Um suicida anunciado.
Bem vindo!
Apresentação ilegível pela sujeira no
tapete do quarto número 221, um quarto localizado no fim do corredor à
esquerda. Lá dentro um jovem há dias se encontra inerte, deitado em sua cama de
colchão amarelado e úmido, dera o azar de só ter vaga disponível no quarto mais
úmido do prédio. Cansado de pensar, cansado de sugar uma vida rala, e ele nem
podia mais se mexer. Seu quarto não se parecia mais com o local que lhe
abrigara no começo do ano quando ele tinha anseio pela vida nova, uma
perspectiva do desconhecido mundo novo, quando ele se preocupava em tentar
conter a umidade insistente das paredes. Havia um filete de luz que entrava
pela janela não o suficiente para lhe tirar do frio que sentia durante o dia
todo naquele lugar. Não havia perspectiva de ser o anfitrião de seu humilde,
porém limpo aposento, no começo de 2010 tudo era perspectivas, quem sabe
fizesse amigos? Quem sabe um relacionamento? Agora há papéis jogados pelo chão
entupindo a lixeira na busca de perfeição, comida mofada pelos cantos, roupas
imundas largadas do avesso, janela com lodo como o único verde natural
existente naquele ambiente, que propiciavam a presença de cogumelos, como uma
cortina marrom assim se parecia toda a janela com seus vidros engordurados meio
abertos que davam para perceber o tempo se extinguindo na mudança de coloração
do céu e o tempo que ele ficou por ali jogado na cama definhando entre delírios
e resquícios de sonhos. A única aproximação que recebera nos últimos meses era
dos garotos que subiam o prédio e jogavam panfletos de promoção por debaixo de
sua porta.
Ele sentia tremura pelo corpo, e tinha
uma sensação de masoquismo no prazer de sentir as unhas deformadas e roídas de
ansiedade raspando pelo forro fino do edredom, a dor que causava na ponta dos
dedos não lhe incomodava. Depressivo ele pensa em morrer, se assim tivesse
alguma coragem para acelerar o processo. Mas algo lhe fazia sentir que não
tardava este fim, que no fundo tudo não passaria de um breve recomeço.
A sensação não era das mais agradáveis,
os cantos do quarto pareciam se mover em sua direção, ou seriam as baratas
saídas do ralo quebrado do banheiro atraídas pelo nojento 221? A parceria
eterna de uma vida, o ser nojento a espreita de minha carne catinguenta, da
putrefação orgânica, certamente seriam elas sim, as sobreviventes de uma
metrópole exprimida, fortalecidas pela depressão alheia.
Seu quarto ficava no segundo andar de um
prédio velho que cada vez mais caia o reboco da fachada, um abrigo para os
estudantes pobres que se arriscam na capital, o prédio não tinha elevador, só
escadas de ladrilhos quebrados. As portas dos apartamentos estavam quase todas
empenadas de umidade e pela sutil/peculiar educação da maioria dos moradores
que ao entrar e sair batiam – na com estupidez fazendo ecoar a pancada por todos os outros
apartamentos.
As luzes fracas piscavam e iluminavam
parcialmente os corredores gigantescos, o 221 se escondia seja por qual luz
fosse, e por vezes podia-se ouvir estalos da fiação sobrecarregada de energia e
teia de aranha.
O cheiro ruim não lhe incomodava, por
vezes lhe trazia certo prazer à sua respiração lenta e ofegante. Lá fora o
entroncamento citadino acontecia normalmente como num fim de semana rotineira.
A entusiasta cidade se aquecia com o calor humano do aglomerado promocional de
natal, era tanto lixo pelas ruas, tanta gritaria, uma guerrilha em prol de uma
construção capitalista, um amor enorme pelos bens materiais, e um completo
desapego pelos sentimentos mais nobres inflando – se com o som cada vez mais
alto dos microfones.
Um fraco 221 de vários desenhos mórbidos
feitos a grafite, uma coleção de grilos dessecados, uma gaita antiga, um
dicionário em inglês com orelhas e alguns poucos pregos enferrujados e fincados
nas paredes de tonalidade verde musgo sem fotos de amigos ou família para
recordar. Um quarto que não comportava seus sonhos de um adolescente gay
deslocado. A nostalgia do pretérito nunca lhe fez tanta falta. O respeito a sua
forma de ser algum dia existiu? Estava cansado de chacotas, estava cansado de
tentar agradar. Não sabia competir, nem o que significava isso, tudo era uma
merda!
Um estrondo ecoa pelos corredores vazios
daquele prédio em ruínas.
O mês de março começa com todos
novamente chegando à cidade para a volta às aulas, a rotina continuava. E onde
foi parar o garoto desengonçado de roupas tipicamente engraçadas e rústicas?
Ninguém perguntou, ninguém percebeu, era menos um empecilho aos olhos dos
descolados, dos intolerantes, dos preconceituosos, dos normais. O prédio estava
agora mais assombrado, mas este não seria o único caso de inquilino a dar cabo
a própria vida, outros mais seriam taxados de “sem amor a Deus”, “louco”,
“estranho”, “deslocado”, “desconectado”.
Quem será que vai ser o próximo morador do quarto de parede verde musgo? Com
certeza pagando um bom aluguel não importa quem, de que jeito, de onde. Na
cidade vertical o que importa é que sempre haja uma vaga a ser ocupada. O
paradoxo da modernidade estaria se instalando deste modo: um estudante, um
quarto, cinco números de matrícula, e uma maneira peculiar de ser. Um tudo e um
nada, uma maturidade forçada e um vazio de solidão garantido no contrato de
locação, a liquidez de vida derramada no ralo dos tempos modernos.
Jairo Barduni Filho nasceu em
Visconde do Rio Branco, em 26 de setembro de 1981. Filho de Maria Luiza
Siqueira Barduni e Jairo Barduni. Formado em Pedagogia pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV). Mestre Mestrado em Extensão Rural do Departamento de
Economia Rural na UFV. Atualmente é professor do Departamento de Educação da
UFV. Também é formado em técnico de artes cênicas pelo projeto solidário de
teatro da UFV. E-mail: rfbarduni@yahoo.com.br
A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
2 comentários:
Parabés pelo texto, muito bom.
6 de novembro de 2012 às 09:14Parabés pelo texto, muito bom.
6 de novembro de 2012 às 09:15Postar um comentário
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