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A supremacia da taça



Era um reinado distante, após tempos de crise e agitações sociais, o rei estava ansioso para reinstaurar a ordem e planejar junto à corte, medidas emergenciais que pudessem conter o desconforto do povo diante dos escândalos e boatos que circulavam naquele reino "próspero", e que poderiam causar danos à imagem da realeza.

Cansado das indesejáveis consultas realizadas nas tabernas e das esperanças de profundas alterações na máquina do reino, estas propagandeadas pel@s rebeldes, e com absurda aceitação pelo povo, o rei precisava agir. Perturbado com tudo isso, temia que se se permitisse que o povo continuasse a se aglutinar em multidões e a exigir coisas jamais pensadas em tempos áureos, o seu reinado entraria em colapso e @s insurgentes ocupariam o trono.

Neste momento de transição para a estabilidade, o rei considerou ser de bom tom, chamar a plebe às suas funções, para que abandonassem a arruaça e toda a sorte de malfeitoria, e ordenou que fosse exclamado em todas os distritos do reino: A Realeza solicita à plebe que se prepare para o retorno ao trabalho dignificante. Dizem as criaturas infames, que tal aviso tornou-se uma grande piada em todos os cantos, e que cancioneir@s entoavam cânticos fazendo troça da emissão real.

Envidando esforços para que fosse reestabelecido o calendário de trabalho, o rei convocou @s membr@s da corte, @s trabalhador@s da burocracia e a plebe, para uma sessão na qual faria uma consulta ao reinado, de modo que fosse possível tomar suas decisões com tranquilidade. Era primavera, as flores do campo desabrochavam e as fábricas voltavam a operar e produzir o conhecimento que iria alimentar todo o império, e alimentar a fama de reino da excelência, comprovada e legitimada pelos pergaminhos do serviço de informação imperial.

A querela entre @s adept@s do pergaminho e @s inovador@s copistas de livros, ainda era grande. @s pergamistas defendiam a segurança e a durabilidade, e @s copistas, a facilidade de manuseio e acesso dos livros. Um embate entre duas gerações que marcava as práticas do povo e da corte, quase sempre havendo um anseio do responsável rei, por manter o seguro e o conhecido, ao invés de arriscar-se com inovações estranhas à tradição.

Se para os registros literários o rei buscava salvaguardar o estabelecido e concreto, não seria diferente quando o assunto fosse cumprir com a missão educacional do reino, e com a garantia da reprodução daquela cultura tão peculiar. E assim se fez. Aberta a sessão, colocou-se o embate do dia: a escolha entre um calendário que permitisse a flexibilidade da produção ou um calendário que fizesse com que @s revoltos@s de outrora tivessem que arcar com o ônus de ousar perturbar a paz do reino. Incrivelmente, diante de tais soluções tão diferentes, a corte e @s demais membr@s do reino, pareciam demonstrar um alinhamento claro com o que era executável e responsável. Por um instante se fez o silêncio, as escravas do reino serviam vinho e pão, e o rei, sorridente, calmo e feliz, questionou: vossas senhorias entendem que eu deva acolher o desejo pela proposta de calendário que busca colocar na linha, tudo o que andou fora dela?

Diante do silêncio consensual, surge uma voz um tanto rouca e com uma articulação febril. Sim, ele, o estrangeiro, que veio de terras distantes e de forma despudorada clamou em praça pública: O rei está nu! O rei está nu! Vejam como expõe suas partes pudentas, para a vergonha e desespero do povo! Vinha ele, com suas artimanhas ardilosas, questionar os princípios dos calendários de trabalho a serem aprovados.

Logo, o chefe da legião real se enfureceu e disse: não há que se falar em princípios, as propostas estão claras e passaram por sabatina longa e rigorosa. Não adianta tentar ganhar tempo, postergando uma decisão que há muito já devia ter sido tomada. Constrangido, o pobre estrangeiro pede a palavra, pedido atendido bondosamente pelo terno e paciente rei. E questiona: o que queres dizer com ganhar tempo? Quais as razões para se desejar ganhá-lo?

Neste momento, o rei é tomado por uma fúria demoníaca e diz: ora, não há que se discutir princípios aqui. Há que se decidir entre o ônus e a irresponsabilidade! Sorrindo e novamente tomado pela complacência habitual, ele levanta um cálice diante do reino e pergunta: vocês estão vendo este cálice e o vinho que nele foi depositado? É necessário algum escrito para que se prove a existência dele? A platéia ri diante da ridicularização e da demonstração tão exata do amado rei sobre os fatos e as coisas. O rei prossegue a consulta, e num momento histórico, como jamais visto no reino, a proposta do calendário responsável é aprovada por aclamação. Há quem diga, que o chefe do castelo de calculistas permanece sentado, assim como a arquiteta das máquinas de colheita e a alquimista dos sonhos. Se est@s rebeldes realmente enfrentaram os desejos da tão ilustrada e magnificente corte e o senil rei, é difícil saber, mas algo é certo: @s membr@s da plebe, artes@s, ferreir@s e agricultor@s referendaram o que a corte almejava. É encerrada a sessão, e assegurado o novo regime de trabalho no reino.

Passados alguns dias, boatos e lendas tomam conta do reino. Vaqueir@s, pastor@s, ferreir@s, artes@s e agricultor@s, esbravejam diante das notícias sobre a atuação d@s plebeus escolhidos pelo povo para a polêmica sessão. Indignad@s, saem às vias e jogam lavagem de porco nas passagens, marcam o couro trêmulo com figuras horrendas e com os nomes d@s traídor@s, buscam de porta em porta, de celeiro em celeiro, as criaturas que lhes haviam desonrado.

Diante do terror público que poderia se instalar, o sapiente rei, mandou recolher todos os escritos provocativos e que incitassem a violência, e num gesto bondoso e preocupado, não só defendeu seus amad@s plebeus, como mandou um aviso: se ocorrer algum dano à integridade física de meus amad@s e fiéis serv@s, hei de convocar o exército imperial, e tod@s @s perturbador@s da ordem pública sentirão a lâmina da espada cortar suas cabeças não ilustradas!

O silêncio tomou novamente seu lugar primordial no reino. @s leiteir@s nunca produziram como agora, os campos de trigo passaram a ser semeados, @s artes@s já produziam os artefatos próximo aos lamaçais, para que não perdessem tempo buscando insumos. O temor estava reestabelecido, as tabernas esvaziadas e as multidões dissipadas. Mas a velha e louca cartomante, ria como nunca antes. Dizia que por fora as belas violas eram tocadas, mas as cordas estavam por um fio, e que cedo ou tarde iriam arrebentar.

Filósof@s e Físic@s se entregavam à um embate sutil e ameaçador. @s primeir@s se perguntavam sobre os pressupostos e significados que pudessem provar que a famosa taça erguida pelo rei, era aquilo que o mesmo proclamava. @s físic@s, buscavam vestígios dos elementos que poderiam demonstrar qual era a real constituição do artefato. E a vida continuava bela e produtiva no reino da excelência, mas com um ar misterioso e com suspeitas de intrigas e armações secretas, sobre as quais, apenas dizia a jovem tecelã:

nada pode ser provado
mas também nada negado
só nos resta este fardo
conviver com o desagrado
e você, qual o seu lado
se pergunta o povoado
nunca antes nesta vida
vi tanto agito no reinado
mas depois de tudo isso
qual será nosso legado?

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Participa do DEFILOTRANS - Grupo de Debates Filosóficos Transdisciplinares Para Além da Academia.




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Das deformações e o risco de tratá-las



Da crise
Em tempos de crise das grandes narrativas humanas, de apatia generalizada, de descrença, de excessiva fragmentação e de atuações políticas cada vez mais pontuais e superficiais, o vulgo assume como forma mais adequada de sobrevivência, a "diplomacia sambística". Uma estranha combinação entre os jogos de poder bem comportados e o estilo de vida despojado e descompromissado, marcado por uma inversão de papéis; amálgama comum d@s criaturas imersas no ambiente cultural da província Pau-brasil.

Do espetáculo
Tal "diplomacia", tem se mostrado a melhor forma de esconder as tensões sociais e levar adiante o projeto propagandístico, de exaltar o que há ou um dia haverá de melhor na província, buscando motivar o povo e garantir os braços e mentes que irão empurrar a carroça quebrada nacional, pelos caminhos tortuosos que a levarão ao precipício. Cenas que iriam deixar constrangid@s, @s maiores ilusionistas do mundo.

Da conjuntura
Talvez por arrogância, ignorância ou otimismo, ou mesmo pelas características citadas conjugadas, a reflexão e a capacidade crítica se esvaíram. Sobrou a politicagem, em busca das migalhas dos pães mofados, que caem das mesas d@s poderos@s. Restaram os sorrisos, os tapinhas nas costas, os apertos de mão, os favores. E não se pode deixar de lado a palavra de ordem: reformar, refazer, reestruturar ... re ... re ... re ...

Dos resultados
Diante da balbúrdia, qualquer ser, minimamente pensante e que tenha o perigoso hábito de confrontar as narrativas e discursos que circulam por aí, com a experiência subjetiva, sente um deslocamento profundo, entre o que o intelecto lhe apresenta e o que os fenômenos demonstram. Algum@s mal comportad@s, louc@s, solitári@s e perturbad@s criaturas, diante do impasse exposto e das dificuldades de análise das aparências, decidem subjulgar a experiência à uma sistemática e rigorosa análise intelectual. Possuíd@s por um compromisso com a razão e com uma criteriosa interpretação da vida, pautada por uma ética singular, passam a regular suas vidas não mais pelos valores vigentes, e a agir num confronto radical, e muitas vezes violento com o que @s circunscreve.

Das congregações e seus atos
As egrégias congregações institucionais, diante de tais deformações nos tecidos sociais, colocam em ação, su@s agentes de "sensibilização", "acompanhamento" e "orientação", buscando cumprir suas missões institucionais de "inclusão social". Há que se questionar, se tais desejam ou procuram se tornar mais um retalho do lençol maculado, ou se o que querem é promover "esclarecimentos" de pontos obscuros.

Do diagnóstico
Defendo a tese, que estas pessoas, não podem e jamais serão "integradas". Isso se deve pelas seguintes razões: possuem em suas constituições, marcas indeléveis de uma radicalidade fora de moda; formaram-se com base em uma ruptura entre o "eu regulador" e o meio no qual se deslocam; não compartilham os rituais e práticas comuns; estão infectadas por um "certo ceticismo" incurável; em suas longas e contínuas observações, não abrem concessões nem à si mesmas, colocando em risco a segurança, equilíbrio e inteligibilidade, que o "eu regulador" poderia garantir; brincam de dogmatismo, tentando artificializar múltiplas existências, sem concretizar nenhuma; agem com despudor e não reconhecem poder ou legitimação que não sejam dados por elas, estes passíveis de suspensão num piscar de olhos; e por fim, em seus descaminhos, possuem uma espiral que as guia rumo à um destino que se oculta nelas mesmas.

Do tratamento
Resta à bo@ jogador@ política, encontrar meios de "acolher" esses seres "excessivos", e não é nos manuais que irá encontrar as ferramentas de "tratamento", muito menos tentando alterar as peças do tabuleiro. Cabe-lhe, a nobre e difícil tarefa de tentar estabelecer algum contato, abandonando sua linguagem, sua forma, suas velhas, enferrujadas e inadequadas ferramentas racionais e se dispor à tentativa sincera e persistente de tentar dar conta de um pouco do gás que é emanado, sob risco de se intoxicar e se perder eternamente, e jamais lembrar quais as razões que @ levaram à tal situação.

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Integrante do Grupo de Pesquisa ABC das Diversidades. Atua no projeto de extensão Memória dos Paladares.




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Do sentir e das entregas



Na perigosa tentativa de se tentar separar a razão e a emoção, @s pobres mortais se mecanizam. Eliminam as possibilidades que lhe são dadas, otimizando ganhos em perdas, transformando a riqueza das experiências num eterno cassino.

Cansad@s do jogo, se entregam às lamúrias, se vitimizam, terceirizam a culpa, cultivam ódios, num infernal e sutil estado de esquizofrenia. Covardes, querem fugir dos dilemas existenciais, e acreditam que quanto mais conseguirem usar a manipulação para posicionar as pessoas em seus tabuleiros de xadrez, estarão mais bem sucedid@s. Gozam de uma felicidade estéril, de alegrias instantâneas e de uma angústia eterna em busca de um possível eu, que destroem paulatinamente. Tentam se refugir e se defender e se tornam cárceres dos seus emaranhados de artimanhas. Não podem se entregar, pois não são, não existem como entes singulares, mas como mero script a ser reproduzido.

Diante disso, só me cabe errar, pecar, profanar, me derramar ... e assim fiz, faço e farei, em busca de um pleno sentir e de uma existência que realmente valha a pena ...

Eu me entreguei, você me consumiu, mas pouco quis dar, pouco pode dar, e assim pouco sentiu, graças a tudo o que você mesmo armou ...

Ao tentar ser o don@ da situação perdeu a sensibilidade, se é que já teve algum dia ...

É preferível ser enganad@ mil vezes, mas poder sentir o gostinho de sonho para depois provar do fel ... a ser uma estátua de pedra impenetrável e imponente, mas oca por dentro, aparentemente forte, mas extremamente frágil, que se engana e engana ... e nesse jogo de sombras jamais tocará algo ... pois paira sobre a luz e a escuridão a penumbra de um espírito perturbado ...

E ria apostando se eu ia escrever estas letras ... hei de escrevê-las e muitas outras, dos momentos que importam marcar e descartar ...

Não quero ser culpad@ pelo crime de negar um pouco do mel de minha boca à um@ pobre mortal, deus@ que sou, sei que a eternidade vale mais do que qualquer frivolidade humana, do que os poucos momentos que pensam abandonar a servidão em busca de um pouco de prazer ... miseráveis, dignos de pena ... escrav@s de si e dos outros, incapazes de experimentar a pureza da vida ...

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Integrante do Grupo de Pesquisa ABC das Diversidades. Atua no projeto de extensão Diversidades em Performances.
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Uma chave interpretativa para nossas vidinhas miseráveis



O mundo vive um momento histórico curioso. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, boa parte d@s intelectuais e polític@s deixaram de acreditar nas teses e ideias socialistas. Não com base em estudos, debates e outras atividades dos centros de produção e difusão do conhecimento, mas por mero pragmatismo barato, no qual a "realidade concreta" passou a falar mais alto e as análises e reflexões se tornaram servis ao que a "realidade social" e a "cultura local" apresentava. É uma troca de base: olhar e procurar entender o mundo a partir dos fenômenos e não das coisas em si. Olha-se para o vestido manchado e não se dá muita importância para o que provocou a mancha. Com o suposto fim do "socialismo real", as teses neoliberais ganharam força e se firmaram, tornando-se guias para o Establishment.

Quase duas décadas depois, em 2007-2008, uma "surpresa" desagradável aconteceu, o Muro de Wall Street ruiu, @s clérig@s do livre mercado colocaram um exército de especialistas (economistas em sua maior parte, verdadeir@s astrólog@s da ciência dos estoques) para "esclarecer" a população sobre o fato; erros, falcatruas, mal gerenciamento, e toda sorte de desculpa superficial que coloca um véu sobre os fundamentos dos problemas, terceiriza e personaliza a culpa, foram disseminados com o objetivo de sedar as mentes mais cautelosas, numa clara política de entulhamento mental. Mesmo assim, o neoliberalismo perdeu seu prestígio de salvador do mundo e o mundo ocidental passou a diversificar seus modelos de organização social. De repente, algumas pessoas se deram conta de um gigante "adormecido", o domínio do marxismo cultural em todas as esferas do cotidiano secular e seu embate profundo contra @s conservador@s.

Como balanço destes processos, e de modo a não desagradar @s noss@s iluminad@s dirigentes mundiais, tivemos a difusão de um modelo híbrido: a forte influência do marxismo na Cultura, conjugado com o neoliberalismo na Economia. Há variações deste modelo simplificado, porém, entendo que o mesmo serve como uma boa chave interpretativa de nossas vidas em sociedade, na alvorada do século XXI. De um lado temos uma certa ética e forma de regular nossos espíritos, sentimentos, desejos e ideias, do outro as ferramentas de materialização dos desejos e ideias que cremos ser nossos. Amb@s se servem e trocam favores. A Economia usa as ferramentas culturais para propor sua agenda e a Cultura faz uso da organização econômica vigente para implementar seus pressupostos éticos e estéticos. O Estado, como "nunca antes na história do planeta", passou a regular os detalhes mais íntimos de nossas vidas, a Economia, a secar as fontes materiais do que é considerado supérfluo e desnecessário.

E o ser humano como fica? Os fundamentalismos, as tensões sociais, a pobreza extrema, a destruição de princípios e valores que regularam as nossas vidas nos últimos séculos? Até quando viveremos em estado esquizofrênico, numa verdadeira Babilônia mental e sentimental? Até quando teremos nossas "liberdades" rifadas por burocratas e suas instituições que operam como linhas de produção? Até quando vamos nos contentar com o possível , o viável, o realizável?

Passemos um litro de óleo de peroba em nossas caras lisas e respeitemos o sangue e a vidas de quem lutou pelo impossível, para que hoje possamos no conforto de nossas casas, expor nossas visões e opiniões sobre o mundo, sem sermos assassinad@s pel@s censor@s.

Que nós, enfrentemos com coragem as complexidades do século XXI e paremos de nos resguardar nas teses antigas de pensador@s ilustres para referendar dogmas. A preguiça mental é a mais maldita das preguiças, ela torna qualquer esforço árduo e trabalho concreto nulo ou desnecessário. Só por isso que creio que PENSAR, REFLETIR e ANALISAR, são três atividades que devem centrar nossas vidas. E devem fazer parte de nossas rotinas assim como os cuidados diários que permitem nossa indigna e ordinária vida material.

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Integrante do Grupo de Pesquisa ABC das Diversidades. Atua no projeto de extensão Diversidades em Performances.
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Um visto para o amor



Ela tinha acabado de desembarcar de mais uma viagem, queria ter ficado lá, mas seus deveres menos dignos esperavam pelo cumprimento. Queria eternizar o superficial, o mágico, o bem viver que encontrou nos rostos sorridentes das tardes quentes vividas na terra da alegria. Pensou sobre sua vida, em como se libertar das amarras da instituição total, e se deu conta que deveria mudar, olhar para outros cantos, desenterrar a delicadeza e o amor que estavam soterrados na burocracia e amarras.

Ele surge cauteloso, inquisidor, desejando respostas e afirmações claras. Dizia coisas sobre fatos, verdades, certezas, certos e errados, perturbava-a com seus pedidos. Exigia que ela tomasse posição. Abriu o processo para verificar se ela tinha condições de adentrar naquele território sombrio e secreto. Disse-lhe, que talvez pudesse lhe conceder um visto para o amor. As condições seriam postas em contrato. Todas as mensagens gravadas, fotos arquivadas, análise e perícia embasariam a decisão final.

El@s compartilhavam o ceticismo político, ela um tanto paranóica, ele materialista. Juntos compartilhavam o sublime decanato dos peixes, talvez envolt@s pelas "forças do universo", que decidiram criar ali um laço, talvez eterno, talvez sutil, mas profundamente intenso. Exigentes e crític@s, desfiavam palavras duras contra tudo o que discordavam, compartilhavam amargura, revolta e uma profunda vontade de abandonar tudo aquilo que @s marcou nos últimos tempos.

Ele lhe pediu que o olha-se nos olhos, suspeitou de sua beleza triste, queria ver tudo o que ela sempre quis guardar. Ele já não aceitaria reservas, queria plenitude, exigiu que fossem postas as cartas na mesa. Questionava-lhe sobre os detalhes das coisas, buscava uma autenticidade que pudesse lhe dar garantias, um terreno seguro para pisar. Ela, movediça, tentava lhe mostrar a dinâmica da vida, sua impenetrabilidade, o sagrado, o profano, as perspectivas que derrubam as certezas desejadas. Levou-lhe às divagações apaixonadas, ele lhe trazia de volta para o pequeno porto onde se encontravam. Provocado, ele tentou avançar, ela, temerosa, desconversou.

Ele transitava pelos mundos, grande viajante, havia descido há pouco tempo por essas terras brasileiras. Ela, índia selvagem, domesticada até certo ponto, mas jamais civilizada. Pairavam sobre as culturas que lhes acolhiam e compartilhavam os muros que corações frágeis erguem para proteger grandes tesouros. Desejavam-se, temiam-se, conversavam olhando nos olhos, com lábios carnudos loucos para se tocarem, mãos trêmulas que almejavam a segurança dos laços que os levariam adiante. E tudo se tornava obscuro em meio a luz, já não podiam olhar para suas vidas, sem pensar um no outro. Era insuportável, ele diria que era bom, ela que era seguro, embora as âncoras estivessem distantes e os barcos fossem arrebatados pelas fortes ondas do mar.

Ela tinha tomado a decisão, talvez precipitada, não sabemos, de entregar um pouco de si, talvez tudo. De tentar viver aquilo sem amarras, sem ter que prestar contas ao seu mantenedor. Ele mantinha cautela, apresentava mapas, demonstrava perigos e questionava: você quer mesmo embarcar? Tem certeza? Sem resposta, ela virou-se e lhe revidou com mais perguntas:

O que é isso que nos consome sorrateiramente, nos perturba a razão, faz tremer o corpo, desperta o desejo, faz desabrochar a doçura e a sensibilidade, nos perturba com uma dose de sonho e realidade? Por que a vida é tão mais deliciosa quando mitificada? Queria poder me entregar eternamente ao que é mais belo, leve e sublime, para me libertar da obscuridade que invadiu minha alma, mas temo me aprofundar na escuridão se eu me envolver neste jogo perigoso. Ainda me lembro do final trágico de mais um enlace, intenso e rápido, me levou ao céu e ao inferno em poucos segundos e deixou um vazio sem fim.

Mas o que é a vida para além da superfície? Quero que me leve ao mar, que percamos o chão de vista, que arrisquemos tudo o que temos. E se este mar nos consumir, que nos leve às profundezas, pois é nas profundezas que sentimos as delícias mais fortes e as decepções mais devastadoras.

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.


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A racionalidade e a existência postas à prova



Em alguns momentos da vida, balanços existenciais são fundamentais para que possamos digerir nossas trajetórias e planejar nossos comportamentos, escolhas e ações. Andei pensando em como reorganizar minhas análises existenciais a partir de uma perspectiva mais racional.

Agimos, convivemos, discutimos, acreditamos, julgamos, entendemos, experimentamos, amamos, enxergamos, entre muitas outras atividades humanas, a partir de nossas estruturas intelectuais. São elas que abrigam nossas emoções e pensamentos, que serão expressas corporalmente e alteradas pelo modo como nossos corpos ocupam espaço no mundo. Partindo dessas ideias, fiz um passeio não autorizado pelas áreas da filosofia e tentei montar uma certa estrutura analítica. 


Ao convivermos em comunidades e grupos, nos ancoramos em pressupostos da Filosofia Política, que irá nos dizer que temos um hipotético contrato social, que deveríamos obedecer. Há estruturas institucionais, nas quais iremos viver e que sem as quais não seria possível organizar a vida em sociedade, nem levar adiante os projetos coletivos. Temos um Estado soberano ao qual somos filiad@s, uma Pátria que cumpre o papel materno e forças coercitivas que nos impedem de agirmos de forma prejudicial às(aos) outr@s membras da Pólis. Liberdade, democracia, regulamentação, poder, conceitos que sentimos e experimentamos, muitas vezes sem compreender claramente. 

Diante da vida pública, surge uma outra área que nos ajuda a regular nossos comportamentos e exprimir juízos de valor, a Ética. É ela que irá nos ajudar a julgar se algo é bom ou mau, e nos servirá como guia para a vida. Colocará nossas especulações, desejos e ideias em diálogo com as possibilidades terrenas de julgamento e realização. Sem ela, não é possível decidir quais devem ser nossas posturas na vida social. Com ela, se torna possível construir teorias políticas que possam ter alguma inteligibilidade.

Mas como podemos pensar eticamente, se não houver uma possibilidade de organizar e ancorar o conhecimento? De que forma acessamos o mundo e o interpretamos? Nesta situação, a Epistemologia cumpre um papel fundamental. Ela nos ajuda a questionar nossos modos de interpretação da realidade, a validade de nossas construções teóricas e experimentos, os canais e meios de acesso à natureza e a cultura nas quais estamos inserid@s. É ela que irá dar sentido as coisas, materializar nossas especulações, criando um material sobre o qual seja possível fazer ética e política. 


É claro que esta tentativa simplificadora e hierárquica não dá conta da complexidade e dinâmica da vida. Mas nos ajuda a sistematizar uma avaliação existencial minimamente organizada. Política-Ética-Epistemologia. A tríade pela qual hei de passar algumas questões urgentes.


Já veterana de uma instituição acadêmica, ansiosa diante dos problemas gerados por alguns projetos de pesquisa e extensão, frustrada com as condições de vida institucional, desconfortável com o rotineiro roubo de minha liberdade diante dos desejos e anseios do coletivo e sem ter onde ancorar minhas inquietações intelectuais, tentarei propor ideias que possibilitariam novos rumos e deduzir suas consequências. 


Epistemologicamente, aceitarei que existe um espaço, um mundo físico, no qual há uma sociedade organizada, aos quais é possível acessar mesmo que parcialmente, pela diversidade de especulações filosóficas e pelos experimentos e teorias científicas. Acreditarei haver algo que se chama tempo e que me permite falar sobre coisas e fatos que deixaram de existir, existem e que podem vir a existência. Terei como pressuposto que tenho um corpo, uma mente não material e uma certa ideia-mito regulador de um EU que me possibilita acessar o mundo e me diferenciar como algo singular e participante nele. Também aceitarei que existe a possibilidade de apreensão e produção de significados, aos quais darei o nome de cultura e sobre os quais não há a possibilidade de inteligibilidade. 


Eticamente, terei que aceitar que dada as proposições anteriores, estou atrelada, independente do meu desejo pessoal, aos produtos culturais que são gerados em uma sociedade, que é possível num mundo físico, e que meu acesso é dado por um EU que tem uma certa independência e singularidade e que dotado de inteligibilidade é capaz de tomar decisões. Sendo assim, e tendo como base a ideia de que há uma diversidade de teorias e experimentos científicos e especulações filosóficas e que não me é possível   aceitar todas ao mesmo tempo, torna-se necessário escolher entre elas as que considero boas e dotadas de maior razoabilidade. 


Politicamente, terei que aceitar que o meu EU é dotado de corpo e participante de um mundo físico e social, permeados de cultura que lhes dão significado. Com base na ideia de que uma ética não é somente necessária, mas obrigatória para que eu possa fazer algum juízo de valor e decidir entre uma teoria ou especulação que venha a guiar minhas ações, tenho que tomar posições políticas numa vida em sociedade, que  embasadas num arcabouço ético, só se sustentam se respeitarem meus pressupostos éticos, sem os quais não possuem sentido. 


Tendo eu um EU independente, participante, singular, capaz de fazer julgamentos e obrigado a se posicionar politicamente de forma eticamente consistente, deduzo que qualquer análise existencial só pode ter sentido e me guiar em prol de novas ações e comportamentos se eu descobrir quais sãos as bases epistemológicas, éticas e políticas que têm guiado minha vida até o momento. Tal árdua tarefa é sobre a qual hei de me dedicar em busca da compreensão do vazio e da confusão sem fim que invadiu o meu ser. Sobreviverá e será capaz de dar conta, de uma análise existencial, este simplório experimento racional? 

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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Castelo de Areia



Eram dois corpos tão próximos e em estados tão diferentes, numa troca de calor e frio que com o tempo levaria ao equilíbrio e a sintonia; já não seriam mais dois, apenas um. Peter Pan com seu sorriso mágico e sua voz brincalhona encantava a garota de olhos negros e franja caída. Por um momento estavam ali, sozinh@s, desconectad@s do mundo, numa fantástica experiência juvenil. Entre medos e esperanças, olhavam-se com profundidade e declamavam versos românticos, faziam promessas, juras de amor eterno, sobre um vento cortante e o sol que irradiava majestosamente naquela manhã inesperada. Compartilhavam, gostos, gestos, hábitos, sensibilidades, olhares ... A mão era beijada enquanto o abraço fraterno aproximava os corações frágeis. Dois mundos que se cruzavam naquele instante, num eclipse de possibilidades, num encontro incomum. Haviam sinais de que era muito (im)perfeit@ para ser verdadeir@, mas as mentes estavam distantes, só restavam ali, corpos sedentos, carentes, belos, que se entendiam diante do canto, dos versos, dos sorrisos; não eram necessárias mais palavras, apenas sinais suaves e indizíveis, apenas sentir, e só naquele momento. Era um belo castelo de areia. Que numa miragem distante parecia tão sólido e seguro. Mas que num mero toque se desmanchou. 


Um dia você entende, que as aparências, os fenômenos, por mais belos que sejam, muitas vezes escondem um universo sombrio e perigoso. Que se proteger e saber se retirar no momento exato é tão importante quanto se entregar plenamente. Que embora as coisas ou pessoas pareçam muito diferentes, estão tod@s atreladas às estruturas físicas, sociais e espirituais, sem as quais são incapazes de operar; com as quais passam a ter inteligibilidade e garantem a existência e preservação.


Não, não se pode negar um olhar, não se deve esconder um sorriso, não é preciso negar a aproximação. Porém, as sutilezas do envolvimento, são capazes de nos embaraçar a visão e de repente, nos fazer transcender rapidamente a um estado de ilusão e loucura, de paixão e utopia, de sonho e liberdade criativa. Liberdade que será castigada, por não poder se ancorar na realidade que a circunscreve, por estar obscurecida pelas pulsões e desejos secretos e incontroláveis. 


E a bela taça de cristal reluzente e brilhante se quebra, por um toque que vai além do que é permitido, do possível, da capacidade de suportar a força e a profundidade das emoções mais puras, doces, sinceras e selvagens que habitam os seres humanos. Emoções que como um vulcão, devem permanecer adormecidas, caso não se queira correr o risco de ser tomad@ pela tempestade de enxofre. Que queima, derrete, petrifica, mata e destrói o belo jardim com flores douradas que perfumam o amanhecer.

O que resta, é apenas um profundo deserto, no qual a aridez e o silêncio tomam conta. Onde o castelo de areia, reside submerso em mágoas e incompreensões eternas. O vazio, o nada, a dificuldade de se olhar para trás por medo de sentir a devastação que tomou conta dos sonhos que se despedaçaram. a imobilidade que impede que se tome alguma ação para sair deste estado de transe.

E há quem diga que o que importa é o amor, mas as experiências nos mostram que o que realmente importa nunca está dado, terá que ser descoberto, decifrado. Nem sempre será conhecido, às vezes adormecerá em nossas vagas lembranças futuras e irá nos marcar de uma forma tão violenta, que teremos que nos reinventar para poder suportar ...

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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Doida eu?



Doida Eu? Não, eu só queria algo a mais entende?Coisa que talvez pra você nem seja algo imaginável ou pensável,eu digo talvez,porque de repente você compartilha de algo maior também!Mas para o caso de não compartilhar, então digo a você, que eu cansei desse mundo comum,não sou conformista sou pacifista!Não faço parte desse mundo cinza de concretos irregulares e mal projetados, de esferas quadradas,prefiro os pontilhados caleidoscópicos da minha mente,são coloridos, e tem cores que nem existem aqui nesse planeta, então nem poderei descrevê-las para vocês!
Mas saibam que o meu mundo é roxo,uma pessoa me disse isso uma vez, e adotei como realidade a partir de então!Mas as vezes ele fica cinza, cinza por dentro sabe?Isso tem até diagnostico!Cinza por dentro: É quando você nota que tudo ao seu redor não faz sentido algum,quando você tem medo do que será da sua vida no futuro, se no presente já esta tão complicada, quando você é incompreendido por muitos e inclusive por você mesmo!Ai a rosa murcha, e só renasce novamente em um momento feliz, quando temos a oportunidade de sermos felizes! Porque segundo os ditados populares:
Sempre existe uma luz no fim de túnel!
No final tudo dá certo, se ainda não deu é porque ainda não é o final!
Mas é só no final que vamos ser felizes?Temos que se torturar para no fim da vida termos um minuto de felicidade, onde tudo vai dar certo!É pessoal,viver é complicado!

É quem escreveu esses ditados é mais pirado do que eu!



Marcele Moggi é escritora, ilustradora. Estudou na Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Escreveu excepcionalmente na coluna de hoje.
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A democracia d@s idiotas



Eu estava fumando um e tomando um chá, quando encontrei uma velha conhecida minha, a senhora Democracia. Ao vê-la, logo acenei e rapidamente ela se sentou na mesa. Bem vestida, sorridente e cheirosa, ela logo me deu um forte abraço. Questionadora desde o ventre materno, retomei minhas indagações sobre como esta senhora se portou durante sua estadia entre nós, criaturas humanas. Ela esperta, ágil e flexível sempre, respondeu com a velha frase: "sou a melhor do que há entre os piores regimes". Revoltada, lhe questionei por que estava com aquele manto de bondade, num dia tão quente. E logo retruquei, já ciente de sua resposta, que só poderia desejar esconder algo de muito podre. Por um momento ela foi sincera e exclamou: você sabe que tenho problemas conceituais, mas vocês não tem outra alternativa além da que eu dou à organização social contemporânea. Indignada, lhe respondi que o meretrício democrático, não me parece uma alternativa que se sustente por tanto tempo em uma sociedade do conhecimento.

Diante de gargalhadas, ela expõe toda a sua perversidade: sociedade do conhecimento? ha ha ha. Não seja tola, sua aprendiz infame. Em toda a minha trajetória pessoal (em mais de dois milênios), nunca foi possível que as massas tivessem capacidade de interpretar e analisar os regimes de poder de forma efetiva, muito menos de se dar conta da força que poderiam ter, caso se insurgissem. Além disso, sempre consegui levar para a minha cama as mentes mais eretas, fossem de membr@s da elite ou mesmo do populacho. Deitei-me com @s poderos@s mais tiran@s, egoístas e até @s iludid@s que acreditavam que podiam mudar algo neste planeta. Em pouco tempo, lhe virei as mentes, lhe reposicionei os corpos, dei-lhes comida, bebida, novas vestes e amor. Entorpecid@s, quando menos imaginavam estavam a executar um projeto no qual jamais imaginariam que iriam empenhar tantos esforços sem ao menos ter consciência do que estava por trás. Nos tempos antigos, lhes ocupei com a virilidade e o desejo de guerrear. Cansada de tanto sangue, lhes dei um Deus e uma igreja para que pudessem lavar suas vestes imundas, e um pouco de erudição para que se ocupassem dignamente. Um dia decidi que precisavam de um pouco de luz, e assim @s fiz cegamente trocar o velho Deus pela Ciência, minha prima danadinha que engana muita gente. O único problema é que acabaram tendo uma indigestão e até hoje não conseguiram sair do imbróglio moderno. E graças à covardia, lentidão, fraqueza e egoísmo continuo reinando sobre essa gente.

Revoltada diante de tal descrição descarada lhe perguntei: Mas você não se envergonha disso que tem feito e das ações de sua família abominável? Mesmo idosa e considerada incapaz, continuará a atuar entre nós?

Olhando profundamente em meus olhos ela respondeu: Você sabe que já fazem muitos anos que tenho dominado a humanidade e muita gente já questiona minha capacidade de ação, é certo que em algum momento terei que me aposentar. Diante da falta de possibilidade de uma substituta à minha altura, já montei uma equipe para coordenar os regimes de organização social de vocês.

Minha tia Educação, que já tem idade, mas sempre está melhorando suas formas por meio do bisturi de um bom cirurgião, irá continuar se modificando e mostrando seus belos seios para @s jovens idealistas que desejam mamar nas tetas dos governos. Assim garantirei que o leite envenenador de mentes seja garantido para todas as crianças.

Conhece a Cultura? Minha sobrinha predileta, ela adora uma baladinha, canta, dança, escreve muito bem e encanta a sociedade com seu sorriso sexy. Deixarei ela ocupada em entreter o pessoal e silenciosamente amolecer as mentes. Para isso lhe dei um instrumento maravilhoso: a mídia. E o melhor, até quem a ataca, adora aparecer nela. Jogo com o eterno narcisismo que está impregnado nesta espécie. Com a criação das redes sociais, e tal nome não é à toa, uma vez que é na rede que pego os peixes, a coisa ficou muito fácil, chego até a achar patético. E já ia me esquecendo, também já falei com meu contador e lhe deixarei a Indústria Cultural para que ela possa realizar este projeto, além de garantir seus meios de sustento.

Para um público seleto, deixo minha irmã, a Fé, ela foi muito atuante durante a idade média, e permitiu que eu pudesse fazer manobras que deixariam @s polític@s brasileir@s de cabelo em pé. Como uma pessoa perseverante, discreta e solidária, ela há de atuar socorrendo as pessoas em crise e lhe abrindo os braços para que sejam acolhidas, além de colocar essas belas criaturas no berço da imbecilidade eterna. Bem tenho, que ir, meu avião sairá às 17 horas.

Ops. Já ia me esquecendo de um detalhe fundamental. A Fé, a Educação e a Cultura, não podem ficar desprotegidas e já convoquei as forças coercitivas, meras operadoras inconsequentes de algo que mal compreendem, para dar conta de gente que tanta sair da linha e desrespeita nossa família institucional. Assim, pretendo garantir uma sobrevida para a dinastia democrática. Cada vez mais sutil, discreta e poderosa. Pouco a pouco minha família tem dominado a privacidade das pessoas e o melhor, elas adoram e contribuem para isso. Nada foge de nosso domínio, hábitos, comportamentos, ideias, práticas ... Tudo o que o ser humano jamais pensou ser possível, fomos capazes de criar nessa última geração, mas um detalhe é fundamental, de forma Democrática. Há algumas maldosas que ao saber dos meus lances amorosos desqualificam meus interlocutores. Mas não tem problema, eu me orgulho, por ser a legítima, única e poderosa DEMOCRACIA D@S IDIOTAS!

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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Criar: ler, interpretar e transcender



Você não está me entendendo! Quando digo tal coisa quero na verdade exprimir a sensação X sobre um fato Y. Isso é tão claro! Mas se quiser eu desenho. Bem, não sou tão boa em desenho, terei que pensar em outra alternativa. Que tal uma apresentação performática? Um vídeo, ou talvez uma canção que possa tocar-lhe a consciência de modo a tornar-me compreensível? Bem que você poderia ter um pouco de capacidade imaginativa, habilidade hermenêutica e aprender a distinguir entre a leitura literal e a interpretativa. 

Não tente me enquadrar em suas categorias simplificadoras, em sua lógica formal ou em suas estruturas analíticas pré-formatadas. Nem sou sólida, para permitir que possa me erigir, nem líquida, para que possa submergir. Se pudesse definir meu estado atual, diria que sou gasosa. Em alguns momentos me apresento de forma a tomar conta do espaço por meio de uma aparência concreta, como um gás venenoso, de cheiro indesejável e de tom fúnebre, capaz de afastar qualquer ente que se move. Em outros, uma sutil substância, doce e envolvente, imperceptível a olho nu, que despe e encanta as criaturas que tentam esconder-se por trás de suas vestes brancas. Para logo após, desmaterializá-las e levá-las ao sublime estado da criatividade incontrolável e ao desejo insaciável de colocar para fora tudo o que pensam constituir suas máscaras identitárias. 
E se não me faço entender, é por que não é meu papel executar tal tarefa,  mas você, caro recipiente, que deve se mover e criar estratégias para fazer-me caber dentro de ti, de sua pequenez desprezível, de sua grandeza genial, de seu analfabetismo na arte de decifrar enigmas ou de sua habilidade em traduzir os códigos que se escondem nos manuais da existência zumbi. 

A mim, cabe apenas devorar-lhe e incomodar-lhe, a ponto de gerar em você, o desejo de possuir um pouco do estado no qual você é capaz de me consumir. Na quantidade recomendada pela medicina tradicional, para que eu não seja nem tóxica ao seu organismo, nem mera medida homeopática que não lhe possa trazer um pouco da contaminação que cura. 

Longe de ser mera comunicóloga, sou expressionista, sujeita que apenas quer derramar um pouco do que transborda em seu ser mítico. Coube-me desde o início de meu treinamento, manejar o indizível, conhecer as poções que dão forma as emoções, regozijar com os cânticos do silêncio, me entreter com o vazio das palavras soltas nos corredores dessa curta jornada. Num processo perigoso e atrevido, levar as ideias ao máximo da radicalidade (im)possível, manejar as paixões com as regras da gestão burocrática e subverter a fé, de modo a exercitar a incredulidade intensamente e levá-la ao seu mais alto nível, escondida sobre o hábito sagrado da ordem na qual decidi entregar toda a minha líbido, para a glória e misérias, daquel@s que regozijam com o expediente deletério que alimenta suas pulsões de morte. 

E é claro que as coisas moventes e falantes não vão entender o papel criador que lhes cabe. Pois, ansiosas e descontroladas, apenas querem guardar para si, o que não podem digerir, e que em pouco tempo se torna coisa putrefada. Apenas quando se derem conta, se é que o podem fazer, do triste diagnóstico, no qual só a ação pode curar o câncer que as corrói, poderão ler o que lhes é apresentado, interpretar o que jamais será dito e transcender a miséria que tem dominado as "mentes pensantes" necrosadas que habitam o "mundo das ideias". 


Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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Vida: corpos em performances



Há uma luz, no fim da tela. De onde surgem imagens em camadas em meio a uma escuridão gradual. Nem bem definida, nem claramente exposta, apenas camadas de um eu, que não pode ser focalizado até este instante. A platéia aguarda para saber de onde ou para onde vai aquele pedaço de matéria que se move em meio aos quadros de luz. Lentamente os fragmentos dão forma aos corpos. Corpos. Tão concretos e modelados. Ocupam o espaço da sala e da tela. Misturam-se e se desintegram diante dos olhos d@s expectador@s.


A dança circular impede qualquer tipo de fixação, no exato momento em que o que se mais deseja é decifrar o (i)material. Olhos. Olhos que acreditam ver as imagens e pelos quais se busca separar o real da pura fantasia. Tentativa insana de tomar para si e recriar o que está fora. Como num sonho, o sonho da vida, no qual passamos intrigad@s quanto à gênese e perturbad@s quanto ao fim. Como num flash de luz, tudo passa tão rapidamente. Com o tempo os acontecimentos acabam por parecer meros esquetes acumulados, ensaiados e dirigidos para darem algum sentido aos dramas, tragédias, comédias e outros gêneros nos quais tentamos classificar os diversos momentos deste espetáculo miserável.


Entre uma cena e outra, as vezes conseguimos olhar para o palco, de fora, com a exclusividade de quem sabe o que acontece dentro. Quem faz parte da concepção, execução e crítica da obra. Quem, diante do espelho se aterroriza por ver mais do que pensa mostrar ao seu público e perceber a distância que há entre o que pulsa na interioridade e o que se mostra na vitrine. E não há nada a fazer  além de caminhar, ir de encontro, enfrentar o terrível e ininteligível fenômeno. O espanto diante de si, dos espelhos que jogam em cima de você, mais de você, até você não suportar mais e fugir.


Algum@s criam mitos. Outr@s, conceitos, provas, dogmas e todas as outras bobagens certificadoras da inteligibilidade impossível. Tentam fugir, da inescapável condição de transitoriedade, limitação, corporeidade. Lá está @ jovem aprendiz, a implorar à sua musa, que lhe instrua em sua ciência. Ela, se derrama nas luzes, parece cair, parece voar, temo que não iremos decifrar. Ele se multiplica no chão, parece tão real, sem nem mesmo estar presente, assim como a vida, que muita gente crê e sente.


Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.




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Na UTI psiquiátrica: Imposturas intelectuais



São 15º na terra do operário presidente e chove calmamente lá fora. Aqui dentro, aquecida por meias, blusas e uma touca exótica, estou eu, mais em uma madrugada, inquieta e voraz, pesquisando um pouco de tudo, perdida na imensidão de links, entre os rankings de periódicos acadêmicos e as últimas discussões sobre as teorias queer. O pão está quente. A abertura do forno permite que eu aproveite o calor produzido a partir da conversão de energia. Ouço um velho filósofo brasileiro defunto, que ousou propor seu sistema filosófico e como pena foi lançado ao ostracismo. Termino mais uma mapa conceitual sobre teorias de desenvolvimento e aprendizagem. Faço downloads e uploads, tenho quedas em minha conexão, instabilidades, silêncios. 

Tomo mais uma xícara de chá, dou uma espiada no Facebook. E é de lá, que começo a pensar sobre o que pode ser chamado de "impostura intelectual". Tal termo não é criação pessoal, mas título de obras e discussões de pessoas que criticam certos comportamentos deploráveis que têm rondado o meio acadêmico contemporâneo. Não gostaria de me restringir ao que tem sido produzido na academia, mas olhar para como tem atuado seus agentes nos mais diversos âmbitos da vida. Como considero tais seres pacientes graves da UTI psiquiátrica, só me cabe fazer um breve diagnóstico. Para aquel@as que querem proteger seus intelectos, almas e corpos de toda sorte de malícia e desvirtuamento promovido por estas criaturas, faço esta breve exposição.

São pacientes bondos@s, sorridentes, demonstram um certo grau de erudição, parecem possuir genuíno interesse em ajudar as pessoas próximas, quase sempre são religios@s íntegr@s (antes na religião, hoje na ciência), estão envolvidas com as causas sociais, se preocupam com a "defesa" da educação, são defensor@s dos animais, estiveram na campanha "adote uma árvore", usam belas sacolas de pano com aquela palavra bonita enorme "sustentável", defendem um Estado forte, são guardi@s da brasilidade, dos brasileirismos, do Brasil!, são democr@ticas e defendem a diversidade, desde que seja entre @s companheir@s; lutam contra a pedofilia, mas não se importam muito com o fetiche da "colegial" e por fim: acreditam que estamos no caminho certo!

Imbuíd@s da sapiência de segunda linha, do espírito revolucionário d@s marxistas de botequim, das certezas (pseudo) científicas do século XVIII, do misticismo materialista, da luta sem luto, da ilusão de nobreza baseada em títulos acadêmicos, de um egoísmo messiânico e arrogante, de um discurso anti-acadêmico e de uma razão instrumental que deve servir as "causas", el@s aparecem como um pequeno tumor no já decadente ambiente intelectual e cultural brasileiro. Defendem e praticam a vulgaridade intelectual, regurgitam dogmas sem mesmo conhecer as bases  do que consideram ser o mais "novo" e "inovador" insight d@ últim@ intelectual de origem francesa; numa ato de arrogância, ingenuidade e ignorância aburda, consideram-se detentor@s de um "conhecimento libertador". 

Em seu vocabulário típico algumas palavras e expressões serão repetidas diversas vezes e com muito vigor: "capitalismo", "opressão", "dominação", "lutas", "direita", "realidade", "salvar" ... a lista é imensa, mas torna-se mero conjunto de generalidades que buscam apenas exprimir algum "envolvimento" com problemas sociais de gente que não compreende as bases dos excrementos que jogam sobre as pessoas. 

São astut@s, enganam facilmente @ observador@ menos atent@. Como lob@s em pele de cordeir@, agem como vítimas que estão sendo atacad@s por algum comando militar conservador. Em qualquer debate ou discussão, ops, está aí mais um sintoma do quadro clínico: são incapazes de dialogar ou debater e se você tentar fazer isso, será considerad@ "alienada", "entregue ao sistema" e "individualista egoísta". El@s são ágeis com termos, não precisam pensar sobre eles, apenas sacam de seu cabedal dogmático a placa que mais combina com a vitrine que está vendo. Logo, a via do debate não é eficaz para tratar este tipo de paciente. 

  Este lado para cima

Querem a autoridade acadêmica, mas sem fazer uso de seu rigor. Querem o respeito da comunidade filosófica e científica, com base na pretensa defesa de "causas sociais" obscuras que criam em suas mentes degradadas e exigem que sejam referendadas pela Ciência e pela Filosofia. Ou seja, querem a autoridade e o título, mas nada de rigor ou trabalho pesado que lhes tornem apt@as para isso.  @s velh@s escolásticas quase enfartam quando encontram com esta trupe. @s cientistas ficam boquiabertas diante de um avanço tecnológico tão grande e da imbecilidade intelectual crescente. @ jovem estudante ri, considera apenas mais uma tribo que está participando da vida acadêmica e cultural do país. 

Ouço o balanço da cadeira, no fundo da sala está @ velh@ filósof@, diretora da clínica de metafísica aplicada. Ela olha tristemente para a minha pessoa e diz: filha, est@ paciente é um caso grave, não temos condições técnicas para tratá-l@. Com a nossa dependência governamental, faltam diversos recursos. Temos apenas 2 litros de metafísica, 5 kg de epistemologia, a caixa de ética está pela metade, temos 15 ampolas de lógica, mas muit@s pacientes são alérgicas ao produto, chegaram 2 sacos de descontrução, mas é material experimental, não posso usar com pacientes graves. A ressonância magnética diagnosticou que este tipo de paciente tem um vazio enorme dentro da caixa cerebral e esta é constituída de diamante (resplandece uma luz sem fim em contraste com a escuridão que abriga), ou seja, nada dentro, nada entra e nada sai. 

Triste e me considerando fracassada, perto do horário de sair da clínica e ir para o hospital, cansada por mais um plantão na clínica de metafísica aplicada, minha velh@ filósofa me reconforta: minha jovem, aceite os limites da razão. Nem todas as pessoas podem viver a plenitude de uma vida racional e emocional equilibrada e prosseguir rumo ao desenvolvimento pleno de suas capacidades humanas. A Filosofia trabalha com argumentos racionais, as Artes com expressões genuínas do ser, a Ciência com os métodos experimentais, mas nem todas as formas de vida humana conseguem suportar esse grande mundo de descoberta, reflexão, expressão e experimentação. Para estas, é inútil tentar usar nossos medicamentos, eles não fazem efeito. São pacientes crônicos, alguns em estado terminal, só nos resta o consolo para que suas almas perturbadas descassem em paz e bem longe de nós, para que consigamos seguir em nossa fé triunfante, um@s salvando corpos e outr@s salvando mentes, em busca de um mundo menos ignorante e degradado.

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.


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