sexta-feira, 18 de abril de 2014

 






 CORAJOSAS DA ESTRADA (I):  Diane di Prima.


Parceira de estrada dos "grandes nomes" da geração Beat e escritora de poesia e prosa, Diane di Prima é até hoje a escritora mais reconhecida da geração Beat. Atualmente, junto com minha colega Renata Senna Garrafoni, historiadora (e também professora da UFPR),  estamos realizando pesquisa sobre as mulheres que faziam parte desse círculo, desse movimento cultural que ficou  tão conhecido e admirado– tanto pela rebeldia social que representava quanto pela inovação literária e artística que realizava.  Não obstante, aqui no Brasil, até hoje, o movimento é entendido e lido quase exclusivamente através de seus representantes masculinos.  Nos E.U.A.,  desde os anos 90,  há uma produção relativamente intensa sobre elas, que inclui crítica, análise, e re-edição de obras suas, resgatando a enorme e diversa contribuição de mulheres que faziam parte do círculo Beat.   O objetivo principal do nosso trabalho é fazer que esta obra se conheça por aqui,  que a partir da vida e os escritos destas se mulheres,  se entenda mais um pouco sobre experiências e lutas de mulheres artistas e escritoras do século vinte - e desta geração pioneira em particular.  Nas próximas semanas, dedicarei esta coluna para falar sobre várias delas.

 
 
Di Prima  nasceu em Nova Iorque em  1934, filha de filhos de imigrantes italianos. Jovem rebelde e  estudante brilhante, deixou a faculdade para privilegiar a experiência e o fazer artístico cotidianos;  foi mãe solteira, amante de homens e mulheres e até moradora de rua. Em certo momento seguiu o caminho de muitos Beats, migrando para a Califórnia, onde vive até hoje.  Na sua prolífica obra,  ela reconstrói um tempo histórico e as vivências de pessoas que desafiaram normas e códigos de comportamento, acreditando  na sua própria capacidade de abalar o "American way of life". 
 
 Do livro de memórias  Recollections of my life as a woman: the New York Years”

 “Quando eu falo, como por vezes faço, com outras pessoas sobre minha vida,quando perguntam, ou tentam descobrir o que significou para mim, naqueles tempos, decidir ser poeta, e daí, na seqüência, pôr isso em prática, agir nesse sentido, muitas vezes me dizem, ‘Ah é, sem dinheiro, mas ganhou fama; a fama precoce deve ter sido uma recompensa’. E eu os olho com estranheza, me perguntando como eles imaginam esses primeiros apartamentos, esses quartos vazios, essas caixas servindo de mesa e cadeira, e finalmente, um neném deitado em algum canto. Fama, eu pergunto tentativamente, tive fama?

 
 
O que eu sei é que escolher ser artista: escritor, bailarino, pintor, músico, ator, fotógrafo, escultor, você o diga, escolher ser qualquer um deles nesse mundo em que eu cresci, o mundo dos anos 40 e começo dos anos 50, era fazer a escolha mais completa que havia nesses tempos, viver uma vida de renunciante. Uma vida de sadhu, de santo itinerante, fora do marco das leis dessa cultura particular e peculiar.

Era um mundo em que a religião em si era suspeita, e por bons motivos. 'Religião' como a gente a conhecia, se limitava à modalidade judaico-cristã – ‘Protestante, católico ou judeu?’ nos perguntavam, ao entrar no hospital ou numa escola. E era um mundo que era impossível de aceitar com a consciência tranquila. Não era aquilo que os liberais dos anos 40 ou 50 gostariam que a gente acreditasse, aquilo que eles tinham sonhado – um mundo onde o progresso era um dado e a sociedade humana em si um valor. Nós artistas renunciantes fora-da-lei – os que seriam renunciantes – não encontravam nela nenhum valor. Nesse impulso de ascender e progredir na América de 1950, onde não existia nada alem do mundo de cada dia, a maneira mais clara de afastar-se do materialismo era direcionar-se às artes.

Ser uma paria, um outsider, era essa a vocação. Nem fama, nem publicação. Manter as mãos limpas, não pertencer. Ao manter-se do lado de fora, a gente sentia que as guerras, as massacres, os erros não eram nossos.

(Me lembro de um jovem imigrante, anarquista, Francisco, um espanhol que como muitas outras pessoas nesses anos após a Segunda Guerra Mundial foi encarcerado, por estar na América sem papéis. Depois o deportaram para a Espanha de Franco, onde em pouco tempo foi assassinado. Mas quando estava na prisão em ou perto de Nova Iorque, as autoridades descobriram que ele era padeiro. Tentaram pôr ele para trabalhar na cozinha. Francisco se recusou, fazendo greve de um homem só. ‘Não farei nada’ ele disse, no seu inglês com forte sotaque, ‘que apoie esta casa’. Era o que todos sentíamos – tornou-se nosso grito de mobilização. E o continuou sendo, muito tempo após a desaparecimento de Francisco.) "

Tradução:  Miriam Adelman

 
 
Carta Revolucionária #1


Acabo de perceber que o que está em jogo sou eu
Não tenho outra moeda de resgate, nada para
quebrar ou trocar, a não ser minha vida
meu espírito parcelado, em fragmentos, esparramado sobre
a mesa de roulette. eu recupero o que posso,
só isso para enfiar embaixo do nariz do maitre de jeu
só isso para jogar pela janela, nenhuma bandeira branca
só tenho minha pele para oferecer, para fazer minha jogada
com esta cabeça imediata, com aquilo que inventa, é a minha vez
enquanto deslizamos sobre o tabuleiro,  pisando sempre
(assim esperamos) nas entrelinhas


Diane di Prima
versão: Miriam Adelman
 
Referência:
Di Prima, Diane.  Recollections of my life as a woman:  the New York Years.  Penguin Books:2001.

Imagem:   Regina Camargo.
 
 
 
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, radica em Curitiba desde 1991;  é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR desde 1992.  Atualmente coordena o núcleo de pesquisa (UFPR/CNPq) Mulheres e Produção Cultural.  Publica regularmente no Brasil e no exterior, na sociologia e áreas afins. (foto:  Pedro Zaniolo)

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