sexta-feira, 16 de maio de 2014

Nos bastidores? Joyce Johnson, escritora do círculo Beat (Corajosas da estrada III)

























 

 ...o fervor da Geração Beat surgiu da repressão e do consumerismo exuberante da sociedade dos anos 50. Mas o que faziam as mulheres enquanto homens como Ginsberg, Kerouac, Burroughs e, posteriormente,  Gregory Corso, Peter Orlovsky, Michael Mc Clure, Gary Snyder quebravam todos as regras literárias e societárias para uivar sua visão ao mundo? Que lugar tinha nisso as mulheres? Elas podiam ter um lugar?

                    Jennifer Love, inNo Girls Allowed: Women Poets and the Beat

                      Generation.







As mulheres, nas décadas de 1940 e 1950,  continuavam verdadeirasoutsidersdas instituições acadêmicas e literárias. Talvez nada mostre isto tão claramente quanto a história da escritora e poeta Sylvia Plath, cuja vida ilustra a trágica luta de uma mulher brilhante que - apenas uma década antes do começo de uma revolução na relação entre as mulheres e a produção cultural nasdemocracias ocidentais” - ainda não conseguia seu devido reconhecimento e espaço de atuação nas instituições literárias.  No círculo Beat – uma espécie de avant garde que surgiu no pós-guerra norte-americano, caracterizado tanto pelas atitudes rebeldes de seus membros quanto pela forte inovação formal e temática de suas obras - a circunscrição das mulheres aos bastidores, ao mundo doméstico e às tarefas deapoiodos grandes escritoresdo movimento, em grande parte se reproduzia. Elas se identificavam com as inquietações exprimidas pelos homens, relativas ao caráter opressor da sociedade norte-americana da época, ao mesmo tempo que intuíam haver um “algo a mais” a protestar, desde sua posição no “segundo sexo”.  Assim, à visão de uma nova Boemia que se oferecia faltavam instrumentos epistemológicos para captar os elementos que as afetavam especificamente, sendo mulheres.  Nas palavras de uma estudiosa: “Assim as mulheres Beat não só tinham que se fazer contra os papéis que a cultura dominante esperava deles, mas ao juntar-se aos Beats, se encontrariam de novo cara a cara com papéis de gênero prescritos. Notados por suas interpretações sexistas das mulheres, os Beats relegavam as mulheres ao papel de servidora sexual, musa ou mãe; não as elevavam a uma posição de artistas de qualidade.” (Love, p.8, tradução minha) 
   
Joyce Johnson (nascida em NYC, 1935), escritora associado aos Beats  que desde cedo obteve um certo reconhecimento fora do círculo ao publicar o romance  Come Join the Dance (e seguindo depois uma longa carreira literária) evoca esta difícil inserção na conclusão de seu livro de memórias, de título bastante significativoMinor Characters [Personagens Menores] :


Eu vejo a garota Joyce Glassman, vinte e dois anos, com o cabelo comprido passando dos seus ombros, vestida tudo de preto como Masha no livro O Gaivotameia calça preta, camisa preta, blusa preta- mas a diferença da Masha, ela não está de luto por sua vida. Nem poderia,  nessa cadeira na mesa no exato centro do universo, este lugar de meia noite onde tanta coisa converge, o único lugar na América que está vivo.  Como fêmea, não pertence completamente a esta convergência. Um fato que ela ignora, sentada na sua excitação enquanto as vozes dos homens, sempre dos homens, sobem e descem de tom apaixonadamente, e seus copos de cerveja acumulam  a fumaça dos seus cigarros sobem rumo ao teto e seguramente a cultura morta está despertando. Simplesmente estar nesse lugar, isso em si - ela o diz a se mesma- é suficiente (tradução minha).  

                                                             Imagem:  Maurício Vieira.

Ainda muito jovem, no ano 1957, Joyce conheceu Jack Keroauc, e começaram um caso de amor: andando juntos pelos circuitos de uma boemia artística e literária nova-iorquina, compartilhando inquietações existências, prazeres e dificuldades.  Johnson (que naqueles tempos usava o sobrenome da sua família de origem, Glassman) era de fato muito apaixonado por Jack, 13 anos mais velho do que ela, muito mais experiente no amor, já veterano de casamentos e ligações diversas (algumas relatadas noutras memórias de mulheres do círculo, como por exemplo nas memórias de Carolyn Cassady, com o apto título Off the Road). O compromisso afetivo amoroso da parte dele – que ela confessa ter almejado, mas em termos mais realistas, não esperava -  não veio.  Assim, seguir em frente com sua própria vida, conhecer outras pessoas e outras possibilidades, pode não ter sido fácil, mas era um caminho lógico, viável, chamativo.  Das suas memórias (Johnson, op.cit.) emerge o retrato de uma jovem que se guiava por impulso criativo próprio. Nas suas palavras:



No final dos anos 1950, mulheres jovens – poucas, no início – mais uma vez saiam de casa com uma certa violência. Elas também vinham de boas famílias, e seus pais nunca conseguiram entender como as filhas que eles tinham criado com tanta dedicação poderiam escolher uma vida precária. Se esperava de uma filha que ela ficasse sob o teto dos pais até casar, mesmo se trabalhasse um ano, mais ou menos, adquirindo assim um pouco de gosto pelo mundo - mas não muito! Experiência, aventura – estas coisas não eram para mulheres jovens. Todo mundo sabia que as aproximariam do sexo. Sexo era para os homens. Para as mulheres, sexo era tão perigoso quanto a roleta russa; uma gravidez indesejada ameaçava a vida em mais de um sentido. Quanto à arte – as jovens estilosas tinham um lugar como musas e admiradoras.

As que entre nós empreendíamos o voo para fora não achávamos modelos utilizáveis para aquilo que fazíamos. Não queríamos ser nossas mães ou professoras solteironas ou mulheres profissionais duronas como elas eram retratadas na tela. E ninguém tinha nos ensinado como ser escritoras ou artistas. Sabíamos um pouco sobre Virginia Woolf mas não a achávamos relevante. Os privilégios que ela tinha nos desencorajavam, nascida como era num meio literário, e de conexões e riqueza. O “teto todo seu” do qual ela escrevia pressuponha que seu habitante tivesse uma pequena renda familiar. Com nossos cursos superiores, a gente poderia datilografar até fazer uns $50 dólares por semana - apenas o suficiente para comer e pagar o aluguel para um pequeno apartamento em Greenwich Village ou North Beach, sobrando pouco para sapatos ou pagar a conta de luz. Nada sabíamos sobre a romancista Jean Rhys, quem numa época anterior também tinha fugido da respeitabilidade, boiando perigosamente na Boemia Parisiense da década de 1920. Talvez tivéssemos nos identificado com sua falta de confiança naquilo que escrevia ou tomássemos como uma alerta a passividade corrosiva das suas relações com os homens. Mesmo assim, nenhuma alerta teria nos parado, com toda essa fome que tínhamos de abraçar a vida e tudo que fazia parte da realidade. A própria dureza da vida era algo para saborear.

Naturalmente, nos apaixonávamos por homens que eram rebeldes. Caíamos muito rapidamente, acreditando que nos levariam junto nas suas viagens e aventuras. Não esperávamos ser rebeldes por conta própria; não contávamos com a solidão. Uma vez que encontrávamos nossos parceiros masculinos, uma fé cega nos impedia de desafiar as antigas regras do masculino e feminino. Éramos muito jovens e tínhamos dado um passo maior do que a perna. Mas sabíamos que tínhamos feito algo que exigia coragem, algo quase inédito. Éramos as que ousaram sair de casa."  (tradução minha )


                                          Imagem:  Maurício Vieira.


O que a liberdade significava para Joyce e seus pares teria, então, uma profunda dimensão de gênero, tanto no sentido subjetivo individual quanto no sentido coletivo. Exigia das mulheres uma coragem e um esforço particulares. E elas souberam estar às alturas.  Procuraram formas de vida que as permitiriam construir projetos criativos pessoais e ao mesmo tempo, experimentar – e construir- novas formas de sociabilidade não atreladas ao casamento e à família nuclear. Assumiram desafios como se jogar no desconhecido, mergulhar-se em culturas diferentes e empreender críticas – com seriedade, reflexividade e senso de humor – ao American Way of Life, em tempos em que não conformidade a normas e regras hegemônicas podia ser duramente punida. A maior mobilidade geográfica – isto é, liberdade de movimento em um dos sentidos mais prezados pelos homens Beats- pode ter sido um privilégio cultural masculino, mas certas jovens não se detinham-  ao transpassar as fronteiras entre norte e sul, leste e oeste, oriente e ocidente, vivendo – geralmente assumindo a pobreza material, na França, no México ou na Índia. Exemplo disto foi a Brenda Frazer, de quem falei no meu último texto neste site (Coluna Planetário, 03/05/2014).  Embora Johnson não tenha sido uma das que, na sua própria vida, empreendeu estas viagens -  tanto ela quanto Hettie Jones, de quem escreverei proximamente, tinham um vínculo muito forte com a cidade de Nova Iorque – pode ser considerado emblemático que ela finalize Come Join the Dance (escrito em... e pronunciado o primeiro romance Beat escrito por uma mulher) com a ida da protagonista para Paris, deixando para atrás pessoas e circunstâncias que ainda a seguravam.  Aliás, este romance, há décadas  esgotado e quase impossível de encontrar, está sendo relançado nestes dias nos Estados Unidos. Meu exemplar já está a caminho!
                                              Imagem:  Miriam Adelman

Referências.

CASSADY, Carolyn. Off the Road:  Twenty Years with Cassady, Kerouac & Ginsberg. Woodstock/New York:  Overlook Press. 2008.

JOHNSON, Joyce. Come and Join the Dance. Open Road Media, 2014.

JOHNSON, Joyce.  Minor Characters: a Beat Memoir. New York: Penguin, 1999

KEROUAC, Jack and Johnson, Joyce. Door Wide Open. New York:Penguin, 2000.

LOVE, Jennifer.No girls allowed: women poets and the Beat generation. 6/1/2001.


 
  Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal,
Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Janaina Ina.

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