Desabafo de um jovem trabalhador
Acredito que o principal problema
da contemporaneidade é que deixamos de ser homo
ludens como Huizinga (2000) caracterizou e nos transformamos em uma espécie
de homo tripalium. Em outras
palavras, trabalhamos mais e nos divertimos menos, para manter a dicotomia
produzir-consumir imposta pelo sistema capitalista atroz dominante em estado
anímico. Percebo que a sociedade na qual vivemos sofre de um sério quadro de
esquizofrenia. De um lado, uma pletora de discursos científicos e acadêmicos a cerca
da pós-modernidade descritos por (Bauman,1998; Giddens, 2002), entre outros
sociólogos e filósofos da pós-modernidade. Enfatiza-se a liquidez dos
relacionamentos e a busca frenética por prazeres imediatos. Por outro lado, evidencia-se
um aumento dos níveis de depressão e doenças de origem mental. Ora, questiona-se:
que prazer é este que se vê num mundo que até 2020 estará mais depressivo do
que nunca?
Trabalhar pode ser uma fonte de prazer na medida em
que se caracteriza como uma maneira de sublimar impulsos agressivos e sexuais
não aceitos pela sociedade. Trabalhar dignifica o homem! Todavia, devemos ter
em mente que o mundo do trabalho é contraditório: Ao mesmo tempo em que
dignifica o homem, é capaz de tirar-lhe toda sua dignidade. Ao mesmo tempo em
que leva ao reconhecimento e sucesso, leva ao outro extremo: a patologia, em
suas diversas facetas. São inumeráveis os trabalhadores, dentro e fora do Brasil,
que se declamam infelizes, vítimas de um stress inabalável. Queixam-se de
cansaço, maus-tratos, falta de condições inalienáveis para a execução de suas
funções e acima de tudo sobrecarga e rotina. Tornamos-nos homo tripalium
porque trabalhamos 11 meses para
descansar e brincar apenas 1, e olhe
lá! Esperamos todos aqueles medíocres 30
dias de férias durante os quais nos sentimos livrados da obrigação de
produzir. Sim, produzir é uma obrigação! Quem não produz, quem não contribui
para o desenvolvimento deste sistema hegemônico que nos engloba, é taxado como
vagabundo, como inútil! Nesse sentido, se pode entrar em discussões baseadas
nas teorias de Althusser (1986) -Aparelhos Ideológicos do Estado, Foucault
(1979) -Microfísica do poder e o conceito de normatividade, e Dejours (1992)
-Psicopatologia e Trabalho.
Grandes pensadores de diferentes áreas das ciências
humanas já abordaram as vicissitudes do mundo do trabalho, e os esforços
frenéticos invisíveis por manter o status quo que nos engloba. Mas quero
sair da regra imposta pelos meios acadêmicos, quero romper com toda essa
terminologia complexa cujo uso se tornou inconsciente. Quero evitar discursos
“hiperintelectualistas” porque quem está no mundo do trabalho, quem se tornou
vítima da rotina devastadora, foi negado o direito de refletir: Não tem tempo
para pensar em Foucault! O pouco tempo que lhe sobrou, é pra pensar no pão para
por no prato dos filhos, ou a blusa que deve comprar porque os padrões
hegemônicos do mundo da moda indicam que tem que compra-lá, por que se não,
será taxado de “brega”.
Ora, eu me considero uma dessas pessoas. Aliás,
tenho pós-doutorado em rotina devido ao trabalho, devido a obrigação de
produzir! E hoje, eu decidi, matar o homo tripalium dentro de mim, por
duas horas! Decidi reencarnar o homo ludens que há muito tempo havia
desaparecido! Sol, suco, piscina! É tudo que um homo ludens deseja!
Precisava desse tempo para me isolar desse ritmo frenético incessante.
Descansar... como se a vida fosse uma revista de quadrinhos e eu saísse dos
quadrinhos, rasgasse a revista e atirasse as folhas ao ar. Precisava desse
descanso, por mais efêmero que fosse, porque desde os 15 anos venho sendo
treinado para ser uma máquina. Não quero ser uma máquina! Não quero ser um mero
homo tripalium! Percebi que não é fácil fugir do status quo.
Numa tentativa de expressar minha insatisfação de
modo criativo e artístico ao modo como nos tornamos somente homo tripalium,
propôs uma intervenção no centro da cidade de Porto Velho. Comprei uma piscina
e pus água e deitei-me em plena luz do dia. Foram duas horas exposto e imóvel
no meio de trabalhadores que se utilizam o centro para passar e trabalhar. Até
o sol colaborou com o capitalismo atroz que vivemos! Desapareceu nas duas horas
da intervenção, e só foi reaparecer depois que esvaziei a piscina!
Porém, mesmo que o sol não colaborasse, eu ouvi meu
próprio grito, meu próprio desabafo, nos comentários dos pedestres, que
passavam de um lado pro outro, saíam de um emprego para outro. “Trabalho há dez
anos nessa praça, e nunca entrei numa piscina”, disse certo mototaxista. “Não é
justo eu ir trabalhar, e você ta aí”, comentou outro pedestre. Mas, o que mais
me emocionou, foi um mototaxista que iniciou uma conversa com outros pedestres.
Falava sobre seu trabalho, falava sobre sua rotina, sobre seu “patrão”. Chegou
até a criticar o capitalismo! Senti que meu objetivo de estar pondo meu corpo
social em risco lá, foi realizado.
Não sou contra o desenvolvimento e o mundo do
trabalho, mas acho extremamente prejudicial para nossa constituição psíquica
que sejamos meros homo tripalium, vivendo só para o trabalho, envolvidos
numa lógica de produção para ganhar mais e mais dinheiro. Acredito que o
equilíbrio é essencial: Devemos ser metade homo tripalium, metade homo
ludens. Ao propor uma ação extracotidiana que saísse do comum, que rompesse
com a rotina imposta pela sociedade, e pelo trabalho, sinto que dei um espaço
para o espectador refletir, para ele pensar na vida, na mudança,sem se envolver
pelos automatismos que paralisam nosso corpo/mente.
Falo de mudança como se fosse a coisa mais fácil de
acontecer. Na verdade, é quase impossível! Percebo que estamos sempre culpando
o mundo exterior, o sistema capitalista, os padrões hegemônicos que regem as
relações sociais, mas evitamos pensar que este sistema atroz, repleto de
competitividade, egocentrismo e um perpétuo sentimento de “quero mais” está
introjetado por nós, internalizado no seio do psiquismo de cada um de nós. “Quando
crescer, vai trabalhar e ganhar muito dinheiro”, somos bombardeados com frases
como essa desde os primeiros anos da infância. Só aprendemos que o importante é
ser feliz, e que a felicidade não depende unicamente do materialismo, quando já
é muito tarde. Portanto, mesmo que nos
afastemos de todo esse pandemônio e contínuo ritmo de produção, continuamos a
sentir uma ânsia por produzir ou consumir. A dicotomia produção-consumo vem
acompanhando o homem contemporâneo a cada passo, e isso é facilitado pela
propensão natural do homem para querer sempre mais e mais ainda. E assim,
produzimos, consumimos (nem sempre o que é necessário), produzimos, consumimos
num ritmo eterno e esquecemos que o equilíbrio entre o prazer e o
profissionalismo é vital.
A vida é tão
curta, para passá-la só trabalhando! Queria ficar mais tempo na piscina, no meu
descanso dessa neurose que nos une há todos. Mas tive que sair, por que
infelizmente, podemos criticar, podemos argumentar, mas parece uma missão
impossível nos livrar desse sistema que nos engloba. Esvaziei minha piscina,
pisei em cima do meu descanso imaginário, porque tinha que trabalhar. E assim,
voltei ao meu café, ao meu prato de almoço quase vazio por que se paga por
quilo, às minhas contas que chegam antes do salário, ao meu energético, aos
meus livros, a minha dor de cabeça, às minhas noites quase não dormidas, aos
meus domingos que não são domingos faz tempo. Voltei às minhas olheiras, a
minha fascite plantar, a minha lombalgia. Queria ficar por mais tempo porque às
vezes acho que sou livre, às vezes acho que sou um artista, às vezes acho que
sou um aluno de psicologia que está constantemente questionando os aspectos
sócio-culturais que interferem no sofrimento individual e coletivo. Porém,
sempre me deparo com o mesmo fato: sou um escravo, um cachorro guiado pelas
mãos invisíveis do sistema capitalista.
Referências
Referências
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. 7 ed. Tradução de Valter José
Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
DEJOURS, C.
A Loucura do trabalho: estudo de
psicopatologia do trabalho.5 ed. São Paulo: Cortez, 1992.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
Mahamoud Baydoun é acadêmico do sétimo período de psicologia da
Fundação Universidade Federal de Rondônia. Membro do Centro de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade na Amazônia (CEPSAM) e do Grupo O Imaginário de
artes cênicas. Contato: dodi_vib@hotmail.com.
Observação: Fotos: Folk Produções
Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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