Literatura e Cinema com Edgar Allan Poe
Devoro-te,
independente de decifrar-me. Devoro-te pela insanidade, pela loucura e pela
coerência de ser insano e louco. Se fosse uma esfinge do século XIX, seria essa
a fala sobre as obras do jovem escritor e eterno literário Edgar Allan Poe. Com
um tom envolvente em suas narrativas e uma perspicácia no modo de propor a
temática que circunda suas histórias, Edgar Poe conseguiu plasmar elementos em
suas mais de 20 obras, entre poemas, romances e contos.
Todavia,
ainda é válido lembrar, que além de exímio escritor de literatura, reconhecido
dentro de um cânone, foi também crítico e teórico da literatura, sendo um dos
mais importantes da primeira metade do século XIX. Ressaltamos, nesse sentido,
as postulações acerca do gênero conto, onde trabalha com o pressuposto do
efeito que a narrativa provoca no leitor.
Edgar
Allan Poe, nascido no início do século XIX nos Estados Unidos, foi um escritor
conhecido, principalmente, por histórias que tangem e interagem o obscuro e
misterioso da vida. É considerado um dos percursores do gênero ficção
científica, ao lado de Conan Doyle e Agatha Christie. Lembrando que, falamos da
nomenclatura de maneira ampla, pois poderíamos abordar outros nomes como literatura
investigativa, literatura criminar, instigante, etc.
Contudo,
se existe uma linha teórica que aborda e acredita nas influências do contexto
nas obras dos escritores – e ela existe –, podemos dizer que Poe bebeu dessa
água. Talvez tenha bebido tanto, que aprendeu novas formas de transformar o que
percebia. Ocorre, pois, que Edgar Poe é filho de escoceses, país de nascimento
de Conan Doyle. Este, por sua vez, conhecido mundialmente pelas histórias do
detetive Sherlock Holmes e seu escudeiro Watson.
Sherlock
Holmes é um dos ícones da literatura investigativa, sendo fonte de inspiração
de muitos outros escritores, seja pelo modo de abordagem ou as tramas
envolventes. Nesse tipo de narrativa proposta por Doyle, são lançadas ideias e
proposições que se articulam entre si, fazendo um jogo entre a linha narrativa
e o leitor, que se transforma em um detetive. E, ao se transformar nesse tipo
de leitor, que observa as lacunas e pistas deixadas pelo narrador, ele tece um
novo texto.
Quando
abordamos a ficção de Edgar Poe, podemos perceber esse tom narrativo de
investigação, como, por exemplo, no conto “O homem das multidões” ou “Os
Assassinatos da Rua Morgue” ou em “O Mistério de Marie Rogêt”. Nos dois
últimos, esse elemento é mais visível, sendo utilizados, inclusive, na
composição do enredo do filme “O corvo” (2012) roteirizado por Ben Livingston e
Hannah Shakespeare e dirigido por James McTeigue.
McTeigue
é conhecido e reconhecido pelo filme “V de Vingança” (V for Vendetta), que se
consagrou no ano de 2006. Contudo, o diretor participou de outros filmes como a
trilogia Matrix, atuando como diretor assistente. Atualmente, está envolvido
com o próximo filme da série Star Wars, outro clássico mundial. Para integrar a
equipe fílmica, John Cusack personifica o escritor Edgar A. Poe.
O
filme se articula entre os pressupostos de elementos biográficos, sejam
verdadeiros ou suposições, relacionando com a própria ficção de Edgar A. Poe.
Desse modo, aproxima-se da ideia anteriormente citada, dando a esse leitor
fílmico a possibilidade de entrar na trama, passando a ser um detetive. O que
diferencia, também, “O corvo” (filme) das historias de Sherlock Holmes é o tom
poético e denso, percebida não apenas no roteiro, mas nos cenários e na composição
das personagens. Traz o filme, por assim ser, uma fotografia típica da proposta
do escritor em suas histórias, voltada ao gótico e sombrio. Desse modo, o filme
sai do teor comédia ou tragicomédia, para enquadrar-se na proposta original de thriller,
mostrando, inclusive, a decadência da protagonista, abordando também um viés
psicológico.
A
história do filme circunda em torno da busca de um assassino em série, que
utiliza das obras do escritor Edgar Allan Poe para cometer os crimes. Isto é, os
assassinatos que ocorrem nos livros de Poe são transpostos pelo criminoso, que
cria um universo macabro para as mortes (réplica adaptada dos moldes propostos
por Poe) e realiza o famoso “jogo de gato e rato” com o escritor.
O
corvo, que dá origem ao título do filme é mitologicamente um animal de inúmeras
representações, ativa desde o lado sombrio e profano até os limiares proféticos
e alegorias da natureza. Contudo, ainda mais emblemática, é a relação trazida
entre esse título, que além de dar nome ao filme, trata-se de um dos poemas
mais conhecidos do escritor, que teve duas traduções para o português, escritas
por Machado de Assis e Fernando Pessoa.
Trago
à luz, um excerto do poema de Poe, de tradução pessoana.
[...]
Abri então a vidraça, e eis que, com
muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada
mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir
minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo,
"Nunca mais".
[...]
Nessa
relação entre o poema e a obra fílmica, ponderamos as apropriações de leitura,
seja na construção da própria película ou nas efetuadas posteriormente a ela.
Essas leituras entram em congruência com as possibilidades de outras e novas
leituras, em um processo particular e, consequentemente, dialógico. E nessa
relação entre suas obras e uma nova ficção, o filme vai se compondo.
A
narrativa fílmica instiga e apropria-se do leitor indicando dados biográficos de
Edgar Poe, acerca de sua morte logo ao iniciar. Afirma, pois, que o escritor
foi encontrado em um banco de praça, sendo seus últimos dias de vida ainda um
mistério. A imagem que surge, logo após as informações citadas, é, justamente,
Poe sentado em um banco de praça e um corvo próximo a ele.
Segue-se,
então, com a primeira morte e referência a um conto do escritor. Chamo a
atenção nessa sequência de cena, pois, posterior ao encontro dos corpos pela
polícia, surge Edgar Poe em uma rua escura e de nevoeiro, observando a carniça
de um animal. Nessa contemplação, em diálogo com a cena que antecedeu, é dito por
ele: “Os caminhos de Deus na natureza, assim como na providência, não são os
nossos”. Essa frase, do filósofo inglês Joseph Glanvill, abre o conto “Descida
ao Maelström”. Maelström, por sua vez, possui representação mítica acerca do
caos da vida, sendo referenciado por um redemoinho em alto mar. Percebemos,
portanto, essa linha poética que vai delinear o filme “O corvo”, ao mesmo tempo
em que vai se destrinchar a vida em decadência de Poe e seu elevado ego, na
busca pelo reconhecimento do poeta que é.
Sentindo-se
grande e buscando reconhecimento, cita a frase “E o corvo disse...”, dentro de
um bar. Esse ato é realizado não apenas para demonstrar sua altivez, como o
desejo de ser reconhecido, exaltando seu ego (e na busca de uma bebida, um de
seus vícios). Consegue que alguém termine a frase, bem como ser expulso do bar.
Voltando
aos crimes, na investigação da primeira morte, a semelhança entre a morte e o
conto “O assassinato da Rua Morgue”, de Poe, chama a atenção do inspetor. Se
existe dúvida se é a vida que imita a arte ou a arte imita a vida, percebemos
que essa relação é mútua e constante. E Edgar Poe, personagem, nos propõe isso:
“Me sinto indo de autor à personagem de um de meus contos”.
O
tom poético pode ainda ser evidenciado na construção da linguagem, com uso de
termos como “puta literária” ou “nulidade intelectual”, quando fala sobre seu
crítico. Ainda, é percebida tal articulação nas alusões ao poema “O corvo”, além
de citações de outros, como “Annabel
Lee”.
As
referencias aos contos “O coração revelador” e “O poço e o pêndulo”, nos
primeiros quinze minutos do filme, já se trata de uma pista no desenrolar da
história principalmente ao leitor mais atento de Edgar Poe. Mas essas referências
acontecem em toda narrativa, não apenas com as obras do escritor, como é
evidenciado, em certo momento, a tragédia Macbeth, de William Shakespeare.
Esses
intertextos produzidos potencializam o filme, pois torna a obra mais
calcificada nas revelações do enredo principal, na ficção do escritor
estadunidense, bem como na vida de Poe. Será nas conversas entre Edgar e as
demais personagens que a personalidade do escritor vai se formando.
No
contraponto, percebemos as poucas cenas de ação do filme, diferenciando “O
corvo” dos demais filmes de investigação criminal. Essa ausência é justificada,
como identificamos, pelo excesso de ritmo poético impostos no filme. Desse
modo, o foco recai na busca de saber como decorrerá o próximo assassinato, isto
é, na interação da realidade do assassino e na ficção de Edgar Poe. Logo, por
incrível que pareça, vamos ter um assassino em segundo plano, pois, a
princípio, não importa quem ele seja ou a razão das mortes, mas como ele vê a
obra de Poe. Por essa razão, o inspetor e Edgar buscam nas demais narrativas o modo
como esse assassino irá agir, observando seus métodos e os desvarios.
“O
corvo” apela para o outro lado das histórias de investigação, com menos ação e
mais densidade nos fatos e nas relações poéticas, que vão se relacionando com
as atribuições da vida e obra de Edgar Allan Poe e ao contexto da época. A
linha do enredo, muito se aproxima, por exemplo, do clima ameno que é
transposto em “Meia noite em Paris”, do diretor e roteirista Woody Allen,
apesar de em “O corvo” o cenário se manter mais sombrio e menos agradável. E
será nessa produção de sentidos e intersecções plausíveis que o filme vai se
compondo. E se, quase vivo/quase morto, Edgar Poe busca seu reconhecimento, é
morto que o corvo se faz presente, não sendo esquecido, nunca mais.
Renato Dering é escritor, Mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), sendo graduado também em Letras/Português pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (FL/UFG). É professor de Teoria da Literatura e Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal de Goiás - Câmpus Jataí (UFG/CAJ). Desenvolve pesquisas na área de contística, cinema, literatura contemporânea e literatura e cultura de massa.
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