sexta-feira, 30 de maio de 2014

Estradas que conduzem para dentro, para fora: a escritora Beat Hettie Jones.





                                                                            I am not by nature obedient.
                                                                                                 - Hettie Jones.
     
Ao ler as memórias da escritora nova-iorquina Hettie Jones, “How I Became Hettie Jones” – uma narrativa sobre sua participação em um movimento cultural e artístico que emerge nos anos 50 nos EUA – me impressiona, mais uma vez, a coragem das mulheres pioneiras que, cada uma do seu jeito, desafiavam ao mesmo tempo os valores políticos da América da guerra fria e as normas que agiam pesadamente sobre a vida dos membros do ‘segundo sexo’.  Embora na época muitas filhas de classe média tivessem acesso ao ensino superior ou acesso ao mercado de trabalho, prevalecia, para elas, a expectativa de uma vida doméstica:  casamento, filhos, muitos anos dedicados ao cuidado (privatizado) de outros.   As estradas para fora continuavam, para elas, relativamente bloqueadas. 



 

Hettie  (nascida em  NYC, 1934),  foi uma das que nunca se identificou com o roteiro pré-definido para as jovens da sua camada social, associando-se, em lugar disso, a uma outra rota cultural norte-americana – mais tranquilamente assumido por homens - de busca existencial, de trilhar um caminho próprio.  Para as mulheres questionadoras e independentes se impunha, mais do que reprovação aberta, uma complexa espécie de ambivalência. O que se podia ser e fazer, sendo mulher?  Hettie, que desafiou também as fronteiras raciais da sociedade norte-americana namorando (e posteriormente, casando e tendo duas filhas) com um jovem poeta negro, LeRoi Jones (Amiri Baraka) – aliás, o único poeta negro do grupo Beat nesse momento-  vinha de uma família judia  retratada por ela como convencional. Foi assim que, nesse momento crítico da vida em que uma jovem  olha ao seu redor para ver se encontra em quem se espelhar -  ou de quais modelos de vida se afastar - ela se comparava não só com seus pais senão com outras pessoas de sua geração, como sua própria irmã: casada, mãe de dois filhos, vivendo nos subúrbios, vivendo para os outros, talvez sem sequer saber porquê.  Hettie, por seu lado, disse que nunca se imaginava vivendo aquele roteiro convencional.  I never had ‘normal” fifites plans –they seemed preposterous”, explicava.  Não lhe cabia esse modo de vida. Lhe parecia absurdo


Hettie cultivava um sentimento de ser, e  de querer o diferente, mesmo quando ainda não podia imaginar que forma ou rumo tomaria.  Relata, por exemplo, como no final dos anos 50, ela curtia caminhadas solitárias pelas ruas de Nova Iorque nas primeiras horas da madrugada, coisa evidentemente tão estranho para uma mulher jovem de classe média que, ela lembra, até uma viatura da polícia parou uma vez bem perto dela, o policial curioso ou preocupado perguntando para ela se sabia “para onde ia”:

  “ ‘Sure’, I said, smiling at the irony, since I was only where I was because I  wasn’t sure at all.  But the idea , as I saw it, was to ease the possible past the expected, and in this eerie solitude while the rest of the world was home in bed, I’d feel closer to the edge, the spillover point that might push out something, make the coming move clear. What should I do now to make myself happen? What’s next?”  (p. 27)


    Imagem:  Maurício Vieira.


Mais tarde, mesmo assumindo por um tempo, o papel de “esposa de escritor Beat”, não deixava de questionar esse lugar que tinha vindo a ocupar.  Sofria de insegurança em relação aos seus próprios talentos literários e artísticos, e tinha duas filhas para criar.  Mas escrevia, trabalhava para manter a família, e nunca deixou de procurar seu lugar nessa comunidade boêmia de artistas, ativistas e intelectuais que teve um papel de ponta na elaboração de novas agendas culturais e políticas.

Hettie, como suas colegas Joyce Johnson e Diane di Prima (às quais já dediquei um pouco de espaço, aqui nesta coluna, em datas anteriores),  acompanhou a passagem do Beat para a contracultura, o surgimento do feminismo da 'segunda onda' e todas as dificuldades que vieram depois, criando filhas e projetos num mundo que seguiu, ao redor dela, tristes e contraditórios rumos, nos quais os valores conservadores voltavam a ganhar terreno. Mas Hettie continuou sua trajetória, como escritora, feminista, professora, mãe e incansável lutadora por um mundo melhor.  Hoje, autora de uma quantidade de livros – desde poesia e literatura infanto-juvenil até a co-autoria de memórias de Rita Marley, viúva do grande cantor jamaicano Bob Marley – trabalha com oficinas e cursos de criação literária, não só no prestigioso New School senão em um programa para mulheres presas (New York State Correctional Facility for Women,  Bedford Hills.)

Poema (sem título)

No ônibus
entre Newark e Nova Iorque
o bebê vomita
na gola de pele
do seu único casaco de inverno

Ela limpa a gola
e o rosto macio do nenêm
em seguida toma a pequena
pela mão
e pegam rumo ao metrô

onde a pequena dorme
sobre seu joelho
e ela
              mesma
fixa o olhar
pela janela
por cima da cabeça
da pequena que dorme
Ela tem 27 anos
e está muito cansada
                      Me deixe sempre
apoiá-la
                    Tendo sido ela,

tornar-me amiga dela.

[ de autoria da Hettie Jones,  traduzido por Miriam Adelman]




Referência:

Jones, Hettie.  How I Became Hettie Jones.   New York:  Grove Press. 1990.


Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Janaina Ina.


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