quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Desabafo de um jovem trabalhador

    

Acredito que o principal problema da contemporaneidade é que deixamos de ser homo ludens como Huizinga (2000) caracterizou e nos transformamos em uma espécie de homo tripalium. Em outras palavras, trabalhamos mais e nos divertimos menos, para manter a dicotomia produzir-consumir imposta pelo sistema capitalista atroz dominante em estado anímico. Percebo que a sociedade na qual vivemos sofre de um sério quadro de esquizofrenia. De um lado, uma pletora de discursos científicos e acadêmicos a cerca da pós-modernidade descritos por (Bauman,1998; Giddens, 2002), entre outros sociólogos e filósofos da pós-modernidade. Enfatiza-se a liquidez dos relacionamentos e a busca frenética por prazeres imediatos. Por outro lado, evidencia-se um aumento dos níveis de depressão e doenças de origem mental. Ora, questiona-se: que prazer é este que se vê num mundo que até 2020 estará mais depressivo do que nunca?

Trabalhar pode ser uma fonte de prazer na medida em que se caracteriza como uma maneira de sublimar impulsos agressivos e sexuais não aceitos pela sociedade. Trabalhar dignifica o homem! Todavia, devemos ter em mente que o mundo do trabalho é contraditório: Ao mesmo tempo em que dignifica o homem, é capaz de tirar-lhe toda sua dignidade. Ao mesmo tempo em que leva ao reconhecimento e sucesso, leva ao outro extremo: a patologia, em suas diversas facetas. São inumeráveis os trabalhadores, dentro e fora do Brasil, que se declamam infelizes, vítimas de um stress inabalável. Queixam-se de cansaço, maus-tratos, falta de condições inalienáveis para a execução de suas funções e acima de tudo sobrecarga e rotina. Tornamos-nos homo tripalium porque trabalhamos 11 meses para descansar e brincar apenas 1, e olhe lá! Esperamos todos aqueles medíocres 30 dias de férias durante os quais nos sentimos livrados da obrigação de produzir. Sim, produzir é uma obrigação! Quem não produz, quem não contribui para o desenvolvimento deste sistema hegemônico que nos engloba, é taxado como vagabundo, como inútil! Nesse sentido, se pode entrar em discussões baseadas nas teorias de Althusser (1986) -Aparelhos Ideológicos do Estado, Foucault (1979) -Microfísica do poder e o conceito de normatividade, e Dejours (1992) -Psicopatologia e Trabalho. 

Grandes pensadores de diferentes áreas das ciências humanas já abordaram as vicissitudes do mundo do trabalho, e os esforços frenéticos invisíveis por manter o status quo que nos engloba. Mas quero sair da regra imposta pelos meios acadêmicos, quero romper com toda essa terminologia complexa cujo uso se tornou inconsciente. Quero evitar discursos “hiperintelectualistas” porque quem está no mundo do trabalho, quem se tornou vítima da rotina devastadora, foi negado o direito de refletir: Não tem tempo para pensar em Foucault! O pouco tempo que lhe sobrou, é pra pensar no pão para por no prato dos filhos, ou a blusa que deve comprar porque os padrões hegemônicos do mundo da moda indicam que tem que compra-lá, por que se não, será taxado de “brega”.

Ora, eu me considero uma dessas pessoas. Aliás, tenho pós-doutorado em rotina devido ao trabalho, devido a obrigação de produzir! E hoje, eu decidi, matar o homo tripalium dentro de mim, por duas horas! Decidi reencarnar o homo ludens que há muito tempo havia desaparecido! Sol, suco, piscina! É tudo que um homo ludens deseja! Precisava desse tempo para me isolar desse ritmo frenético incessante. Descansar... como se a vida fosse uma revista de quadrinhos e eu saísse dos quadrinhos, rasgasse a revista e atirasse as folhas ao ar. Precisava desse descanso, por mais efêmero que fosse, porque desde os 15 anos venho sendo treinado para ser uma máquina. Não quero ser uma máquina! Não quero ser um mero homo tripalium! Percebi que não é fácil fugir do status quo.
Numa tentativa de expressar minha insatisfação de modo criativo e artístico ao modo como nos tornamos somente homo tripalium, propôs uma intervenção no centro da cidade de Porto Velho. Comprei uma piscina e pus água e deitei-me em plena luz do dia. Foram duas horas exposto e imóvel no meio de trabalhadores que se utilizam o centro para passar e trabalhar. Até o sol colaborou com o capitalismo atroz que vivemos! Desapareceu nas duas horas da intervenção, e só foi reaparecer depois que esvaziei a piscina!

Porém, mesmo que o sol não colaborasse, eu ouvi meu próprio grito, meu próprio desabafo, nos comentários dos pedestres, que passavam de um lado pro outro, saíam de um emprego para outro. “Trabalho há dez anos nessa praça, e nunca entrei numa piscina”, disse certo mototaxista. “Não é justo eu ir trabalhar, e você ta aí”, comentou outro pedestre. Mas, o que mais me emocionou, foi um mototaxista que iniciou uma conversa com outros pedestres. Falava sobre seu trabalho, falava sobre sua rotina, sobre seu “patrão”. Chegou até a criticar o capitalismo! Senti que meu objetivo de estar pondo meu corpo social em risco lá, foi realizado.

Não sou contra o desenvolvimento e o mundo do trabalho, mas acho extremamente prejudicial para nossa constituição psíquica que sejamos meros homo tripalium, vivendo só para o trabalho, envolvidos numa lógica de produção para ganhar mais e mais dinheiro. Acredito que o equilíbrio é essencial: Devemos ser metade homo tripalium, metade homo ludens. Ao propor uma ação extracotidiana que saísse do comum, que rompesse com a rotina imposta pela sociedade, e pelo trabalho, sinto que dei um espaço para o espectador refletir, para ele pensar na vida, na mudança,sem se envolver pelos automatismos que paralisam nosso corpo/mente.

Falo de mudança como se fosse a coisa mais fácil de acontecer. Na verdade, é quase impossível! Percebo que estamos sempre culpando o mundo exterior, o sistema capitalista, os padrões hegemônicos que regem as relações sociais, mas evitamos pensar que este sistema atroz, repleto de competitividade, egocentrismo e um perpétuo sentimento de “quero mais” está introjetado por nós, internalizado no seio do psiquismo de cada um de nós. “Quando crescer, vai trabalhar e ganhar muito dinheiro”, somos bombardeados com frases como essa desde os primeiros anos da infância. Só aprendemos que o importante é ser feliz, e que a felicidade não depende unicamente do materialismo, quando já é muito tarde.  Portanto, mesmo que nos afastemos de todo esse pandemônio e contínuo ritmo de produção, continuamos a sentir uma ânsia por produzir ou consumir. A dicotomia produção-consumo vem acompanhando o homem contemporâneo a cada passo, e isso é facilitado pela propensão natural do homem para querer sempre mais e mais ainda. E assim, produzimos, consumimos (nem sempre o que é necessário), produzimos, consumimos num ritmo eterno e esquecemos que o equilíbrio entre o prazer e o profissionalismo é vital.


 A vida é tão curta, para passá-la só trabalhando! Queria ficar mais tempo na piscina, no meu descanso dessa neurose que nos une há todos. Mas tive que sair, por que infelizmente, podemos criticar, podemos argumentar, mas parece uma missão impossível nos livrar desse sistema que nos engloba. Esvaziei minha piscina, pisei em cima do meu descanso imaginário, porque tinha que trabalhar. E assim, voltei ao meu café, ao meu prato de almoço quase vazio por que se paga por quilo, às minhas contas que chegam antes do salário, ao meu energético, aos meus livros, a minha dor de cabeça, às minhas noites quase não dormidas, aos meus domingos que não são domingos faz tempo. Voltei às minhas olheiras, a minha fascite plantar, a minha lombalgia. Queria ficar por mais tempo porque às vezes acho que sou livre, às vezes acho que sou um artista, às vezes acho que sou um aluno de psicologia que está constantemente questionando os aspectos sócio-culturais que interferem no sofrimento individual e coletivo. Porém, sempre me deparo com o mesmo fato: sou um escravo, um cachorro guiado pelas mãos invisíveis do sistema capitalista.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos do Estado. 7 ed. Tradução de Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
DEJOURS, C. A Loucura do trabalho:  estudo de psicopatologia do trabalho.5 ed. São Paulo: Cortez, 1992.
FOUCAULT, Michel.  Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.










Mahamoud Baydoun é acadêmico do sétimo período de psicologia da Fundação Universidade Federal de Rondônia. Membro do Centro de Estudos e Pesquisas da Subjetividade na Amazônia (CEPSAM) e do Grupo O Imaginário de artes cênicas. Contato: dodi_vib@hotmail.com. 

 Observação: Fotos: Folk Produções

Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.

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