Vidas passadas
Sempre desconfiei da sanidade do primo Chico... Estrela? Santeiro? Santinho? Sombrinha? Das Almas? Do Brejo? Da Lua? Da Luz? Não lembro. O danado tinha dezenas de sobrenomes. E jurava de mãos atadas e pés juntos ter sido muitos: um poeta romântico no século 19, um nobre decadente no 18, um botocudo no 17, um arcebispo de pouca fé no 16.
Segundo meus cálculos, com mais duas ou três sessões de regressão, ele descobriria ter sido o próprio Moisés. Ou Noé. Talvez Adão. Whatever.
O fato é que o primo acreditava em vidas passadas e outros contos da Carochinha. E eu, de uns tempos pra cá, especialmente depois do casamento, passei a acreditar também. Mas, por favor, não me interpretem mal. Muita calma nessa hora. Não estou falando de outras existências. Estou falando desta aqui. Nossa vidinha nada besta − repleta de inúmeros eus.
Estou falando do meninote que fui um dia. Que adorava caroço de feijão. Que não aprendeu a andar de bicicleta. Que lanchava Mirabel todos os dias. Que, todo tímido, não pediu à tia para ir ao banheiro e fez xixi no uniforme. Que tinha a mão calejada de tanto Atari. Que se encantava com xuxuxus-xaxaxás e outros dadaísmos infantis.
Estou falando do adolescente que fui um dia. Que passou a detestar caroço de feijão. Que não aprendeu a andar de bicicleta. Que não encontrava o valor de x, y e z nas aulas de matemática. Que se tornou louco por futebol. Que sonhou amores impossíveis. Que custou a dar o primeiro beijo. Que se apaixonou pelos Beatles.
Estou falando do homem que sou hoje. Que continua fugindo dos caroços de feijão. Que ainda não aprendeu a andar de bicicleta. Que gosta de sushi. Que faz rafting, tirolesa, arborismo. Que garimpou uma pepita de ouro e casou-se com ela. Que dança sem vergonha. Que vai a pé pro trabalho. Que paga contas. Que dá conta de um mundo novo a cada minuto.
Já posso até imaginar as futuras. Serei eu um quarentão charmoso feito o George Clooney? Um velho quaquilionário, aventureiro como o Tio Patinhas? Um aposentado jogando biriba na Praça Saens Peña? Um escritor reconhecido, um cronista famoso, um candidato a imortal? E − o mais importante − terei enfim aprendido a andar de bicicleta?
(Hum. Não custa nada consultar o primo Chico. Vai que ele tenha sido vidente noutra vida.)
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no blog Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).
1 comentários:
o texto é bom, meche com nosso imaginário fechado por preconceitos. muito bom, ainda que fiquemos meio perdidos na leitura, nos propõem a fazer essa pergunta... o que serei? a imaginar a vidinha besta que pensamos que podemos empurrar com a bariga
4 de agosto de 2012 às 00:12Postar um comentário
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