quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O COTIDIANO SURREAL DE FLAVIO DAMM



“Fotografar é prender o fôlego quando todas as nossas faculdades se conjugam diante da realidade fugidia; é quando a captura da imagem constitui uma grande alegria física e intelectual.”  (Henri Cartier Bresson)


É necessário extrair o instante expressivo e decisivo do fluxo temporal; desse modo, romper com a cadeia do fluxo e, ao mesmo tempo, destacar a essência do real: os elementos em jogo estão em equilíbrio. A fotografia deve apoderar-se desse instante. Essa fábula do instante decisivo, de Bresson, tem relação com aquela de Lessing a respeito do instante fecundo: “Por suas composições que supõem a simultaneidade, a pintura não pode explorar senão um único instante da ação e deve, por conseqüência, escolher o mais fecundo, aquele que melhor fará compreender o instante que precede e o que segue.


Para o fotógrafo, é preciso, primeiramente, fazer coincidir seu fluxo pessoal com o fluxo das coisas: “Cada fotografia é tirada galopando no mesmo ritmo que o acontecimento”; essa correspondência temporal é a condição necessária de toda boa foto. “O acontecimento central do trabalho fotográfico é a fração de segundo durante a qual se produz a colisão entre, de um lado, o fluxo da realidade e, de outro, a experiência do fotógrafo, observa Beceyro. O fotógrafo deve estar sintonizado com o real e, portanto, buscar “a coincidência entre sua experiência e o real”.
                              

Para isso, ele deverá exercitar-se durante anos para saber fotografar no instante exato em que deverá fotografar. Porque se ele não estiver disponível e em ação, será tarde demais: nunca mais a foto será feita. Tal é o desafio existencial trágico dessa fábula em que a morte e o tempo desempenham aqui os papéis tradicionais que têm no Ocidente moderno: “Depois será tarde demais, não se poderá retomar o acontecimento às avessas. (...) Para nós, o que desaparece o faz para sempre; daí nossa angústia e também a originalidade essencial de nossa profissão”, declara Bresson.


Para Cartier Bresson, todo fotógrafo deve seguir quatro exigências:



 Não metralhar ao acaso pensando que Deus reconhecerá os seus. É necessário escolher com respeito e humanismo. “Entretanto, evitar-se-á metralhar”, senão o conjunto do trabalho será menos claro. Há um homem e não uma máquina atrás de cada foto;



 Trabalhar a cópia por contato do filme, mas nunca retocar nem reenquadrar, senão se trai esse instante decisivo e essa estrutura significativa;



 Nunca encenar, senão não se trata mais de fotografia, mas de teatro (fotografado): “O arranjo artificial é o que se deve temer acima de tudo”, o fotógrafo não deve intervir, deve tornar-se invisível, como um anjo, sem corpo, como o geômetra de Descartes, “fazer-se esquecer a si e à máquina fotográfica, que é sempre visível demais”;



 Não utilizar a cor, porque, por um lado, ainda não é dominada tecnicamente; por outro, como nos aproxima da natureza, ela nos afasta da estrutura: “A emoção, encontro-a no preto e branco: ele transpõe, é uma abstração, não é o ‘normal’. (...) a cor, para mim, é o campo especifico da pintura.



“Quando olho um bloco de mármore, vejo a escultura dentro: tudo o que tenho que fazer é retirar as aparas...”


Foi o que disse, há cinco séculos, o escultor, pintor de afrescos da Capela Sistina, arquiteto e poeta italiano Michelangelo Buonarroti quando lhe perguntaram como produzia tão belas obras de arte. Quando o profissional está diante de um fato que se desenrola imprevisível, “afia a navalha nos olhos”, como recomenda o poeta João Cabral de Melo Neto, e “retira as aparas” – como dizia o gênio Michelangelo – para chegar à foto que está surgindo, preocupado em ver para mostrar para quem não viu...



O fotógrafo Flavio Damm relata que," menino ainda, nos meus 11 anos, vi no jornal que meu pai lia as primeiras fotos da Segunda Guerra e, ao lhe perguntar quem fazia aquelas fotos dramáticas da invasão da Polônia, me explicou que eram soldados que iam para o campo de batalha para ver a guerra por quem não estava lá... pensei então: “quero ser isto, o de ver para mostrar para quem não viu Magnum Photos”. Aos 14 anos, fiz a minha primeira foto."


Dorothea Lange dizia que “no preto e branco está o recurso perfeito para mostrar a cara da miséria americana dos anos da recessão”.  David Douglas Duncan obedeceu a exigência de Picasso de lhe fotografar exclusivamente em preto e branco. Da praia de Omaha, em 1944 Robert Capa deixou para a história a mais dramática pagina da Segunda Guerra, o desembarque na Normandia. Mestre da fotografia em preto e branco, Henri Cartier Bresson sempre se negou a fotografar em cores.


E continua Damm: "lembro, com encanto especial, os meus preferidos na arte do preto e branco: o húngaro André Kertész e o norte americano Eugene Smith. No prefacio de seu livro Spanish Village, magnífico ensaio sobre Deleitosa, uma aldeia espanhola da Extremadura, essa afirmação de Smith de que “cor é excesso. A verdade da aldeia é mesmo em preto e branco”.


"Com o advento das novas tecnologias, a fotografia foi democratizada e dela, em preto e branco, mais se fala, mais se faz, mais se mostra. E a arte fotográfica, vista, publicada, exposta e comprada em galerias por colecionadores ganhou um espaço até então desconhecido. Fotografar em preto e branco, para mim, é juntar o prazer ao desafio: o “momento decisivo” na tentativa da composição perfeita."

A fotografia de Damm‚ é sempre em preto-e-branco, “uma boa foto não precisa de cor”‚ garante, e é voltada para o que chama de “cotidiano surreal”. Assim ele extrai da aparentemente banal rotina das ruas‚ situações tão únicas e surpreendentes que parecem ter sido montadas por alguma força superior‚ apenas para seu olhar privilegiado.

 
Flavio Damm nasceu em 1928 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Aos 16 anos lecionava latim para os colegas de sua classe e, com o dinheiro que recebia, comprava filmes e material para o laboratório. Assim, publicou sua primeira foto, em 1946, na Revista do Globo, onde, por dois anos, foi o titular do Departamento Fotografico. Em 1948 fez as primeiras – e únicas – fotos do ex-ditador Getulio Vargas em seu autoexilio na fronteira do sul. Vargas não se deixara retratar durante os três anos posteriores à sua queda e, publicada a reportagem intitulada A Longa Viagem de Volta, foi lançada sua candidatura as eleições de 1950, na qual foi eleito. Suas fotos correram o mundo, publicadas pelos mais importantes jornais e revistas, incluindo o Pravda de Moscou. Durante dez anos Flavio Damm foi membro da equipe da revista O Cruzeiro, e o único fotógrafo brasileiro presente à Coroação da Rainha da Inglaterra, em 1953.

Foi também correspondente nos EUA (1957-58). Profissionalmente fez 74 viagens ao exterior, expôs na Europa, Estados Unidos e paises da América do Sul. Tem arquivados 60.000 negativos em preto e branco, só opera com luz ambiente e em formato 35 mm. Não usa equipamento digital e nunca fotografou em cores. Ilustrou 25 livros, com textos de Jorge Amado e Gilberto Freire sobre a Bahia. Atualmente trabalha no projeto do livro Vejo Lisboa, resultado de sete meses fotografando a capital portuguesa. Foi escolhido pelo curador do Museu de Arte de São Paulo, Eder Chiodetto, como um dos oito fotógrafos “Bressonianos” do Brasil. Fotografa diariamente e é colunista da revista Photo Magazine, onde há oito anos escreve sobre fotojornalismo. Faz palestras regularmente em universidades, espaços culturais e favelas.

Serviço:

Flavio Damm – Passageiro do Preto & Branco
Fotografias 1946 – 2012
Caixa Cultural Curitiba
Rua: Conselheiro Laurindo, 280/Centro
Fone: (41) 2118-5144
Curitiba – Pr.
21 de agosto a 21 de outubro de 2012


Referência:

Soulages, François – Estética da Fotografia, Perda e permanência. Editora Senac: S.P., 2010.






Izabel Liviski, é Fotógrafa e Professora de Sociologia, disciplina em que é Doutoranda pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e da Cultura, e Linguagens Visuais. Escreve a coluna INCONTROS quinzenalmente às 5as feiras na Revista ContemporArtes.


1 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

As imagens e o texto, Izabel, me remeteram à realidade que nos é encoberta. Sabemos que as cores estão em nossa percepção, em nossa mente, não "na realidade". Por isso, talvez, o preto e branco nos pareçam mais "original", pois a distinção enttre o claro e o escuro está na base de nossa possibilidade de ver. Para mim, leigo, a fotografia me parece aquele momento em que a cena e minha sensibilidade coincidem tanto que desejo gravar isso para que outros sintam a mesma emoção que senti. Essa é a relação dialética entre possibilidade/impossibilidade, pois ao desejar eternizar minha emoção apenas permito que "o outro" sinta aflorar em si sua própria emoção. Como jamais saberei se a cor que eu "vejo" é a mesma que o outro "vê", jamais saberei se a emoção que eu quis eternizar na foto é a mesma emoção que o outro descobrirá em si mesmo em função da mesma imagem. Estamos condenados à solidão, já vaticinava Sartre.

18 de setembro de 2012 às 08:38

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