sexta-feira, 21 de março de 2014

Mulheres que escrevem, mulheres que criam, mulheres que reconstroem os horizontes do discurso.




No, no es la solución
tirarse bajo un tren como la Ana de Tolstoy
ni apurar el arsénico de Madame Bovary
ni aguardar en los páramos de Ávila la visita
del ángel con venablo
antes de liarse el manto a la cabeza
y comenzar a actuar.             
Ni concluir las leyes geométricas, contando
las vigas de la celda de castigo
como lo hizo Sor Juana. No es la solución
escribir, mientras llegan las visitas,
en la sala de estar de la familia Austen
ni encerrarse en el ático
de alguna residencia de la Nueva Inglaterra
y soñar, con la Biblia de los Dickinson,
debajo de una almohada de soltera.             
Debe haber otro modo que no se llame Safo
ni Mesalina ni María Egipciaca
ni Magdalena ni Clemencia Isaura.             

Otro modo de ser humano y libre.
Otro modo de ser. 
(Rosario Castellanos)



A autora de Meditacion en el umbral (Meditação no limiar), a mexicana Rosario Castellanos (1925-1974) foi contemporânea da brasileira Clarice Lispector e da renomada poeta norteamericana Sylvia Plath,esta última optando  pelo fim trágico que Castellanos aqui denuncia quando afirma que existe um “outro modo” de ser humano, e de ser mulher.  Suponho que Castellanos, autora de numerosos romances e uma peça de teatro absolutamente genial, El eterno feminino, quisesse com isto sugerir às mulheres do século XX que nem o modo trágico (produto daquilo que Maria Rita Kehl apontou como o “roteiro muito estreito” que épocas anteriores  lhes impunham ) nem o modo heróico de vida (fantasia do ser masculino) constituíssem caminhos adequados para pessoas que queriam e podiam achar uma voz e elaborar um projeto criativa próprio. 




Como noutro lugar assinalei, coube às gerações posteriores de escritoras, como as nascidas nas décadas de 1940 e 1950, sendo uma geração de ponta, desfrutar de liberdade e legitimidade maior dentro da sociedade e mais especificamente, dentro das instituições da academia e da arte. O “privilégio”,ou melhor dito, o direito de ser lida, ouvida, e escutada, foi uma conquista, fruto de lutas feministas históricas. Em termos mais concretos, foi o resultado dos esforços de mulheres da geração que durante a década de 1960 ocupou as ruas e os espaços da academia, exigindo romper as amarras de um mundo que ainda sustentava um sistema social e cultural hierárquico em que (como tão bem o explicitara Simone de Beauvoir) os homens representavam “a norma” e as mulheres, o desvio, “o segundo sexo”.



Os avanços são numerosos e evidentes, de tal forma que quem quer ler ou estudar “mulheres que escrevem” pode hoje escolher entre uma grande diversidade de escritoras que se inserem em tradições linguísticas e projetos estético-literários diferentes. Com certeza, este cenário contemporâneo acaba por abalar, de uma vez por todas, o Mito da Mulher identificado em 1949 por Simone de Beauvoir, mito que aprisionava as mulheres  -  musas ou malditas,  nos termos dos discursos de uma tradição masculina e ocidental bastante longa. Mesmo assim, hoje a produção das mulheres em todos os campos da cultura (artes visuais, literatura, música, cinema, etc.,) continua gozando de menos visibilidade do que a masculina, e persistem muitos dos velhos problemas de representação – de manutenção de estereótipos e preconceitos, de repressão ou silenciamento de discursos mais transgressores ou das normas que ainda tentam ditar o que se poder fazer ou ser, sendo “mulher”. 





A situação se exacerba  no âmbito do padrão da cultura de massas, por exemplo, nos programas de televisão, revistas e jornais de amplo alcance popular que existem à  maior distância de novos discursos críticos. Podemos relembrar alguns debates que já suscitaram muita polêmica.  Por exemplo, nas primeiras décadas do século XX,  quando as escritoras enfrentavam ainda muitas barreiras institucionais à sua inserção no campo de literatura,Virginia Woolf  ponderava a existência de uma escrita feminina, e o que poderia distingui-la. E se existisse – ela sim acreditava num olhar ou sensibilidade feminina diferente- como promover e cultivá-la?   Sua posição, pioneira no sentido de legitimar a produção literária das mulheres, foi retomada e amplamente debatida em décadas mais recentes; foi em grande parte superada, pelo menos no que diz respeito a supostas “diferenças estéticas”. 





Hoje estamos em pleno momento desconstrutivo, havendo um consenso (relativo) de que precisamos desenvolver formas mais complexas e descoladas de binômios de gênero para entender questões de autoria. Aliás, todos nós somos muitas coisas, além (ou fora) de ser homem ou mulher.  Desde qual lugar, desde que “posição de sujeito” falamos? Orientação sexual, origem social (que inclui questões de raça, nacionalidade e classe social) e experiências de vida singulares, são fatores que nos fazem o que somos, e nos fazem “falar” desde um lugar... ou de outro.

Nas semanas que seguem, tentarei explorar estas questões, discutindo obras, autoras e – porque não? – teorias sobre como criamos, como representamos. Pretendo focar os sentidos e significados produzidos na obra de mulheres poetas, romancistas, cineastas e fotógrafas, dentre outras (produção cultural stricto sensu), assim como relacioná-las com os sentidos e significados que permeiam nosso cotidiano e que se fazem e refazem em todos os espaços da vida social.  





Vivemos numa época de intensas lutas simbólicas – como bem insistia o recém falecido estudioso da cultura Stuart Hall - sobre o sentido da vida, sobre o que é justiça, sobre o que são direitos ou cidadania, sobre o que nos une ou nos separa, como seres humanos e habitantes de um mesmo planeta em crise.  Essas lutas simbólicas são com certeza parte íntegra e inseparável do material, do tangível e da instável malha de relações sociais contemporâneas. O que está em jogo nestas lutas são nada menos de que modos de viver e de coexistir. Podemos, então, pensar junto com a poeta norteamericana Carolyn Forché quando escreve, em tom caracteristicamente dramático, “It is either the beginning or the end of the world. The choice is ourselves or nothing.”


Referências.
Adelman, M. “Modernidade e pós-modernidade em vozes femininas”.  In: Codato, A., org. Para viver no século XXI: os problemas da contemporaneidade. Curitiba:  SESC Paraná. 2007. 
Beauvoir, S. O segundo sexo. São Paulo: Círculo do Livro. 1949.
Castellanos, Rosario.  El eterno feminino.  México, D.F.: Fondo de Cultura Económica. 1975.
Hall, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais.Belo Horizonte:Editora UFMG. 2003.
Kehl, M.R., Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade.  Rio de Janeiro:Imago. 1998.
Woolf, V. Um Teto todo Seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1985.

Fotos: Fran Ferreira.







Foto: Pedro Zaniolo

Miriam Adelman, é socióloga, de nacionalidade norte-americana. Doutora em Ciências Humanas (UFSC)) e professora do programa de pós-graduação em Sociologia da UFPR. É co-fundadora do Núcleo de Estudos de Gênero desta instituição.  Tem livros e artigos sobre temáticas diversas publicados no Brasil e no exterior.


3 comentários:

Ana Dietrich disse...

Excelente Miriam... você propoe um interessante despertar para o olhar feminino...

22 de março de 2014 às 12:54
Ana Dietrich disse...

Excelente Miriam... você propoe um interessante despertar para o olhar feminino...

22 de março de 2014 às 12:58
Miriam Adelman disse...

Obrigada, Ana ! Já estou preparando o segundo texto, dentro desta proposta!

26 de março de 2014 às 23:55

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