Olhe para o meu boné
Juazeiro do Norte, Ceará. Na Rua do Horto, subida que parece interminável quando somada ao sol escaldante, casas justapostas. Na ausência de quintais e de vazios entre as construções, a rua e a calçada se transformam em um misto de espaço de descanso e de compartilhamento daquilo que poderia vir a ser trancado na fortaleza que é toda casa.
Ao fim deste percurso, a imagem que se anunciava acima das montanhas no momento da partida: o homem, o mito, o padre e, um dia, o prefeito, Cícero Romão Batista. Tão impactante quanto a figura do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, com dez metros a menos e construído trinta anos depois, seus braços não estão abertos. No lugar da recepção acalorada e que faz lembrar a crucifixão, o Padre Cícero é apresentado de modo retilíneo como uma coluna – e haveria melhor apresentação para um homem que é símbolo do poder?
Uma mão segura um chapéu, como um ato de cumprimento, enquanto a outra apoia o corpo sobre uma bengala; falecido aos noventa anos, Cícero aqui é a personificação da experiência e lança seu olhar para a paisagem desta cidade cuja existência deve muito ao seu tino. Ao redor da base deste monumento, sobre seu corpo, milagres são procurados: nomes próprios, desejos e agradecimentos se misturam dando forma a um livro a céu aberto da fé.
À frente desta escultura, algumas estruturas de ferro que lembram arquibancadas. Homens com suas máquinas fotográficas (um dia lambe-lambe e agora todas digitais) circulam o espaço e oferecem seus serviços. Não resisto e pretendo levar para casa um cartão postal personalizado, ou seja, um retrato fotográfico meu presente nesse ponto turístico. Subo numa das estruturas e, assim como um Tiziano coordenava e inseria o retratado em um esquema visual, tenho meu corpo dirigido pelo fotógrafo.
“Mantenha o corpo reto”, ele diz. Ajusta a lente e depois pede: “Agora olhe para o meu boné”. Claro, como poderia ter uma imagem minha iluminada pelo olhar seguro de Cícero evitando o contato direto com o espectador? Na simulação de sua postura confiante, duas poses são tradicionalmente possíveis: em uma foto ergo a minha mão direita, como se tocasse o homem santo. Na outra, me coloco abaixo dele e sou abençoado. Em dez minutos elas já estão impressas, portadoras de bordas verdes e de um texto que não deixa dúvidas de que estes retratos foram produzidos em Juazeiro do Norte em data específica.
Posso não ser nada religioso, mas se existe algo em que acredito é no poder das imagens e na capacidade de que nós, humanos, temos de atribuir respeito e sentido a estes espelhos de nós mesmos – seja em caráter monumental e público, seja em um frágil pedaço de papel postado a um ente querido.
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Doutorando em História e Crítica da Arte pela UERJ. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011) e "Cinema pós-iugoslavo" (Caixa Cultural de São Paulo, 2012). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores
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