Estradas que conduzem para dentro, para fora: a escritora Beat Hettie Jones.
I am not by nature obedient.
-
Hettie Jones.
Ao ler as memórias da escritora nova-iorquina Hettie
Jones, “How I Became Hettie Jones” – uma narrativa sobre sua participação em um
movimento cultural e artístico que emerge nos anos 50 nos EUA – me impressiona, mais
uma vez, a coragem das mulheres pioneiras que, cada uma do seu jeito,
desafiavam ao mesmo tempo os valores políticos da América da guerra fria e as
normas que agiam pesadamente sobre a vida dos membros do ‘segundo sexo’. Embora na época muitas
filhas de classe média tivessem acesso ao ensino superior ou acesso ao mercado
de trabalho, prevalecia, para elas, a expectativa de uma vida doméstica: casamento, filhos, muitos anos dedicados ao
cuidado (privatizado) de outros. As estradas para fora continuavam, para elas, relativamente bloqueadas.
Hettie (nascida em
NYC, 1934), foi uma das que nunca se identificou com o
roteiro pré-definido para as jovens da sua camada social, associando-se, em lugar disso, a uma outra rota cultural norte-americana –
mais tranquilamente assumido por homens - de busca existencial, de trilhar um
caminho próprio. Para as mulheres
questionadoras e independentes se impunha, mais do que
reprovação aberta, uma complexa espécie de ambivalência. O que se podia ser e
fazer, sendo mulher? Hettie, que
desafiou também as fronteiras raciais da sociedade norte-americana namorando (e
posteriormente, casando e tendo duas filhas) com um jovem poeta negro, LeRoi
Jones (Amiri Baraka) – aliás, o único poeta negro do grupo Beat nesse momento- vinha de uma família judia retratada por ela como
convencional. Foi assim que, nesse momento crítico da vida em que uma jovem olha ao seu redor para ver se encontra em quem se espelhar - ou de quais modelos de vida se afastar - ela se
comparava não só com seus pais senão com outras pessoas de sua geração, como
sua própria irmã: casada, mãe de dois filhos, vivendo nos subúrbios, vivendo
para os outros, talvez sem sequer saber porquê.
Hettie, por seu lado, disse que nunca se imaginava vivendo aquele roteiro
convencional. “ I never had ‘normal” fifites plans –they seemed preposterous”,
explicava. Não lhe cabia esse modo de vida. Lhe parecia
absurdo
Hettie cultivava
um sentimento de ser, e de querer o
diferente, mesmo quando ainda não podia imaginar que forma ou rumo tomaria. Relata, por exemplo, como no final dos anos
50, ela curtia caminhadas solitárias pelas ruas de Nova Iorque nas primeiras
horas da madrugada, coisa evidentemente tão estranho para uma mulher jovem de
classe média que, ela lembra, até uma viatura da polícia parou uma vez bem perto dela, o
policial curioso ou preocupado perguntando para ela se sabia “para onde ia”:
“ ‘Sure’,
I said, smiling at the irony, since I was only where I was because I wasn’t sure at all. But the
idea , as I saw it, was to ease the possible past the expected, and in this
eerie solitude while the rest of the world was home in bed, I’d feel closer to
the edge, the spillover point that might push out something, make the coming
move clear. What should I do now to make myself happen? What’s next?” (p. 27)
Imagem: Maurício Vieira.
Mais tarde, mesmo assumindo por um tempo, o papel de “esposa de
escritor Beat”, não deixava de questionar esse lugar que tinha vindo a
ocupar. Sofria de insegurança em relação
aos seus próprios talentos literários e artísticos, e tinha duas filhas para
criar. Mas escrevia, trabalhava para
manter a família, e nunca deixou de procurar seu lugar nessa comunidade boêmia
de artistas, ativistas e intelectuais que teve um papel de ponta na elaboração
de novas agendas culturais e políticas.
Hettie, como suas colegas Joyce Johnson e Diane di
Prima (às quais já dediquei um pouco de espaço, aqui nesta coluna, em datas anteriores), acompanhou a passagem do Beat para a
contracultura, o surgimento do feminismo da 'segunda onda' e todas as
dificuldades que vieram depois, criando filhas e projetos num mundo que seguiu,
ao redor dela, tristes e contraditórios rumos, nos quais os valores conservadores
voltavam a ganhar terreno. Mas Hettie continuou sua trajetória, como escritora,
feminista, professora, mãe e incansável lutadora por um mundo melhor. Hoje, autora de uma quantidade de livros –
desde poesia e literatura infanto-juvenil até a co-autoria de memórias de Rita
Marley, viúva do grande cantor jamaicano Bob Marley – trabalha com oficinas e cursos
de criação literária, não só no prestigioso New School senão em um programa
para mulheres presas (New York State
Correctional Facility for Women, Bedford Hills.)
Poema (sem título)
No ônibus
entre
Newark e Nova Iorque
o bebê
vomita
na gola
de pele
do seu
único casaco de inverno
Ela limpa
a gola
e o rosto
macio do nenêm
em
seguida toma a pequena
pela mão
e pegam
rumo ao metrô
onde a
pequena dorme
sobre seu
joelho
e ela
mesma
fixa o
olhar
pela
janela
por cima
da cabeça
da
pequena que dorme
Ela tem
27 anos
e está
muito cansada
Me deixe
sempre
apoiá-la
Tendo sido ela,
tornar-me
amiga dela.
[ de autoria da Hettie Jones, traduzido por Miriam Adelman]
Referência:
Jones, Hettie. How I Became Hettie Jones. New York:
Grove Press. 1990.
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, morou
dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.
Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de
Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem: Janaina Ina.
Imagem: Janaina Ina.
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