terça-feira, 25 de março de 2014

As outras


Fernanda que não me escute: mas quando saio andando por aí, me apaixono muitas vezes. Pode ser no caminho do trabalho, de casa, da padaria, do banco. Chova ou faça sol entre nuvens. Basta que as Melissinhas daquela mulher atravessem a rua em câmera lenta – o céu azula todinho, o queixo cai e ainda arrasta os olhos.

Basta que o gari dê uma sambadinha entre uma lixeira e outra. Que a vó não resista às bochechas indecentemente fofas da neta e leve o pão doce. Que o motorista do ônibus deixe o volante para ajudar o tiozinho a subir com as sacolas do mercado. Que os amigos dos tempos da brilhantina se encontrem na esquina para rir bem alto das atuais carequices.

Que o ambulante cumprimente até o sujeito que jamais compra nem alfinete pirata.

Que aquele sobrado esteja sempre no mesmo lugar, entre os dois fura-céus: a árvore esparramando sua copa sobre o quintal, o senhor de óculos grisalhos bebendo a caneca na janela do segundo andar, a mulher de vestido gordo varrendo as folhas com a mangueira, o molecote de shortinho verde correndo da água com as mãos sujas de terra e biscoito maizena.

Basta que um pingo da cena tinja a calçada, respingue nos meus pés, que o meu coração, em vez de acelerar, cameralenta – no mesmo passo daquelas Melissinhas.

Basta que, de repente, o mp3 replaye a canção que eu já tinha esquecido que um dia existiu. Que ela sirva de trilha para o beijo do casal diante dos jornais expostos na banca. Que os jornais da manhã anterior cubram o sem-teto que insiste em repetir o mesmo poema para quem vai apressado.

Que um verso se solte do asfalto.

Basta isso para que eu tropece de amores mais uma vez, e a vida – incansavelmente generosa – prove que não se contenta com a monogamia.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório e tem perfil no Twitter.

1 comentários:

Miriam Adelman disse...

Gostei muito do texto!

27 de março de 2014 às 14:03

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