quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A supremacia da taça



Era um reinado distante, após tempos de crise e agitações sociais, o rei estava ansioso para reinstaurar a ordem e planejar junto à corte, medidas emergenciais que pudessem conter o desconforto do povo diante dos escândalos e boatos que circulavam naquele reino "próspero", e que poderiam causar danos à imagem da realeza.

Cansado das indesejáveis consultas realizadas nas tabernas e das esperanças de profundas alterações na máquina do reino, estas propagandeadas pel@s rebeldes, e com absurda aceitação pelo povo, o rei precisava agir. Perturbado com tudo isso, temia que se se permitisse que o povo continuasse a se aglutinar em multidões e a exigir coisas jamais pensadas em tempos áureos, o seu reinado entraria em colapso e @s insurgentes ocupariam o trono.

Neste momento de transição para a estabilidade, o rei considerou ser de bom tom, chamar a plebe às suas funções, para que abandonassem a arruaça e toda a sorte de malfeitoria, e ordenou que fosse exclamado em todas os distritos do reino: A Realeza solicita à plebe que se prepare para o retorno ao trabalho dignificante. Dizem as criaturas infames, que tal aviso tornou-se uma grande piada em todos os cantos, e que cancioneir@s entoavam cânticos fazendo troça da emissão real.

Envidando esforços para que fosse reestabelecido o calendário de trabalho, o rei convocou @s membr@s da corte, @s trabalhador@s da burocracia e a plebe, para uma sessão na qual faria uma consulta ao reinado, de modo que fosse possível tomar suas decisões com tranquilidade. Era primavera, as flores do campo desabrochavam e as fábricas voltavam a operar e produzir o conhecimento que iria alimentar todo o império, e alimentar a fama de reino da excelência, comprovada e legitimada pelos pergaminhos do serviço de informação imperial.

A querela entre @s adept@s do pergaminho e @s inovador@s copistas de livros, ainda era grande. @s pergamistas defendiam a segurança e a durabilidade, e @s copistas, a facilidade de manuseio e acesso dos livros. Um embate entre duas gerações que marcava as práticas do povo e da corte, quase sempre havendo um anseio do responsável rei, por manter o seguro e o conhecido, ao invés de arriscar-se com inovações estranhas à tradição.

Se para os registros literários o rei buscava salvaguardar o estabelecido e concreto, não seria diferente quando o assunto fosse cumprir com a missão educacional do reino, e com a garantia da reprodução daquela cultura tão peculiar. E assim se fez. Aberta a sessão, colocou-se o embate do dia: a escolha entre um calendário que permitisse a flexibilidade da produção ou um calendário que fizesse com que @s revoltos@s de outrora tivessem que arcar com o ônus de ousar perturbar a paz do reino. Incrivelmente, diante de tais soluções tão diferentes, a corte e @s demais membr@s do reino, pareciam demonstrar um alinhamento claro com o que era executável e responsável. Por um instante se fez o silêncio, as escravas do reino serviam vinho e pão, e o rei, sorridente, calmo e feliz, questionou: vossas senhorias entendem que eu deva acolher o desejo pela proposta de calendário que busca colocar na linha, tudo o que andou fora dela?

Diante do silêncio consensual, surge uma voz um tanto rouca e com uma articulação febril. Sim, ele, o estrangeiro, que veio de terras distantes e de forma despudorada clamou em praça pública: O rei está nu! O rei está nu! Vejam como expõe suas partes pudentas, para a vergonha e desespero do povo! Vinha ele, com suas artimanhas ardilosas, questionar os princípios dos calendários de trabalho a serem aprovados.

Logo, o chefe da legião real se enfureceu e disse: não há que se falar em princípios, as propostas estão claras e passaram por sabatina longa e rigorosa. Não adianta tentar ganhar tempo, postergando uma decisão que há muito já devia ter sido tomada. Constrangido, o pobre estrangeiro pede a palavra, pedido atendido bondosamente pelo terno e paciente rei. E questiona: o que queres dizer com ganhar tempo? Quais as razões para se desejar ganhá-lo?

Neste momento, o rei é tomado por uma fúria demoníaca e diz: ora, não há que se discutir princípios aqui. Há que se decidir entre o ônus e a irresponsabilidade! Sorrindo e novamente tomado pela complacência habitual, ele levanta um cálice diante do reino e pergunta: vocês estão vendo este cálice e o vinho que nele foi depositado? É necessário algum escrito para que se prove a existência dele? A platéia ri diante da ridicularização e da demonstração tão exata do amado rei sobre os fatos e as coisas. O rei prossegue a consulta, e num momento histórico, como jamais visto no reino, a proposta do calendário responsável é aprovada por aclamação. Há quem diga, que o chefe do castelo de calculistas permanece sentado, assim como a arquiteta das máquinas de colheita e a alquimista dos sonhos. Se est@s rebeldes realmente enfrentaram os desejos da tão ilustrada e magnificente corte e o senil rei, é difícil saber, mas algo é certo: @s membr@s da plebe, artes@s, ferreir@s e agricultor@s referendaram o que a corte almejava. É encerrada a sessão, e assegurado o novo regime de trabalho no reino.

Passados alguns dias, boatos e lendas tomam conta do reino. Vaqueir@s, pastor@s, ferreir@s, artes@s e agricultor@s, esbravejam diante das notícias sobre a atuação d@s plebeus escolhidos pelo povo para a polêmica sessão. Indignad@s, saem às vias e jogam lavagem de porco nas passagens, marcam o couro trêmulo com figuras horrendas e com os nomes d@s traídor@s, buscam de porta em porta, de celeiro em celeiro, as criaturas que lhes haviam desonrado.

Diante do terror público que poderia se instalar, o sapiente rei, mandou recolher todos os escritos provocativos e que incitassem a violência, e num gesto bondoso e preocupado, não só defendeu seus amad@s plebeus, como mandou um aviso: se ocorrer algum dano à integridade física de meus amad@s e fiéis serv@s, hei de convocar o exército imperial, e tod@s @s perturbador@s da ordem pública sentirão a lâmina da espada cortar suas cabeças não ilustradas!

O silêncio tomou novamente seu lugar primordial no reino. @s leiteir@s nunca produziram como agora, os campos de trigo passaram a ser semeados, @s artes@s já produziam os artefatos próximo aos lamaçais, para que não perdessem tempo buscando insumos. O temor estava reestabelecido, as tabernas esvaziadas e as multidões dissipadas. Mas a velha e louca cartomante, ria como nunca antes. Dizia que por fora as belas violas eram tocadas, mas as cordas estavam por um fio, e que cedo ou tarde iriam arrebentar.

Filósof@s e Físic@s se entregavam à um embate sutil e ameaçador. @s primeir@s se perguntavam sobre os pressupostos e significados que pudessem provar que a famosa taça erguida pelo rei, era aquilo que o mesmo proclamava. @s físic@s, buscavam vestígios dos elementos que poderiam demonstrar qual era a real constituição do artefato. E a vida continuava bela e produtiva no reino da excelência, mas com um ar misterioso e com suspeitas de intrigas e armações secretas, sobre as quais, apenas dizia a jovem tecelã:

nada pode ser provado
mas também nada negado
só nos resta este fardo
conviver com o desagrado
e você, qual o seu lado
se pergunta o povoado
nunca antes nesta vida
vi tanto agito no reinado
mas depois de tudo isso
qual será nosso legado?

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Participa do DEFILOTRANS - Grupo de Debates Filosóficos Transdisciplinares Para Além da Academia.




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