quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Meditações poéticas do amor




Às vezes recebo, nas redes sociais, determinados rankings acerca de obras literárias, poemas, filmes, e tudo quanto se possa imaginar. No entanto, ao pensar um pouco sobre isso a conclusão a que chego é já bastante conhecida e camoniana: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades”. E não é que Camões estava certo?            Estamos todos, seres e mundo, em constante movimento. Cada um, a seu modo, constrói novos conhecimentos, lida com determinadas situações e experiências que nos levam à mudança. Na lição deleuziana, estamos em um constante devir, em um vir a ser que é a característica humana fundamental, enquanto seres que experienciam e têm consciência das noções de tempo, morte, entre outras.

Logo, após essa incursão no poema camoniano, penso eu que a cada dia que passo e conheço novos livros e poemas, por exemplo, erijo uma lista diferente da anterior que figurava em minha mente. Alguns permanecem, outros saem, outros ainda entram nessa listagem que, como o homem, está em constante processo de construção. No entanto, minha proposta aqui hoje é apresentar um poema que para mim é nodal quanto ao meu amor pela poesia e interesse pelos estudos literários, filosóficos e mais além. Trata-se de “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”, de Sophia de Mello Breyner Andresen:

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer

Como o próprio título do poema indica, há uma voz lírica masculina, meditando sobre o amor a partir da morte do ser que amara em vida. A conlusão a que ele chega é bastante forte, sendo marcada por paralelismos “Nunca mais servirei senhor que possa morrer/[...] Nunca mais amarei quem não possa viver/Sempre”.

Essa meditação gira em torno da ideia do “nunca mais” que podemos remeter também ao “O corvo” de Edgar Allan Poe. O que nos leva a perceber que, para esse eu lírico, o amor seria algo relacionado a um corpo vivo que sente, que pulsa, que ri  e não a um corpo em destroços  que em breve será bebido em podridão. Interessa-nos notar que a morte traz para esse sujeito poético uma consciência do tempo com a qual ele não lidava anteriormente, pois estava embebido no amor a ponto de obliterar o tempo cronológico. Ele conclui que “E nunca mais darei ao tempo a minha vida” e isso nos permite pensar que o amor seria, pois, uma perda do controle de si mesmo, uma desmesura, e um entregar-se ao tempo.

Esse poema retrata a autognose de um sujeito que, ao contrário do que disse Otávio Paz em A dupla chama: amor e erotismo, não concebe o amor ao trancendente, à alma, não o imagina como algo imortal e impassível de desconstrução. No fim, o Duque que amou Isabel de Portugal sofre pela ausência diante de um rosto de nojo e negação. Negação do amor, de Isabel e de si próprio enquanto um alguém que amou “como se fossem eternos/ A glória, a luz e o brilho do teu ser”. O Duque de Gandia, numa atitude serena após toda meditação, não esquece esse amor, mas refltete acerca dele com mágoa pela própria existência desse sentimento em si e fecha os olhos para não mais ver o ser que em vida amara.

Referências:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética. 2ªed. Lisboa: Caminho, 2011.
CAMÕES, Luis vaz de. Lírica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.

Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada. Juntamente com Ana Dietrich é coordenador desse periódico. Ele é professor substituto de literatura portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.



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