terça-feira, 8 de abril de 2014

Ponto final


Levei um bom tempo ignorando seu corpinho magro sobre a escrivaninha, meio que se escondendo entre livros e lápis, ingenuamente refugiado sob as contas do mês (logo elas), tentando se passar por mais uma daquelas canetas que insistem em se perder do estojo. Ficamos quase uma semana nesse escreve-e-apaga: nos fingindo de mortos.

Só que ela estava morta de fato já havia alguns dias, desde que expirou sua última ponta de grafite no meu caderno de anotações bobas. 

Foi tudo muito rápido. Estava eu no sofá, a tevê no mute, o note em descanso de tela. Ruminava umas ideias de lá, mastigava umas palavras de cá, quando a coitada engasgou feio e travou do bico à borrachinha. Ainda a sacudi, dei-lhe uns tapinhas, fiz massagem, troquei o zero-sete, mas nada. Não deu mais sinal de vida.

Senti o baque. Tanto é que não tive coragem de enterrá-la na hora, e ela foi parar na minha mesa, em meio a dezenas de alrafábios (é assim que eu chamo os meus alfarrábios). Ganhou a chance de se despedir de seus fiéis companheiros de escritório e até de alguns desafetos, como a Dona Borracha, de quem invariavelmente divergia.

Vou sentir saudade daquela magrelinha azul. Fez tanta lista de supermercado generosa, com direito a Häagen Dazs e Passatempo recheado. Calculou tanto orçamento de viagem que acabou em retratos felizes. Grifou tanta besteira de rir sozinho no metrô cheio. Deu (algum) sentido a tanto parágrafo-maçaroca. Anotou tanta frase que virou crônica. Disputou tanto jogo da velha. Rascunhou tantos sonhos.

Me ajudou a jamais esquecer o e-mail da minha primeira e única namorada.

Pena eu não poder reunir mais todas as folhas pelas quais ela passou um dia, nas quais rabiscou estórias, guardou segredos, deixou pegadas, sublinhou memórias, tracejou mapas, circulou tesouros – estradas de celulose nas quais riscou versos, sílabas, letras, dúvidas, exclamações, não sei quantas vírgulas de vida.

Só eu mesmo pra arrumar melancolia numa hora dessas.









Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório e tem perfil no Twitter.

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