O Bispo, o Cônego e o Frade: A representação do Clero na Lira dos Vinte Anos
A
crítica aos costumes clericais é um assusto bastante recorrente na literatura
oitocentista e em algumas de suas obras, Álvares de Azevedo soube com maestria
criticar algumas atitudes dos representantes da Igreja. Em Macário, obra que tinha a pretensão de se tornar uma peça teatral,
o autor faz com que o próprio Satã compare o protagonista a um servo de Deus:
“Devasso como um cônego!” foram suas palavras. No livro de poemas Lira dos Vinte Anos, algumas críticas
também são facilmente observadas.
A Lira foi publicada apenas após a morte de Álvares, no entanto, o rapaz havia conseguido organizar alguns poemas de acordo com sua vontade e acabou por fazer com que a obra tivesse duas partes distintas. Posteriormente os críticos separaram um terceiro momento poético na obra. A primeira parte da Lira seria composta por poemas amorosos, repletos de imagens de anjos, virgens cândidas e donzelas adormecidas. A segunda parte, mais realista, trazia um poeta sarcástico cujos poemas cantavam as prostitutas, o dinheiro e o pessimismo. Na verdade, o próprio poeta nos explica o porquê dessa separação: “A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binômia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.” (p. 111) Os versos que satirizam o Clero são pertencentes a essa segunda parte.
No
poema intitulado “Um Cadáver de Poeta”, que inaugura essa segunda parte, o
eu-lírico canta a morte de um trovador e o desprezo de algumas pessoas que
passavam sobre seu corpo sem prestar auxílio. Uma dessas pessoas de passagem
era um bispo que se irritou pelo fato de um boêmio vir morrer logo onde sua
carruagem passaria.
Ia caindo o sol. Bem reclinado
No vagaroso coche madornado
Depois de bem jantar fazendo a sesta,
Roncava um nédio, um barrigudo frade...
Bochechas e nariz, em cima uns óculos
Vermelho solidéu... enfim um bispo,
E um bispo, senhor Deus! da idade média,
Em que os bispos — como hoje e mais ainda —
Sob o peso da cruz bem rubicundos,
Dormindo bem, e a regalar bebendo,
Sabiam engordar na sinecura!
Papudos santarrões, depois da missa,
Lançando ao povo a bênção — por dinheiro! (p. 119)
Nesse pequeno trecho do poema já nos deparamos com as duas
críticas mais recorrentes que são feitas ao Clero: a crítica à gula e à ganância.
A riqueza da Igreja sempre foi alvo de protesto por parte de vários tipos de
intelectuais, e a poesia soube utilizar a ironia para fazer a sua parte. Dessa
forma, a cena de padres, bispos e frades corpulentos, se esbaldando sentados em
uma mesa de jantar é uma imagem comum. A maneira sarcástica como o poeta
retrata o Bispo também merece atenção do leitor, afinal, é um Bispo da idade
média, barrigudo, que ronca e que estava “dormindo bem”. Note, por fim, que o
último verso dessa estrofe apresenta uma quebra com a qual o poeta denuncia
mais um problema do Clero, no caso, o ganância, já que o Bispo lança, por
dinheiro, sua benção ao povo.
Em outro poema, chamado “Boêmios, atos de uma comédia não escrita”,
aparece a imagem de outro servo da Igreja, desta vez um Cônego, que, depois de
jantar acabou morrendo de apoplexia no colo de Madona La Zaffeta. Aqui, além da
crítica explícita à gula, temos também uma denúncia sutil ao atentado contra o
Celibato, na medida em que o senhor cônego estava com uma mulher. É
interessante notar que os dois personagens do poema discutem sobre o fato do
cônego morrer de tanto comer, mas não estranham o fato de ele estar com a
Madona. Um pouco mais à frente, Puff, um dos personagens do poema, relata que
havia presenciado uma festa em uma taverna da qual participaram vários membros
do Clero que, além de se fartarem com a ceia, ainda faziam a corte às mulheres:
Na toalha, já suja, debruçados
Aqueles religiosos cachaçudos
De boca aberta e de embotados olhos.
Gastrônomos! ali é que se via
Que é ciência o comer... e como um frade
Goza pelo nariz e pelos olhos,
Pelas mãos, pela boca... e faz focinho
E bate a língua ao paladar gostoso
Ao celeste sabor de um bom pedaço! (p. 149)
Como podemos observar, nesse poema a crítica principal gira também
em torno da opulência das mesas dos servos da Igreja, sinal de riqueza. Dessa
forma, o eu-lírico das duas composições poéticas aqui analisadas focam sua
crítica sobre três características pecaminosas do Clero àquela altura: a gula, a
ganância e o desrespeito ao celibato. Características estas, que o poeta não
poderia deixar de apresentar na segunda parte da Lira.
Referência
bibliográfica: AZEVEDO, Álvares de. Lira
dos Vinte Anos. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009
Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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