quarta-feira, 16 de abril de 2014

SOCIOLOGIA e FOTOGRAFIA: CONVERGÊNCIAS



“O sociólogo me pede que faça de preferência fotografia documental, que registre o mais minuciosamente possível os fatos sociais, que faça uma fotografia descritiva, etnográfica. Mas o fotógrafo se insurge contra essa demanda, prefere os diálogos com o expressionismo da xilogravura de Oswaldo Goeldi e, por meio dele com os duplos significados, com as ocultações, com o antietnográfico da demanda documental, com os sobresignificados das sombras que decodificam o mundo da luz, que é o mundo da fotografia”. (José de Souza Martins)

No texto de Martins, há pontos de afinidades e divergências entre a Fotografia e a Sociologia. Ambas, ‘produtos’ do século XIX, surgiram marcadas por dois eventos contemporâneos: a publicação do Discours sur l’esprit positif de Auguste Comte em 1844 e a fotografia em 1839, com a exposição pública de Daguerre sobre o modo de fixar a imagem em uma placa metálica. 


Daguerreótipo
Daguerre, 1826.

A partir daí, porém, ambas seguiram percursos distintos, já que a fotografia procurou seu reconhecimento no campo das artes, e a sociologia trilhou caminhos que a levariam a sua institucionalização como ciência positiva, com a proposta de elaborar grandes teorias, apoiando-se em técnicas e metodologias semelhantes às das ciências naturais. Nesse sentido, é paradigmática a obra de Émile Durkheim. 

Durante muito tempo, o estatuto artístico da fotografia foi objeto de discussões polêmicas. Desde o seu início ela foi negada enquanto arte legitima, mesmo pelos pintores realistas, relacionando-a, portanto, com a observação racional e com a ‘reprodução direta do natural’. (Baudelaire)


Baudelaire, o poeta que não compreendeu a fotografia em seus inícios.

A partir do momento em que se simplificaram os procedimentos técnicos que permitem a qualquer indivíduo tirar fotografias, a “aura” que envolvia a fotografia e que lhe conferiu um caráter elitizado, desapareceu. Começou como meio de auto-representação, substituindo a pintura de retrato e em pouco tempo tornou-se uma indústria onipotente e tentacular, devido em grande parte à expansão de algumas empresas como a Kodak, que colocou no mercado os mais diversos produtos para a prática fotográfica a preços acessíveis a uma grande parcela da população.


                                                          
Comercial da Kodak
Uma das primeiras fotos feitas pela Kodak


























Ela serviu também como ferramenta de análise social para alguns dos primeiros fotógrafos que ajudaram a construir sua história, para aqueles que se dedicaram à explorar temas caros à Sociologia, através de imagens. É o caso de Lee Frielander e Garry Winogrand que fotografaram os comportamentos no espaço público, abordando questões da sociologia tratadas nas obras de Georg Simmel e de Erving Goffman. 


Foto: Lee Friedlander

A Farm Security Administration (FSA), organismo estatal norte-americano, financiou alguns trabalhos fotográficos sobre a vida rural, empregando fotógrafos como Dorothea Lange, Margaret Bourke-White, Russel Lee, Walker Evans e outros. Esses fotógrafos registraram em suas imagens inúmeros problemas sociais da sociedade norte-americana.


Foto: Garry Winogrand

Lewis Hine, que se autodeclarava um “fotógrafo sociológico” é representante de uma geração que viu na fotografia um meio excepcional de intervenção na realidade social. Hine, retratou as condições de crianças norte-americanas trabalhadoras em fábricas e minas, e o impacto de suas imagens gerou mudanças legislativas em relação ao trabalho infantil. Esse fotógrafo também denunciou através de seu trabalho, o tratamento dado aos imigrantes nos EUA.


Foto: Dorothea Lange
Outro artista que se propôs a realizar um projeto fotográfico de cunho social, foi o suíço Robert Frank que retratou a sociedade norte-americana através de sua objetiva, como uma “sociedade fraturada” (“The Americans”, editado em 1959). Frank viajou por aquele país entre 1955 e 56, registrando suas mais profundas contradições como as discriminações raciais, as desigualdades econômicas, contrastando-a com os símbolos do patriotismo americano. Seu trabalho causou desconforto na sociedade em questão, refletindo em seu projeto as reflexões dos trabalhos de Margaret Mead, Ruth Benedict e Tocqueville.

Foto: Lewis Hine

Howard Becker em 1974, inaugurou uma nova metodologia, apontando para diversas formas de como se olhar o social, uma atitude de interdisciplinaridade tanto por parte dos sociólogos como dos fotógrafos: os primeiros deveriam conhecer melhor os documentos sociais dos fotógrafos, aproveitando para usar as técnicas mais comuns da fotografia nas suas investigações; e os segundos deveriam estudar as teorias sociológicas para melhor desenvolver seus projetos fotográficos. No entanto, parece que as preocupações metodológicas de Becker não tiveram a difusão esperada entre fotógrafos e sociólogos. 


Foto: Robert Frank
Martins (2008), se coloca em uma posição antagônica à perspectiva de Becker, que considera “fortemente positivista”. A fotografia, como método de registro da informação social e cultural e como recurso de narrativas etnográficas domina o interesse de sociólogos e antropólogos, mas não se esgotam aí as possibilidades desse meio como referência sobre a realidade social contemporânea, segundo este autor. 


Foto: Margaret Bourke-White
A fotografia chegou à Antropologia e depois à Sociologia como documento útil a um certo positivismo visual, porque supostamente dotado de uma precisão informativa de obra de engenharia e da indústria. O que faltou à essas ciências foi a crítica do conhecimento contido nessa suposição, sobretudo a crítica do fato de que a sociologia e a fotografia, nascem também, capturadas pela lógica da produção racional e, portanto, da mera contrapartida  e recusa do ilógico produzido no mesmo processo.


Foto: José S. Martins

Ele propõe que se repense a fotografia na perspectiva da tensão totalizadora que há na pintura impressionista, em função dos dilemas do uso da fotografia nas Ciências Sociais. A intenção é sair da “camisa de força positivista” que domina a Antropologia Visual e a Sociologia Visual.

As ciências sociais que incorporaram a fotografia ao âmbito dos seus interesses não se propouseram à superação desse caráter residual da imagem do que para elas é apenas objeto documentado, sobretudo a imagem fotográfica. Em certas situações, essa orientação destitui a fotografia de seus conteúdos próprios e se reduz ao meramente contemplativo e documental, como complemento do questionário, do formulário, da entrevista ou do diário de campo. 

No entanto, toda fotografia contém um ‘ver a mais’, já que nenhum fotógrafo, mesmo o amador da fotografia ingênua, é passivo copista do que está fotografando. (2008, p.154)


Obra de Howard Becker

Assim como há um certo arbítrio do fotógrafo ao obter uma imagem, há também por parte do sociólogo (ou antropólogo), um arbítrio na leitura e interpretação da fotografia, cujo caráter polissêmico tem sido ressaltado pelos especialistas. Para fazer das imagens, documentos das Ciências Sociais, há uma certa ‘higienização’ das fotografias e imagens, lançando no limbo da inexatidão, áreas e componentes relevantes da fotografia.

 
Foto: Man Ray

Este autor aponta para o positivismo do pressuposto, uma certa concepção weberiana do típico-ideal agregando-se à concepção sociológica e antropológica da fotografia documental e responde pelo resíduo de imagem e imaginário que pode haver na fotografia vista desta perspectiva: “Justamente nele, no que é desprezado, no que perturba porque discrepa da exatidão analisável, pode estar o segredo da imagem, aquilo que representa justamente a sua relevância sociológica.


Foto: Fred W. Mc Darrah

Segundo ainda Martins, ao se desprezar os imaginários presentes nas imagens, a fotografia documental acaba sendo uma fantasia cartesiana pobre sobre imagem e imaginário. E questiona: O que, de fato, ela documenta? Que Sociologia pode ser feita com base na redução fotográfica? E esclarece que a polissemia da fotografia não decorre apenas das múltiplas leituras que dela possam ser feitas. Ela própria tem uma carga de sobre-significados que a intenção documental do fotógrafo pode anular ou mutilar. E conclui que,

Um certo direcionismo fotográfico, tanto em relação à escolha do tema quanto em relação ao ângulo, à composição e outros recursos fotográficos empregados na concepção da imagem, é inevitável. Mesmo o sociólogo ou antropólogo que documenta fotograficamente, e faz da fotografia o seus instrumento de pesquisa e registro, quando define com objetividade a documentação, cria imagens de ficção, o senso comum e a ficção que podem ficar subjacentes a diferentes momentos e procedimentos das ciências. (2008, p.169)


Foto: Luke Duggleby, Índia.
A própria realidade fotografada, pessoas ou situações, já se constitui em si mesma em um cenário teatral e polissêmico, desde os equipamentos de identificação que as pessoas usam até os arranjos de cenários e paisagens que vão compor a fotografia.

"É proibido fotografar"...

Para Peter Burke, as imagens sempre representam “um ponto de vista”, omitindo ou valorizando determinados aspectos de uma cena, tentando passar uma determinada ideologia, ou usando abertamente uma imagem com o objetivo de propaganda. Não se pode esquecer ainda, as visões estereotipadas do “outro”, ou as convenções visuais de uma determinada cultura. Ou como muito bem definiu o estatuto da imagem, o auto-declarado “fotógrafo sociológico” Lewis Hine: “As fotografias não mentem, mas mentirosos podem fotografar”. 


Referências:

BURKE, Peter- Testemunha Ocular, EDUSC, Bauru, S.P., 2004.
FERRO, Ligia- Ao encontro da Sociologia Visualartigo do Programa Internacional de Doutoramente em Antropologia Urbana, Portugal- 2010.
MARTINS, José de Souza- Sociologia da Imagem e da FotografiaEditora Contexto, S.Paulo,2008.

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Izabel Liviski é fotógrafa e doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisa História da Arte, Literatura e Artes Visuais. Escreve a coluna INcontros desde 2009, e é também co-editora da Revista ContemporArtes.


3 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo artigo, Izabel! Posso compartilhar com minha sobrinha, que fez fotografia no secundário?

Bjs.

Leda.

16 de abril de 2014 às 23:34
Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Excelente artigo, Izabel. Lembrei-me de que, não focando diretamente a fotografia, Adorno e Horkheimer trataram da Cultura como um contexto. Também pensei se seria possível entender a fotografia como parte de um "tema epocal" (como dizia Paulo Freire) ou como a expressão da subjetividade do fotógrafo. De qualquer forma, é um caminho muito rico para a reflexão antropológica e sociológica. Parabéns.

17 de abril de 2014 às 09:14
Anônimo disse...

Gostei muuuito.

bj

17 de abril de 2014 às 11:26

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