terça-feira, 18 de junho de 2013

Literatura e Cinema com Edgar Allan Poe



Devoro-te, independente de decifrar-me. Devoro-te pela insanidade, pela loucura e pela coerência de ser insano e louco. Se fosse uma esfinge do século XIX, seria essa a fala sobre as obras do jovem escritor e eterno literário Edgar Allan Poe. Com um tom envolvente em suas narrativas e uma perspicácia no modo de propor a temática que circunda suas histórias, Edgar Poe conseguiu plasmar elementos em suas mais de 20 obras, entre poemas, romances e contos.
Todavia, ainda é válido lembrar, que além de exímio escritor de literatura, reconhecido dentro de um cânone, foi também crítico e teórico da literatura, sendo um dos mais importantes da primeira metade do século XIX. Ressaltamos, nesse sentido, as postulações acerca do gênero conto, onde trabalha com o pressuposto do efeito que a narrativa provoca no leitor.
Edgar Allan Poe, nascido no início do século XIX nos Estados Unidos, foi um escritor conhecido, principalmente, por histórias que tangem e interagem o obscuro e misterioso da vida. É considerado um dos percursores do gênero ficção científica, ao lado de Conan Doyle e Agatha Christie. Lembrando que, falamos da nomenclatura de maneira ampla, pois poderíamos abordar outros nomes como literatura investigativa, literatura criminar, instigante, etc.
Contudo, se existe uma linha teórica que aborda e acredita nas influências do contexto nas obras dos escritores – e ela existe –, podemos dizer que Poe bebeu dessa água. Talvez tenha bebido tanto, que aprendeu novas formas de transformar o que percebia. Ocorre, pois, que Edgar Poe é filho de escoceses, país de nascimento de Conan Doyle. Este, por sua vez, conhecido mundialmente pelas histórias do detetive Sherlock Holmes e seu escudeiro Watson.
Sherlock Holmes é um dos ícones da literatura investigativa, sendo fonte de inspiração de muitos outros escritores, seja pelo modo de abordagem ou as tramas envolventes. Nesse tipo de narrativa proposta por Doyle, são lançadas ideias e proposições que se articulam entre si, fazendo um jogo entre a linha narrativa e o leitor, que se transforma em um detetive. E, ao se transformar nesse tipo de leitor, que observa as lacunas e pistas deixadas pelo narrador, ele tece um novo texto.
Quando abordamos a ficção de Edgar Poe, podemos perceber esse tom narrativo de investigação, como, por exemplo, no conto “O homem das multidões” ou “Os Assassinatos da Rua Morgue” ou em “O Mistério de Marie Rogêt”. Nos dois últimos, esse elemento é mais visível, sendo utilizados, inclusive, na composição do enredo do filme “O corvo” (2012) roteirizado por Ben Livingston e Hannah Shakespeare e dirigido por James McTeigue.
McTeigue é conhecido e reconhecido pelo filme “V de Vingança” (V for Vendetta), que se consagrou no ano de 2006. Contudo, o diretor participou de outros filmes como a trilogia Matrix, atuando como diretor assistente. Atualmente, está envolvido com o próximo filme da série Star Wars, outro clássico mundial. Para integrar a equipe fílmica, John Cusack personifica o escritor Edgar A. Poe.

O filme se articula entre os pressupostos de elementos biográficos, sejam verdadeiros ou suposições, relacionando com a própria ficção de Edgar A. Poe. Desse modo, aproxima-se da ideia anteriormente citada, dando a esse leitor fílmico a possibilidade de entrar na trama, passando a ser um detetive. O que diferencia, também, “O corvo” (filme) das historias de Sherlock Holmes é o tom poético e denso, percebida não apenas no roteiro, mas nos cenários e na composição das personagens. Traz o filme, por assim ser, uma fotografia típica da proposta do escritor em suas histórias, voltada ao gótico e sombrio. Desse modo, o filme sai do teor comédia ou tragicomédia, para enquadrar-se na proposta original de thriller, mostrando, inclusive, a decadência da protagonista, abordando também um viés psicológico.
A história do filme circunda em torno da busca de um assassino em série, que utiliza das obras do escritor Edgar Allan Poe para cometer os crimes. Isto é, os assassinatos que ocorrem nos livros de Poe são transpostos pelo criminoso, que cria um universo macabro para as mortes (réplica adaptada dos moldes propostos por Poe) e realiza o famoso “jogo de gato e rato” com o escritor.
O corvo, que dá origem ao título do filme é mitologicamente um animal de inúmeras representações, ativa desde o lado sombrio e profano até os limiares proféticos e alegorias da natureza. Contudo, ainda mais emblemática, é a relação trazida entre esse título, que além de dar nome ao filme, trata-se de um dos poemas mais conhecidos do escritor, que teve duas traduções para o português, escritas por Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Trago à luz, um excerto do poema de Poe, de tradução pessoana.
[...]
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
[...]
Nessa relação entre o poema e a obra fílmica, ponderamos as apropriações de leitura, seja na construção da própria película ou nas efetuadas posteriormente a ela. Essas leituras entram em congruência com as possibilidades de outras e novas leituras, em um processo particular e, consequentemente, dialógico. E nessa relação entre suas obras e uma nova ficção, o filme vai se compondo.
A narrativa fílmica instiga e apropria-se do leitor indicando dados biográficos de Edgar Poe, acerca de sua morte logo ao iniciar. Afirma, pois, que o escritor foi encontrado em um banco de praça, sendo seus últimos dias de vida ainda um mistério. A imagem que surge, logo após as informações citadas, é, justamente, Poe sentado em um banco de praça e um corvo próximo a ele.
Segue-se, então, com a primeira morte e referência a um conto do escritor. Chamo a atenção nessa sequência de cena, pois, posterior ao encontro dos corpos pela polícia, surge Edgar Poe em uma rua escura e de nevoeiro, observando a carniça de um animal. Nessa contemplação, em diálogo com a cena que antecedeu, é dito por ele: “Os caminhos de Deus na natureza, assim como na providência, não são os nossos”. Essa frase, do filósofo inglês Joseph Glanvill, abre o conto “Descida ao Maelström”. Maelström, por sua vez, possui representação mítica acerca do caos da vida, sendo referenciado por um redemoinho em alto mar. Percebemos, portanto, essa linha poética que vai delinear o filme “O corvo”, ao mesmo tempo em que vai se destrinchar a vida em decadência de Poe e seu elevado ego, na busca pelo reconhecimento do poeta que é.
Sentindo-se grande e buscando reconhecimento, cita a frase “E o corvo disse...”, dentro de um bar. Esse ato é realizado não apenas para demonstrar sua altivez, como o desejo de ser reconhecido, exaltando seu ego (e na busca de uma bebida, um de seus vícios). Consegue que alguém termine a frase, bem como ser expulso do bar.
Voltando aos crimes, na investigação da primeira morte, a semelhança entre a morte e o conto “O assassinato da Rua Morgue”, de Poe, chama a atenção do inspetor. Se existe dúvida se é a vida que imita a arte ou a arte imita a vida, percebemos que essa relação é mútua e constante. E Edgar Poe, personagem, nos propõe isso: “Me sinto indo de autor à personagem de um de meus contos”.
O tom poético pode ainda ser evidenciado na construção da linguagem, com uso de termos como “puta literária” ou “nulidade intelectual”, quando fala sobre seu crítico. Ainda, é percebida tal articulação nas alusões ao poema “O corvo”, além de citações de outros, como “Annabel Lee”.
As referencias aos contos “O coração revelador” e “O poço e o pêndulo”, nos primeiros quinze minutos do filme, já se trata de uma pista no desenrolar da história principalmente ao leitor mais atento de Edgar Poe. Mas essas referências acontecem em toda narrativa, não apenas com as obras do escritor, como é evidenciado, em certo momento, a tragédia Macbeth, de William Shakespeare.
Esses intertextos produzidos potencializam o filme, pois torna a obra mais calcificada nas revelações do enredo principal, na ficção do escritor estadunidense, bem como na vida de Poe. Será nas conversas entre Edgar e as demais personagens que a personalidade do escritor vai se formando.
No contraponto, percebemos as poucas cenas de ação do filme, diferenciando “O corvo” dos demais filmes de investigação criminal. Essa ausência é justificada, como identificamos, pelo excesso de ritmo poético impostos no filme. Desse modo, o foco recai na busca de saber como decorrerá o próximo assassinato, isto é, na interação da realidade do assassino e na ficção de Edgar Poe. Logo, por incrível que pareça, vamos ter um assassino em segundo plano, pois, a princípio, não importa quem ele seja ou a razão das mortes, mas como ele vê a obra de Poe. Por essa razão, o inspetor e Edgar buscam nas demais narrativas o modo como esse assassino irá agir, observando seus métodos e os desvarios.

“O corvo” apela para o outro lado das histórias de investigação, com menos ação e mais densidade nos fatos e nas relações poéticas, que vão se relacionando com as atribuições da vida e obra de Edgar Allan Poe e ao contexto da época. A linha do enredo, muito se aproxima, por exemplo, do clima ameno que é transposto em “Meia noite em Paris”, do diretor e roteirista Woody Allen, apesar de em “O corvo” o cenário se manter mais sombrio e menos agradável. E será nessa produção de sentidos e intersecções plausíveis que o filme vai se compondo. E se, quase vivo/quase morto, Edgar Poe busca seu reconhecimento, é morto que o corvo se faz presente, não sendo esquecido, nunca mais.



Renato Dering é escritor, Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), sendo graduado também em Letras/Português pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (FL/UFG). É professor de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal de Goiás - Câmpus Jataí (UFG/CAJ). Desenvolve pesquisas na área de contística, cinema, literatura contemporânea e literatura e cultura de massa.

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.