“O sociólogo me
pede que faça de preferência fotografia documental, que registre o mais
minuciosamente possível os fatos sociais, que faça uma fotografia descritiva,
etnográfica. Mas o fotógrafo se insurge contra essa demanda, prefere os
diálogos com o expressionismo da xilogravura de Oswaldo Goeldi e, por meio dele
com os duplos significados, com as ocultações, com o antietnográfico da demanda
documental, com os sobresignificados das sombras que decodificam o mundo da
luz, que é o mundo da fotografia”. (José de Souza Martins)
No texto de Martins, há pontos de afinidades e divergências entre a Fotografia e a Sociologia. Ambas, ‘produtos’ do século XIX, surgiram marcadas por dois eventos contemporâneos: a publicação do Discours sur l’esprit positif de Auguste Comte em 1844 e a
fotografia em 1839, com a exposição pública de Daguerre sobre o modo de fixar a
imagem em uma placa metálica.
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Daguerreótipo |
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Daguerre, 1826. |
A partir daí, porém, ambas seguiram percursos
distintos, já que a fotografia procurou seu reconhecimento no campo das artes,
e a sociologia trilhou caminhos que a levariam a sua institucionalização como
ciência positiva, com a proposta de elaborar grandes teorias, apoiando-se em
técnicas e metodologias semelhantes às das ciências naturais. Nesse sentido, é
paradigmática a obra de Émile Durkheim.
Durante muito tempo, o estatuto artístico da fotografia foi objeto de discussões polêmicas.
Desde o seu início ela foi negada enquanto arte legitima, mesmo pelos pintores
realistas, relacionando-a, portanto, com a observação racional e com a
‘reprodução direta do natural’. (Baudelaire)
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Baudelaire, o poeta que não compreendeu a fotografia em seus inícios. |
A partir
do momento em que se simplificaram os procedimentos técnicos que permitem a
qualquer indivíduo tirar fotografias, a “aura” que envolvia a fotografia e que
lhe conferiu um caráter elitizado, desapareceu. Começou como meio de
auto-representação, substituindo a pintura de retrato e em pouco tempo
tornou-se uma indústria onipotente e tentacular, devido em grande parte à
expansão de algumas empresas como a Kodak,
que colocou no mercado os mais diversos produtos para a prática fotográfica
a preços acessíveis a uma grande parcela da população.
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Comercial da Kodak |
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Uma das primeiras fotos feitas pela Kodak |
Ela
serviu também como ferramenta de análise social para alguns dos primeiros
fotógrafos que ajudaram a construir sua história, para aqueles que se dedicaram
à explorar temas caros à Sociologia, através de imagens. É o caso de Lee
Frielander e Garry Winogrand que fotografaram os comportamentos no espaço
público, abordando questões da sociologia tratadas nas obras de Georg Simmel e
de Erving Goffman.
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Foto: Lee Friedlander |
A Farm Security Administration (FSA), organismo estatal
norte-americano, financiou alguns trabalhos fotográficos sobre a vida rural,
empregando fotógrafos como Dorothea Lange, Margaret Bourke-White, Russel Lee,
Walker Evans e outros. Esses fotógrafos registraram em suas imagens inúmeros
problemas sociais da sociedade norte-americana.
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Foto: Garry Winogrand |
Lewis
Hine, que se autodeclarava um “fotógrafo sociológico” é representante de uma
geração que viu na fotografia um meio excepcional de intervenção na realidade
social. Hine, retratou as condições de crianças norte-americanas trabalhadoras
em fábricas e minas, e o impacto de suas imagens gerou mudanças legislativas em
relação ao trabalho infantil. Esse fotógrafo também denunciou através de seu
trabalho, o tratamento dado aos imigrantes nos EUA.
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Foto: Dorothea Lange |
Outro
artista que se propôs a realizar um projeto fotográfico de cunho social, foi o
suíço Robert Frank que retratou a sociedade norte-americana através de sua
objetiva, como uma “sociedade fraturada” (“The
Americans”, editado em 1959). Frank viajou por aquele país entre 1955 e 56,
registrando suas mais profundas contradições como as discriminações raciais, as
desigualdades econômicas, contrastando-a com os símbolos do patriotismo
americano. Seu trabalho causou desconforto na sociedade em questão, refletindo
em seu projeto as reflexões dos trabalhos de Margaret Mead, Ruth Benedict e
Tocqueville.
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Foto: Lewis Hine |
Howard
Becker em 1974, inaugurou uma nova metodologia, apontando para diversas formas
de como se olhar o social, uma atitude de interdisciplinaridade tanto por parte
dos sociólogos como dos fotógrafos: os primeiros deveriam conhecer melhor os
documentos sociais dos fotógrafos, aproveitando para usar as técnicas mais
comuns da fotografia nas suas investigações; e os segundos deveriam estudar as
teorias sociológicas para melhor desenvolver seus projetos fotográficos. No
entanto, parece que as preocupações metodológicas de Becker não tiveram a
difusão esperada entre fotógrafos e sociólogos.
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Foto: Robert Frank |
Martins
(2008), se coloca em uma posição antagônica à perspectiva de Becker, que
considera “fortemente positivista”. A fotografia, como método de registro da
informação social e cultural e como recurso de narrativas etnográficas domina o
interesse de sociólogos e antropólogos, mas não se esgotam aí as possibilidades
desse meio como referência sobre a realidade social contemporânea, segundo este
autor.
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Foto: Margaret Bourke-White |
A fotografia chegou à Antropologia e depois à Sociologia como documento
útil a um certo positivismo visual, porque supostamente dotado de uma precisão
informativa de obra de engenharia e da indústria. O que faltou à essas ciências
foi a crítica do conhecimento contido nessa suposição, sobretudo a crítica do
fato de que a sociologia e a fotografia, nascem também, capturadas pela lógica
da produção racional e, portanto, da mera contrapartida e recusa do ilógico produzido no mesmo
processo.
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Foto: José S. Martins |
Ele
propõe que se repense a fotografia na perspectiva da tensão totalizadora que há
na pintura impressionista, em função dos dilemas do uso da fotografia nas
Ciências Sociais. A intenção é sair da “camisa de força positivista” que domina
a Antropologia Visual e a Sociologia Visual.
As
ciências sociais que incorporaram a fotografia ao âmbito dos seus interesses
não se propouseram à superação desse caráter residual da imagem do que para
elas é apenas objeto documentado, sobretudo a imagem fotográfica. Em certas
situações, essa orientação destitui a fotografia de seus conteúdos próprios e
se reduz ao meramente contemplativo e documental, como complemento do
questionário, do formulário, da entrevista ou do diário de campo.
No entanto,
toda fotografia contém um ‘ver a mais’, já que nenhum fotógrafo, mesmo o amador
da fotografia ingênua, é passivo copista do que está fotografando. (2008, p.154)
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Obra de Howard Becker |
Assim
como há um certo arbítrio do fotógrafo ao obter uma imagem, há também por parte
do sociólogo (ou antropólogo), um arbítrio na leitura e interpretação da
fotografia, cujo caráter polissêmico tem sido ressaltado pelos especialistas.
Para fazer das imagens, documentos das Ciências Sociais, há uma certa
‘higienização’ das fotografias e imagens, lançando no limbo da inexatidão,
áreas e componentes relevantes da fotografia.
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Foto: Man Ray |
Este autor aponta para o
positivismo do pressuposto, uma certa concepção weberiana do típico-ideal
agregando-se à concepção sociológica e antropológica da fotografia documental e
responde pelo resíduo de imagem e imaginário que pode haver na fotografia vista
desta perspectiva: “Justamente nele, no que é desprezado, no que perturba
porque discrepa da exatidão analisável, pode estar o segredo da imagem, aquilo
que representa justamente a sua relevância sociológica.
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Foto: Fred W. Mc Darrah |
Segundo
ainda Martins, ao se desprezar os imaginários presentes nas imagens, a
fotografia documental acaba sendo uma fantasia cartesiana pobre sobre imagem e
imaginário. E questiona: O que, de fato, ela documenta? Que Sociologia pode ser
feita com base na redução fotográfica? E esclarece que a polissemia da
fotografia não decorre apenas das múltiplas leituras que dela possam ser
feitas. Ela própria tem uma carga de sobre-significados que a intenção
documental do fotógrafo pode anular ou mutilar. E conclui que,
Um
certo direcionismo fotográfico, tanto em relação à escolha do tema quanto em
relação ao ângulo, à composição e outros recursos fotográficos empregados na
concepção da imagem, é inevitável. Mesmo o sociólogo ou antropólogo que
documenta fotograficamente, e faz da fotografia o seus instrumento de pesquisa
e registro, quando define com objetividade a documentação, cria imagens de
ficção, o senso comum e a ficção que podem ficar subjacentes a diferentes
momentos e procedimentos das ciências. (2008, p.169)
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Foto: Luke Duggleby, Índia. |
A
própria realidade fotografada, pessoas ou situações, já se constitui em si mesma em um cenário teatral e
polissêmico, desde os equipamentos de identificação que as pessoas usam até os
arranjos de cenários e paisagens que vão compor a fotografia.
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"É proibido fotografar"... |
Para Peter Burke, as imagens sempre representam
“um ponto de vista”, omitindo ou valorizando determinados aspectos de uma cena,
tentando passar uma determinada ideologia, ou usando abertamente uma imagem com
o objetivo de propaganda. Não se pode esquecer ainda, as visões estereotipadas
do “outro”, ou as convenções visuais de uma determinada cultura. Ou como muito
bem definiu o estatuto da imagem, o auto-declarado “fotógrafo sociológico”
Lewis Hine: “As fotografias não mentem, mas mentirosos podem fotografar”.
Referências:
BURKE, Peter- Testemunha
Ocular, EDUSC, Bauru, S.P., 2004.
FERRO, Ligia- Ao encontro da Sociologia Visual, artigo
do Programa Internacional de Doutoramente em Antropologia Urbana, Portugal-
2010.
MARTINS, José de Souza- Sociologia da Imagem e da Fotografia, Editora Contexto, S.Paulo,2008.
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Izabel Liviski é fotógrafa e doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisa História da Arte, Literatura e Artes Visuais. Escreve a coluna INcontros desde 2009, e é também co-editora da Revista ContemporArtes.
3 comentários:
Parabéns pelo artigo, Izabel! Posso compartilhar com minha sobrinha, que fez fotografia no secundário?
16 de abril de 2014 às 23:34Bjs.
Leda.
Excelente artigo, Izabel. Lembrei-me de que, não focando diretamente a fotografia, Adorno e Horkheimer trataram da Cultura como um contexto. Também pensei se seria possível entender a fotografia como parte de um "tema epocal" (como dizia Paulo Freire) ou como a expressão da subjetividade do fotógrafo. De qualquer forma, é um caminho muito rico para a reflexão antropológica e sociológica. Parabéns.
17 de abril de 2014 às 09:14Gostei muuuito.
17 de abril de 2014 às 11:26bj
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