sexta-feira, 14 de junho de 2013

O Bispo, o Cônego e o Frade: A representação do Clero na Lira dos Vinte Anos


A crítica aos costumes clericais é um assusto bastante recorrente na literatura oitocentista e em algumas de suas obras, Álvares de Azevedo soube com maestria criticar algumas atitudes dos representantes da Igreja. Em Macário, obra que tinha a pretensão de se tornar uma peça teatral, o autor faz com que o próprio Satã compare o protagonista a um servo de Deus: “Devasso como um cônego!” foram suas palavras. No livro de poemas Lira dos Vinte Anos, algumas críticas também são facilmente observadas.


A Lira foi publicada apenas após a morte de Álvares, no entanto, o rapaz havia conseguido organizar alguns poemas de acordo com sua vontade e acabou por fazer com que a obra tivesse duas partes distintas. Posteriormente os críticos separaram um terceiro momento poético na obra. A primeira parte da Lira seria composta por poemas amorosos, repletos de imagens de anjos, virgens cândidas e donzelas adormecidas. A segunda parte, mais realista, trazia um poeta sarcástico cujos poemas cantavam as prostitutas, o dinheiro e o pessimismo. Na verdade, o próprio poeta nos explica o porquê dessa separação: “A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binômia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.” (p. 111) Os versos que satirizam o Clero são pertencentes a essa segunda parte.
No poema intitulado “Um Cadáver de Poeta”, que inaugura essa segunda parte, o eu-lírico canta a morte de um trovador e o desprezo de algumas pessoas que passavam sobre seu corpo sem prestar auxílio. Uma dessas pessoas de passagem era um bispo que se irritou pelo fato de um boêmio vir morrer logo onde sua carruagem passaria.
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornado
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade...
Bochechas e nariz, em cima uns óculos
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispos — como hoje e mais ainda —
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura!
Papudos santarrões, depois da missa,
Lançando ao povo a bênção — por dinheiro! (p. 119)
Nesse pequeno trecho do poema já nos deparamos com as duas críticas mais recorrentes que são feitas ao Clero: a crítica à gula e à ganância. A riqueza da Igreja sempre foi alvo de protesto por parte de vários tipos de intelectuais, e a poesia soube utilizar a ironia para fazer a sua parte. Dessa forma, a cena de padres, bispos e frades corpulentos, se esbaldando sentados em uma mesa de jantar é uma imagem comum. A maneira sarcástica como o poeta retrata o Bispo também merece atenção do leitor, afinal, é um Bispo da idade média, barrigudo, que ronca e que estava “dormindo bem”. Note, por fim, que o último verso dessa estrofe apresenta uma quebra com a qual o poeta denuncia mais um problema do Clero, no caso, o ganância, já que o Bispo lança, por dinheiro, sua benção ao povo.

Em outro poema, chamado “Boêmios, atos de uma comédia não escrita”, aparece a imagem de outro servo da Igreja, desta vez um Cônego, que, depois de jantar acabou morrendo de apoplexia no colo de Madona La Zaffeta. Aqui, além da crítica explícita à gula, temos também uma denúncia sutil ao atentado contra o Celibato, na medida em que o senhor cônego estava com uma mulher. É interessante notar que os dois personagens do poema discutem sobre o fato do cônego morrer de tanto comer, mas não estranham o fato de ele estar com a Madona. Um pouco mais à frente, Puff, um dos personagens do poema, relata que havia presenciado uma festa em uma taverna da qual participaram vários membros do Clero que, além de se fartarem com a ceia, ainda faziam a corte às mulheres:
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência o comer... e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca... e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço! (p. 149)
Como podemos observar, nesse poema a crítica principal gira também em torno da opulência das mesas dos servos da Igreja, sinal de riqueza. Dessa forma, o eu-lírico das duas composições poéticas aqui analisadas focam sua crítica sobre três características pecaminosas do Clero àquela altura: a gula, a ganância e o desrespeito ao celibato. Características estas, que o poeta não poderia deixar de apresentar na segunda parte da Lira.

Referência bibliográfica: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009



Welton Pereira e Silva é estudante de Letras: Português e Literatura na Universidade Federal de Viçosa (MG). Cursou Licenciatura em Português na Universidade de Coimbra, em Portugal, durante quatro períodos letivos pelo Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI) da Capes. Atualmente, desenvolve projeto de iniciação científica na área de Sociolinguística Interacional. 





 Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.

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