terça-feira, 10 de junho de 2014

A poeta como A emancipação: Desmemórias do século XX


O homem público tem sido um ser de importância extrema para a história, desempenhando funções imprescindíveis para a sociedade. A condição da Mulher pública em quase todo tempo: PUTA... O homem vadio: preguiçoso que não faz nada da vida, mulher vadia: PUTA. Homem puto: nervoso, irritado. Mulher puta: PUTA,  MESMO. Atirado: disponível. Atirada: PUTA. Um qualquer: fulano, beltrano... Uma qualquer: PUTA.
A partir destes antagonismos totalmente extraídos da realidade, da própria língua viva, podemos entrar um pouco mais neste caldeirão que é o patriarcado, o direito do pai. Segundo pesquisas, advém do início do que podemos denominar riqueza, e desde então se mantém edificado num grande ferro secular que foi, e ainda é introduzido na boca das mulheres, calando-as, subjugando-as, impedindo de fluir seu desenvolvimento pleno.
A história das mulheres é recente, visto que esta História como matéria científica nasceu no século XIX, escrita eminentemente pelos homens. Como história universal é banhada com princípios machistas e homofóbicos. As mulheres viviam a margem desta representação - não eram colocadas como sujeitos, já que este patamar era conveniente apenas aos machos, que vislumbraram privilégios – elas, as sujeitadas. Ao descreverem as mulheres e serem seus porta-vozes, os historiadores as deixaram nas sombras dos seus lares, tornando-as invisíveis como indivíduos e sem significado social. Responsáveis por esta construção de conceitos e da História, os homens deixaram bem demarcada a importância e a diferença de cada sexo, utilizando esta hierarquia como arma primordial para a desigualdade. Mas havia uma neutralidade em relação ao sexo, pois falar em humanidade é falar em Homem. O homem sempre teve espaço para seu afloramento, onde caberia a mulher levantar como ser autônomo no meio de tanta dominação?
A maneira de denominar as mulheres como seres menores nasceu na Grécia, onde eram excluídas do conhecimento, da vida pública e de outros afazeres muito agraciados naquela sociedade. Este movimento desempenhou um processo milenar de submissão e desconforto até os dias de hoje.
Trazemos uma historieta de Eduardo Galeano (sendo homem não compreenderá nunca a condição desta transformação, mas como historiador retrata a condição d(a)os oprimid(a)os Latin(a)o-american(a)os sobre a mudança do Matriarcado para o Patriarcado
"En épocas remotas la mujeres se sentaban em la proa de la canoa y los hombres em la popa. Eran las mujeres quienes cazaban y pescaban. Ellas salian de las aladeias y resolvian cuando podiam o querian. Los hombres montaban las chozas, preparabam la comida, mantenian encendida las fogatas contra el frio, cuidabam a los hijos y curtian las pieles de abrigo.
Asi era la vida entre los índios onas y los yaganes em la tierra do fuego, hasta que um dia los hombres mataram a toda las mujeres y puseron la márcaras que las mujeres habían inentado para darles terror.
Solamente las ninas recién nascidas se salvaron del extermínio. Mientras ellas crescian, los asininos les decian y repetian que servir los hombres era su destino. Ellas lo creyeron sus hijas y hija de sus hijas. (Mulheres)
Este conto nos mostra como o discurso pesou no fortalecimento esta inversão entre a matriarcado para o patriarcado, e nos exemplifica de uma maneira mitológica esta passagem. O patriarcado triunfa, como nos mostra Galeano, e sentimos na pele seus resultados.
Este poder foi legitimado e como prova desenvolveu esta imensa desigualdade na qual temos por convicção  desconstruir entre mulheres e homens, para uma nova sociabilidade.
Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não  foram terminadas, mas que elas estão sempre mudando - afinam ou desafinam." Guimarães Rosa

Stella Leonardos da Silva Lima Cabassa


É carioca nascida em 1923. Publicou seu primeiro livro de poesia em 1941 chamado Passos na Areia. Stella foi uma grande teatróloga brasileira, além de desenvolver trabalhos como tradutora. Poliglota, brincava com o catalão, espanhol, francês, inglês, italiano e provençal. No período de 1948 a 1961 publicou os romances “Quando os Cafezais Florescem” e “Estátua de Sal”. Em 1957 recebeu o Prêmio Olavo Bilac de Poesia, pelo livro Poesia em 3 Tempos, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Nos anos seguintes produziu literatura infantil em prosa e verso, além de peças teatrais infantis, tendo mais de 70 livros publicados. Sua extensa obra poética filia-se à terceira geração do Modernismo e inclui os premiados livros: Geolírica. 



ALGO PEÇO? ou me pertence?
Contudo a tudo pertenço
— às águas, árvores, astros
e acima de tudo às asas

das cantigas que amanheçam.
Vai, meu coração de pássaro,
sofrendo por lá num "tremolo".
Talvez tuas penas caiam

nas cordas manhãs de essência
e acordem pássaros trêmulos
no coração de outras penas.

Quem sabe se alando acordes
e cantos amanhecência
de pássaros cantos novos?

Com toda força a quem pertence esta incrível voz poética, um pertencimento ao todo, a natureza a sociedade, exalta cantos novos, nesta necessidades de aprofundamento da essência. Por mais que seu coração seja de pássaro, portanto frágil, exalta cantos novos“alando acordes e cantos de amanhecência...”

OS VISIONADOS

                   Havia um vento vagando
                            pela Minas do Ouro antanha.
                 
                   Havia um vento vagando
                            sobre congonhas-do-campo.

                   Havia um vento soprando:
                            Aleijadinho, vem, anda!

                   Agora — fardo patético
                   largado num catre a um canto —
                   a Bíblia lhe cai das mãos
                   mais pesadas do que pedras.

                            A janela bate, aberta
                            — alguém no vento chamando? —
                            e o vento que vem penetra,
                            e na viração frenética
                            revira páginas santas.

                   Transido de frio e espanto
                   o Aleijadinho estremece:
                   há um latim que vocifera
                   de algum Testamento. O Velho?

                            Apóstrofes desencantam-se.
                            E maldições se exacerbam.
                            Velhos versículos cantam.
                            Livram-se letras e inscrevem
                            cartelas de imagens pétreas.

                   O de ante visão desvela-se?

                   Ecoa, nítido, o transe:

                            — De pedra! Serão de pedra.
                            Doze estátuas de Profetas.
                            Pedra tenra. Quase humana:
                            algo assim feito estas mãos
                            que foram virando pedra.

                   O vento, ouvindo, se amaina.

                            E eles vêm, eles vêm, os visionados.

                            De sarças inflamadas se ressarcem.
                            De verbo iluminado se afogueiam.
                            As barbas de sargaços e serpentes,
                            as falas de sarmento de uvas bravas,
                            as vozes de uivo amargo nas areias.

                            Eles vêm devagar. Visões sombrias.

                            Invisíveis ainda aos que os carregam
                            da pedreira azulada, eles vêm vindo.

                            E em blocos de esteatita se projetam.    

                            E anos vígeis esculpem-lhes vigílias.

                            E seus olhos de pedra vão se abrindo.

                            E seus lábios de pedra se descerram.

                            E seus rostos de pedra vitalizam-se.

                            E seus trajes de pedra se despregam.

                            E seus gestos de pedra se reavivam.

                            E nos corpos de pedra, menos pedra,
                            são vividos profetas que se inspiram.

                   Havia um vento chamando:
                   Aleijadinho! ... chamando.

                   E ei-lo que se ergue dos séculos
                   — nos Passos madeiroeternos —
                   da Minas do Ouro e montanhas.

                            Ei-lo nos doze Profetas
                            da pedra cantar eterno
                            põe o vento cismando

 Neste poema histórico, Stella nos monta uma encruzilhada de pedra da igreja, dando vida a um dos nossos maiores escultores, que trabalhou na antiga Vila Rica (hoje correspondente à cidade de Ouro Preto), construindo o patrimônio Barroco mineiro. O papel da igreja interioriza as pedras nas cabeças das pessoas. Obcecado pelo trabalho, Aleijadinho contraiu hanseníase e exerceu sua profissão até os últimos momentos, mesmo com a doença se alastrando e danificando sua mais preciosa ferramenta de expressão: as mãos.


 — De pedra! Serão de pedra.

                            Doze estátuas de Profetas.
                            Pedra tenra. Quase humana:
                            algo assim feito estas mãos
                            que foram virando pedra.

Com mais de 70 livros publicados, com uma obra gigantesca, não se ouve seu nome em parte alguma. Nem os maiores escritores possuem uma vasta obra como de Sttela, entretanto suas obras estão intocadas aos olhos brasileiros.


Maria José de Carvalho


Nascida em São Paulo em 1918,  figura excepcional em contribuições intelectuais e artísticas, dedicou-se a muitas modalidades do conhecimento. Musicista de formação, concluiu os cursos de piano, canto e violino em 1938. Em 1940 formou-se em História e Geografia pela Universidade de São Paulo. Poeta concretista, atriz, cantora e diretora de teatro, manejava seis línguas e trabalhou como tradutora.

Recentemente, Álvaro Machado e Antônio Carlos Abdalla publicaram na revista Ópera uma matéria sobre a autora, com detalhes apaixonantes da carreira e peripécias de sua vida.


“A ‘neurose’ contra a qual sempre lutou – e à qual chamava ‘praça pútrida’ e ‘poço de solidão’ – era uma dura provação para seus nervos e seu coração atingiu um limite. Raramente se viu neurose mais produtiva. Sustentada por cultura profunda, vontade e sensibilidade incomuns, essa descendente de comerciantes portugueses de Coimbra, criada no histórico bairro paulistano do Ipiranga, alimentou, durante décadas, uma ‘persona’ de temperamento imprevisível e irascível. Verdadeira ‘caixa de Pandora’ das relações humanas, o contato pessoal com Mariajosé reservava delícias e tormentos inolvidáveis”.

o iniciado
que nome te dar

na faca e no gume
na lima e no lume
na lama dos limos
na lança no laço
na trança no traço
na trama dos limbos

que névoa te envolve
                   e densa
turva
teu sacro perfil
se destravando
                        a treva
emerso a iluminaste
e
na dança do templo
que o corpo enlaça
a pupila embaça
o passo trava
e o sangue desata
em salva de prata
contido o lábio
na doce taça

que nome te dar

que medo te impele
que tolhida asa
o vôo te impede
que secreta chaga
de ferida pluma
te enluta o âmago

e que maga imagem
te dispara a seta
que o peito afeta
em bruma
               e arfagem
ó
iniciado

que êxtase
nos espera
que ardente
dardo
através da estirpe
         de transe
           e treva
           a dor
              extirpa
           o ir
           é nosso rio
         ao bramir
         do touro
           o ouro
          de teu corpo
                           ao sol
o manso bezerro
o túrgido úbere
a plúmbea ave
o fruto maduro
lança e raiz
o chão e o sal
tua urdidura são
ao sol posto
evocamos
             a chaga
que a taça embaça
e o violáceo laço
de obscura trama
nesta agosto
                 deposto
nos envolve o rosto
                   a palavra
                   o chá

Infelizmente, mais uma grande autora que não temos acesso A fortuna crítica, nem tampouco a sua obra. Tiramos estas poesia da plataforma de Antônio Miranda, não há vestígios dos seus versos em canto algum. Mais uma mulher esquecida.

que ânsia imemorial atrai os corpos
de ambarina e amavios impregnados
ossos tendões e carne e sangue nervos?
que impacto os enlouquece tange anula?
que plectro ou lançadeira ou sábia lâmina?
e exangues ao cansaço os abandona?
phallus vulva os seios mãos e boca
e a pele esse tecido permeável
são instrumentos de urdir tecer
e a estrutura imantada aniquilada
é deliquo amplo vôo queda a pique
num abismo do fogo gelo e nada


Gilka Machado

Gilka da Costa de Mello Machado nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de março de 1893. Vinda de uma família de artistas e jornalistas - a mãe Thereza Christina Moniz da Costa era atriz de teatro e rádio-teatro. Em 1910, se casa com o poeta, jornalista e crítico de arte Rodolfo Machado, que morreria dali a treze anos, deixando-a com dois filhos: Heros e Hélios (aquela seria uma bailarina consagrada e pesquisadora das danças nativas brasileiras).  Possuía também em sua família poetas e músicos famosos. Mas a vida de Gilka não foi fácil. Trabalhou na companhia Ferro Central do Brasil, com um magro salário. Estreou nas letras vencendo um concurso literário do jornal A Imprensa, dirigido por José Patrocínio Filho. Na época houve uma reprova sobre o prêmio por ter seu trabalho tachado como “próprio de uma matrona imoral”. Os críticos mais novos, no entanto, reconheceram a importância de sua proposta, que reivindicava a libertação dos sentidos e dos instintos.

Lépida e leve

em teu labor que, de expressões à míngua,
O verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em seu labor,
gostos de afagos de sabor.

És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesmo acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.

Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!

— Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
— Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação,
és o elástico da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
— Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me veste quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...
  
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inféria e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...

Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...

Gilka Machado, como se vê no poema acima, era mulher a frente de seu tempo. Seu trabalho acurado de imagens corre como sangue quente nas veias, viaja pelos sentidos considerados sórdidos e inapropriados para a fêmea, e é da dor desta que nasce das cinzas uma mulher ousada, despudorada, caminhando pelo erotismo. Invoca o sensorial e traz à luz o desejo e a lascívia tão condenados. Numa sociedade onde os braços a mostra causam espanto, usar termos como “língua-cocaína”mostra a força de seu uivo por liberdade. Partcipou de movimentos em defesa dos direitos das mulheres. Fez parte do grupo da professora Leonilda Daltro que fundou que fundou em Dezembro de 1910 o Partido Republicano Feminino, do qual foi segunda secretária.

SER MULHER
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Fala de sua condição. Abre, escancara ao mundo e não aceita o chão que pisa, a coração que lhe querem. Este poema é de seu primeiro livro de poesia “Cristais Partidos”. O fino que se parte é a fragilidade débil que não quer. Foi publicada em 1932 em Cochabamba, Bolívia, a antologia “Sonetos y Poemas de Gilka Machado”. Ela recebeu o prêmio de “A maior poetisa do Brasil” em 1933, pela revista O Malho, além também do “Machado de Assis”, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1979, mesmo ano em que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro presta homenagem à mulher brasileira na pessoa da poeta. É publicada na Antologia dos poetas brasileiros, organizada pelo também poeta Manuel Bandeira e é objeto de estudo de alguns autores que se debruçam sobre o gênero poético (ainda muito aquém do que se espera diante de tamanho expoente em nossa literatura).

A QUE BUSCAS EM MIM... (Em Meu Glorioso Pecado)

A que buscas em mim, que vive em meio
de nós, e nos vai unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio,
trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou... Mas teu anseio
fora possuí-la – e espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio,
essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes
aquela que é o meu íntimo avantesma...

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival que os dias me acompanha,
para ruína gloriosa de mim mesma!


MEU DESERTO... (em Meu Glorioso Pecado)

Meu deserto,
és para mim
o que é para as aves o espaço:
murcham na tua ausência
minhas asas,
saudosas dos teus longes,
saudosas do infinito da tua alma.

Ah! a impossibilidade
dos meus surtos,
sem as distâncias iluminadas
do teu ser misterioso!...

Por ti meu sonho desfalece,
aos poucos,
de inércia, como um pássaro cativo.

Vem com o teu peito vasto,
com teu espírito incomensurável,
dar-me a ilusão,
dar-me a certeza
de que é meu todo o céu,
de que és meu todo;
traze-me a liberdade,
as distâncias azuis;
deixa que eu possa, bem no inferno dos teus braços,
roçar o corpo pelas plumas do éter!...

(...)

Tua boca é um voo... Que avidez de sangue!
Nunca se sacia, nunca se conforta,
deixa sempre exangue,
no seu rumo infindo,
qualquer outra boca em que, um momento, aporta
essa malfazeja que é um demônio lindo.

Tua boca é um voo... Quanta vez de ninho
lhe serviu a minha (lembras? - Que tristeza
pássaro daninho
que inda me tresloucas!)...
Tua plúmea boca, nos meus lábios presa,
ensaiava os surtos para outras bocas...
Maria Ângela Alvin


Nasceu em 1 de janeiro de 1926, na fazenda do Pouso Alegre, município de Volta Grande, Minas Gerais. Era irmã do também poeta Francisco Alvim. Só publicou uma obra em vida: Superfície – saudado por Carlos Drummond de Andrade. Sua estréia ocorre no mesmo ano de Hilda Hilst. Mais uma voz calada pelo rouquidão masculina do cânone, da história suprimida, da poesia invisível. Tem postumamente outras produções publicadas, mas que nem chegam a passar pelos olhos de nós leitores. Seus poemas são de extrema solidez no trato linguístico e passam por uma mística original e sensível, pra longe do clichê que muitos autores da época possuem.


Soneto ao amigo


Procure ao largo de alma o lenitivo
para este mal da vida, sem promessa.
O corpo vive alheio a se ter vivo
quando fome maior nos arremessa.

Temos todos, enfim, um amor cativo
que tudo pode e inflama e tudo cessa
quando liberto em si vê seu motivo
a este amor dê tudo e nada peça.

Cante em sua voz o rito e os dissabores
do tempo e acontecer mas abstraindo
aspecto transitório e fáceis cores.

Só amor, enquanto é, nos anistia:
sem ele, seres, coisas, verso vindo;
são refúgios do medo sem poesia.

Neste soneto podemos enxergar sua visão poética e minuciosa acerca da amizade, o tom de que se vale é pessimista, mas é com o amor que se encontra para sanar as dores que carrega deste mundo. Suas construções linguísticas são densas e opta por um estilo mais clássico, além da minuciosa escolha dos termos, como vemos a seguir:

Inútil, inútil, inútil,

quem lê no ar brusco?
Capricho, a flor é fútil
num vaso etrusco.

Inútil, inútil, inútil
voltejo no asco.
Argila, és inconsútil

pouso de um frasco!

Nesse bojo profundo
há noites germinadas,
rosas do mundo.

Sorvo em treva o remédio
e cavo as esplanadas
do raso tédio.

Revolucionária em sua arte, Maria Ângela Alvim vem no contrafluxo das produções da Geração de 45, pois traz elementos simbólicos, entretanto, os utiliza com rigor e beleza; detentora das palavras, coloca-as a prova e brinca com seus significados e sonoridades na ponta da caneta, no carimbo da máquina de escrever. Não é de se surpreender, mas de se indignar que tal maestria feminina permaneça esquecida no mofo de nossos registros.

Deixamos aqui manifesta a nossa indignação no tocante às fontes pelas quais passam nossa pesquisa. As informações das vidas de nossas poetas são simplesmente sedimentadas num fundo frio de história morta. Dispendemos horas a fio em um vão processo de busca por nomes, vestígios de vidas que constituíram e fortaleceram o tão vasto veio artístico que possuímos no Brasil, mas seus órgãos frágeis e sempre passivos permanecem rotos, rodeados das literaturas fálicas. Identificamos, tristemente, que o que se tem posto, para não ser farsa, é minimamente um desalento, ingratidão. Ao digitar em todos os cantos da internet dezenas de nomes, surgem resquícios de existências opacas, gravadas em nomes de escola, sobrenomes perdidos em outros nomes, letras difusas em mares de outras letras que não se unem, assilábicas, lançadas num ventilador que espalhou como pó suas individualidades. As vezes uma data, as vezes um verso, muitas vezes nem um e nem outro. Constatamos o quanto pode ser horizontal e difuso, além de questionável o conhecimento proporcionado pela internet, nos aproximando em superfície e nos distanciando das raízes que nos formam. A raiz se corta. O tronco grosso e rígido quer permanecer, mas se necessário o derrubamos e plantamos outra semente. Outras: ressemeadura para um novo chão fecundo.

Continuaremos na próxima publicação com aquelas que tiveram nomes mais sólidos no chão no começo do século XX.

Ps.: optamos por citar as poetas segundo suas produções, sob o contexto da mulher em condição de poeta, sem enfatizar divisões de movimentos artísticos, mesmo citando-as como construtoras ou questionadoras de tais movimentos; ressaltando que os mesmos se fazem na égide do machismo.


Lívia Marcelino Xavier. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais FAFIL/CUFSA. Pesquisadora da área da literatura, estética e arte. 
Rafael Nunes de Sousa nascido em São Bernardo do Campo, em 25 de agosto de 1990. Estudou Comunicação das Arte do Corpo na PUC-SP e Letras na Fundação Santo André. É feminista, poeta e professor.



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