poeta nua
no moon
da lua"
Alice Ruiz:
"o ai
quando o filho
c
a
i"
"que viagem
ficar aqui parada"
Paulo Leminski:
"isso aqui
acaso
é lugar
para jogar sombras?
coração
pra cima
escrito em baixo
frágil!"
Mario Flecha:
"pela manhã
o quarto desarrumado
ainda o sonho das filhas"
"inverno
naquela manhã eu e vovô
enterramos meu cachorro"
João Ângelo Salvadori:
"tudo parece pouco
mal o dia amanhece
quero outro
olhos cheios de mar
me estico na cama
e fico boiando"
Mário Prata:
"a lua no cio
os elefantes caminham
na beira do rio
lençol vermelho
lua branca
no travesseiro"
Hekena Kolody:
"persigo um pássaro
e alcanço apenas no muro
a sombra de um vôo"
"de grinalda branca
toda vestida de luar
a pereira sonha"
Solda:
"Bashô, Busson e Issa
o resto
é pra encher linguiça"
"Bashô, meu pai
conceda-me
apenas um haikai"
Thadeu Wojciechowski:
"pra pai
até que levo jeito
pra mãe
não tive peito"
"a canção que soa
tem o coração do vento
que me sopra à toa"
Sérgio Rubens Sosséla:
"uma andorinha
s o l
faz verão!"
"a esperança
de você viver comigo
dourou um dia inteiro"
Jack Kerouac:
"eu, meu fumo
minhas pernas dobradas
pra lá de Buda"
"tem nada lá
só porquê
eu não quero"
Valnei Andrade:
"o sol na rua se movimenta
o menino sentado olha
o velho em câmera lenta"
"traço de nanquim
bashô pinta só
plantas no xaxim"
João Ângelo Salvadori:
"rigor do ofício
tudo que não seja haicai
é um desperdício"
"lua errada
revirei toda a noite
e nada"
mais alguns avulsos...
Paulo Franchetti:
"ao virar a esquina
saindo detrás do prédio
a lua cheia"
Yosa Buson:
"frescor
a voz do sino
quando deixa o sino!"
Teruko Oda:
"noite de verão
na janela envidraçada
cabe a lua cheia"
Paulo Leminski:
"tarde de vento
até as árvores
querem vir para dentro"
Thadeu Wojciechowski:
"conversa de passarinho
por ninharia me sinto
um estranho no ninho"
Issa Kobayashi:
"caracol,
docemente, docemente
escala o Fuji"
Yosa Buson:
"halo de lua:
não é o aroma da ameixeira florida
nascendo no céu?"
Solda:
"primavera
ainda esta semana
cometo um ikebana"
Edu Hoffmann:
"vem de longe
d i v a g a r
se vai ao monge"
Barbara Lia:
"No galho alto
pássaro bicou a paina
Repercutiu neve"
"Não dá para respirar
lambendo meu coração
O ar agora arranha"
Lisa Carducci (Québec):
"durante teu sono
brinco com as nuvens
e nem percebes"
André Duhaine (Québec):
"nos vidros
marcas de dedos e narizes
observam a chuva"
Jeanne Emrich:
"seu jardim
meu jardim
a cerca no meio"
Pesquisa e texto: Edu Hoffmann, natural de Jacarezinho-PR. Poeta, jornalista, em Curitiba desde 1974. Autor dos livros: Trens, Rasantes, Sete Quedas da Paixão e Bambus.
Fotos e ilustrações: Google.
Izabel Liviski é Fotógrafa e Professora de Sociologia, disciplina em que é Doutoranda pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e da Cultura, e Linguagens Visuais. Escreve a coluna INCONTROS quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.
2 comentários:
Delícia de leitura. Millors, Hoffmanns, Leminskis, Ruizes e Bashô. Viva o Haikai e os seus poetas. Sônia Gutierrez
11 de julho de 2012 às 21:37Tão bom....Poesia boa faz bem pra alma. Obrigada. Noemi
8 de maio de 2013 às 14:25Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.