domingo, 24 de novembro de 2013

Notas de estudo: O que é literatura, Eagleton?



           Terry Eagleton parte do pré-suposto de que “se a teoria literária existe, parece óbvio que haja alguma coisa chamada literatura, sobre a qual se teoriza”. Aparentemente, se acreditamos em uma Crítica e uma Teoria, certo é que surgiram da necessidade dos estudiosos de melhor compreender uma literatura. O objeto de análise, quando já criticado e teorizado, não mais o É, pois o que buscamos, intimamente, não é o Ser literário, mas sim o Estar, tendo por objetivo o estado vigente e não a permanência.  Quanto a essa “mutabilidade” do conceito, que o coloca em um continuum de reformulação e torna passada toda tentativa de apreende-lo, outros pontos deverão ser levantados.
            Segundo Eagleton, os formalistas russos defendiam que a Obra Literária “não era um vínculo de ideias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental: era um fato material, cujo funcionamento podia ser analisado mais ou menos como se examina uma máquina”. No
Filósofo e crítico britânico
entanto, mesmo sobre este ponto de vista, Vitor Sklovski, Roman Jakobson, Osip Brik, Yury Tynyanov, Boris Eichenbaum e Boris Tomanshevski, partes essenciais do pensamento "formal", compreendiam que “ as normas e os desvios se modificam de um contexto social ou histórico para outro – que ‘poesia’, nesse sentido, depende de nossa localização num dado momento”. Esse deslocamento de preceitos está ligado ao movimento vital, ao fluxo dinâmico do próprio conceito de Arte e Literatura no Espaço e no Tempo.
            Saio da questão. Ao declarar que “pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia”, o autor cai em um outro embate. Pesquisadores de toda ordem, professores, críticos, escritores e leitores têm se dirigido, através dos tempos, à poesia e ao poema, ora como coisas distintas, ora como coisas idênticas. As tentativas de definição competem em número com a pergunta que Eagleton se propôs a responder. Em linhas gerais, tentando suprimir o que tem me instigado durante toda a graduação e nas aulas de literatura como um todo, diz-se de poema como objeto empírico e de poesia como substância imaterial. Recorro ainda à definição de Pedro Lyra, em Conceito de Poesia:

O poema, depois de criado, existe per se, em si mesmo, ao alcance de qualquer leitor, mas a poesia só existe em outro ser: primariamente, naqueles onde ela se encrava e se manisfesta de modo originário, oferecendo-se à percepção objetiva de qualquer indivíduo; secundariamente, no espírito desse indivíduo que tenta (ou não) objetiva-la num poema; terciariamente, no próprio poema resultante desse trabalho objetivdor do indivíduo-poeta.(LYRA, 1992. Pág 07)

             A mutabilidade aqui também se apresenta como uma variante que modificará a ideia que se faz de Poema e de Poesia dentro de um determinado Espaço e Tempo, mas é preciso definir, ou averiguar, a diferença entre estes conceitos que se relacionam de forma, maios ou menos, hiperonímica. Postas estas iluminuras, podemos continuar.
            Constata-se que a literatura é um discurso “não-pragmático”, visto que não possui uma aplicação prática imediata, como seria uma manual de biologia, referindo-se apenas a um estado gera de coisas. Esta afirmação acarretará no fato de a Literatura não poder ser definida “objetivamente”, ou seja, não contar com uma definição estanque, como já havíamos dito ao princípio deste  ensaio.
            “Alguns textos nascem literários”, defende o autor, “outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta”. Quanto a essa perigosa valoração e valorização do texto (logo explicarei o porque do perigo), pensando a literatura menos como uma qualidade inerente e mais como as várias maneiras pelas quais as pessoas se relacionam com o “objeto-literário”, muito há de ser ponderado para a fim de evitar um pensamento reducionista e pautado no pré-conceito. Deve-se atentar para o caráter funcional e não ontológico, resguardando sempre a função (seja ela social, comercial e etc) da obra de arte e refletindo quanto a isso.
            Saio, em parte, da questão. O conjunto de valores correntes que define um objeto como literário ou uma obra como literatura também está sujeito ao fluxo do Espaço e do Tempo. Não existe uma “essência” da literatura e crer no contrário pode conduzir-nos a colocações errôneas de carácter generalista. Um exemplo da Valoração/Valorização X Função, é a forma como hoje se vê, na academia principalmente, mesmo que caindo no paradoxo de reclamar a falta de leitura e dizer, ao mesmo tempo, aos leitores, que o que eles leem não é literatura, é o uso frequente do termo Best Seller para se referir à Literatura de Massa. Ignoraremos aqui o fato de apontarmos sempre o que não é literatura, quando passamos a maior parte buscando o Ser e/ou o Estar da contra-questão. Vejamos o que diz Dering sobre essas nomenclaturas, em A cultura de massa em diálogo com culturas literárias:

Percebendo as inquietudes que se referem aos posicionamentos acerca das nomenclaturas que envolvem a produção literária no contexto da cultura industrial e tecnológica, faz-se necessário abordar com clareza e diferenciar três conceitos ainda não bem pontuados pela teoria: best-seller, mega-seller e literatura de massa. São termos muito utilizados pela crítica, contudo sem uma preocupação de definição mais qualificada, usados erroneamente, muitas vezes, como sinônimos. Essa diferenciação é imprescindível para que possamos entender esse fenômeno e suas relações com a indústria cultural, inclusive com a mídia, que muitas vezes os instauram ou aos ajudam a se fixar. (DERING, 2012. Pág 34)

            Não entraremos em maiores detalhes sobre os três termos levantados pelo autor, cabe-nos aqui dizer apenas sobre a atenção deve ser dada quanto às nomenclaturas meramente mercadológicas e as utilizadas para dividir, seja por que motivo for, os “tipos de literatura” sendo “tipos” uma mera diferenciação e não uma valoração qualitativa, ou seja, dita enquanto “boa" e “má” literatura. 
            Antes de retomar o caminho seguro do texto de Eagleton, vale ainda dizer, para que o problema caiba mais no exemplo, que O segredo, da escritora australiana Rhonda Byrne, e O Nome da Rosa de “um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é.”     
O Segredo - Rhonda Byrne
             Umberto Eco, são Mega/Best Sellers e, para qualquer leitor que os ler, sendo este comum ou especializado, haverá claramente uma diferença. Relembrando que “diferente” não implica em melhor ou pior, mas, como diria o poeta,
            Assegurada a condição instável do conceito, Terry Eagleton  apontara: “qualquer ideia de que o estudo da literatura é o estudo de uma entidade estável e bem definida, tal como a entomologia é o estudo dos insetos, pode ser abandonada como uma quimera”. Devemos adotar a seguir daqui uma visão anunciada no primeiro parágrafo e reafirmada no correr da escrita, talvez a mais viável para o estudo, onde o conceito que se busca não é permanente, mas vivo e dinâmico. Essa dinamicidade se dá, sobre tudo, por conta dos múltiplos paradigmas, dos incontáveis juízos de valor utilizados para julgar o quão boa é ou não uma obra, assim como o seu Ser, Não-ser, Estar e Não-estar como literatura. Sobre esta variação no que tange o literário, Márcia Abreu, em seu livro Cultura Letrada, nos diz:           

A avaliação estética e o gosto literário variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que diferentes pessoas apreciem de modo distinto os romances, as poesias¹, as peças teatrais, os filmes. Muitos, entretanto, tomam algumas produções e algumas formas de lidar com elas como únicas válidas. E aí reclamam porque o brasileiro não lê e não tem interesse pela cultura. (ABREU, 2004. Pág 59) 

                No capítulo 3 do mesmo livro, Abreu nos apresenta duas situações: uma no nordeste com a Literatura de Cordel, e a outra na Africa, com membros da tribo Tiv. Em ambos os casos as categorias de análise para o julgamento valorativo das obras eram distintas do gosto estético erudito utilizado para avaliar comumente o conjunto das produções. Dessa forma o que merece ser Literatura e o que vem a ser Popular, Marginal, Trivial, Comercial ganha outro formato e, até mesmo Shakespeare e/ou Homero, estão sujeitos à reprovação e à condenação ao Não-ser/Não-estar
literário.
            Eagleton nos dirá que o “valor é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetos”. Se quisermos adentrar um pouco mais nessa questão valorativa e em seu trânsito,
U. Eco - O Nome da Rosa
podemos fazer uso de seis noções outras que, explicitadas por Compagnon, em O Demônio da Literatura, evidenciariam a relação do texto literário com a intenção, a realidade, a recepção, a língua, a história e o valor. Dentro dessas perspectivas se poderia dizer melhor de problemas como o termo literatura em sentido amplo, sendo tudo o que é impresso (escrito) sobre um determinado assunto, até a literatura como uma inevitável petição de princípio.
          Tudo o que foi suscitado neste ensaio, até o presente momento, diz muito respeito à formação, consciente e inconsciente, de nós mesmos enquanto indivíduos que vivem e experienciam o tempo e o espaço. Estamos expostos, por exemplo, ao pensamento ocidental, a uma estrutura de crenças, princípios e interesses que nos envolvem desde o nascimento e, mesmo enquanto aprendemos conscientemente durante nossa formação (Ensino-fundamental, médio e superior) estamos assimilando o conjunto completo de valores aos quais estamos sujeitos.
            Como bem disse Compagnon ao relembrar Montaigne, o prazer da caça não é a captura. E  “se não é possível ver a literatura como uma categoria 'objetiva'”, previne Terry Eagleton, “também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura”. Ainda que Tolstoï tenha indagado O que É a Arte? Mesmo que Jakobson tenha questionado O que É a Poesia? Ou que Sartre tenha suscitado O que É Literatura? A coisa é muito mais velha que o nome e ambos estão em constante movimento. Resta-nos a busca do To be or not To be / do Ser ou não Ser / Do Estar ou não Estar da literatura.
                                                          
¹ Poesia e Poema novamente aparecem como sinônimos.





Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa – Ele Mesmo) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).

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