A poeta como A emancipação: Desmemórias do século XX
O homem público tem sido um ser de importância extrema
para a história, desempenhando funções imprescindíveis para a sociedade. A
condição da Mulher pública em quase todo tempo: PUTA... O homem vadio:
preguiçoso que não faz nada da vida, mulher vadia: PUTA. Homem puto: nervoso,
irritado. Mulher puta: PUTA, MESMO. Atirado:
disponível. Atirada: PUTA. Um qualquer: fulano, beltrano... Uma qualquer: PUTA.
A partir destes antagonismos totalmente extraídos
da realidade, da própria língua viva, podemos entrar um pouco mais neste
caldeirão que é o patriarcado, o direito do pai. Segundo pesquisas, advém do
início do que podemos denominar riqueza, e desde então se mantém edificado num
grande ferro secular que foi, e ainda é introduzido na boca das mulheres,
calando-as, subjugando-as, impedindo de fluir seu desenvolvimento pleno.
A história das mulheres é recente, visto que esta
História como matéria científica nasceu no século XIX, escrita eminentemente
pelos homens. Como história universal é banhada com princípios machistas e
homofóbicos. As mulheres viviam a margem desta representação - não eram
colocadas como sujeitos, já que este patamar era conveniente apenas aos machos,
que vislumbraram privilégios – elas, as sujeitadas. Ao descreverem as mulheres
e serem seus porta-vozes, os historiadores as deixaram nas sombras dos seus
lares, tornando-as invisíveis como indivíduos e sem significado social.
Responsáveis por esta construção de conceitos e da História, os homens deixaram
bem demarcada a importância e a diferença de cada sexo, utilizando esta
hierarquia como arma primordial para a desigualdade. Mas havia uma neutralidade
em relação ao sexo, pois falar em humanidade é falar em Homem. O homem sempre
teve espaço para seu afloramento, onde caberia a mulher levantar como ser autônomo
no meio de tanta dominação?
A maneira de denominar as mulheres como seres
menores nasceu na Grécia, onde eram excluídas do conhecimento, da vida pública
e de outros afazeres muito agraciados naquela sociedade. Este movimento
desempenhou um processo milenar de submissão e desconforto até os dias de hoje.
Trazemos uma historieta de Eduardo Galeano (sendo
homem não compreenderá nunca a condição desta transformação, mas como
historiador retrata a condição d(a)os oprimid(a)os Latin(a)o-american(a)os
sobre a mudança do Matriarcado para o Patriarcado
"En épocas remotas la mujeres se sentaban em la proa
de la canoa y los hombres em la popa. Eran las mujeres quienes cazaban y
pescaban. Ellas salian de las aladeias y resolvian cuando podiam o querian. Los
hombres montaban las chozas, preparabam la comida, mantenian encendida las
fogatas contra el frio, cuidabam a los hijos y curtian las pieles de abrigo.
Asi era la vida entre los índios onas y los yaganes
em la tierra do fuego, hasta que um dia los hombres mataram a toda las mujeres
y puseron la márcaras que las mujeres habían inentado para darles terror.
Solamente las ninas recién nascidas se salvaron del
extermínio. Mientras ellas crescian, los asininos les decian y repetian que
servir los hombres era su destino. Ellas lo creyeron sus hijas y hija de sus
hijas. (Mulheres)
Este conto nos mostra como o discurso pesou no
fortalecimento esta inversão entre a matriarcado para o patriarcado, e nos
exemplifica de uma maneira mitológica esta passagem. O patriarcado triunfa,
como nos mostra Galeano, e sentimos na pele seus resultados.
Este poder foi legitimado e como prova desenvolveu
esta imensa desigualdade na qual temos por convicção desconstruir entre mulheres e homens, para uma
nova sociabilidade.
Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo é
isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas estão sempre
mudando - afinam ou desafinam." Guimarães Rosa
Stella Leonardos da Silva Lima Cabassa
É carioca nascida em 1923. Publicou seu primeiro
livro de poesia em 1941 chamado Passos na Areia. Stella foi uma grande
teatróloga brasileira, além de desenvolver trabalhos como tradutora. Poliglota,
brincava com o catalão, espanhol, francês, inglês, italiano e provençal. No
período de 1948 a 1961 publicou os romances “Quando os Cafezais Florescem” e “Estátua
de Sal”. Em 1957 recebeu o Prêmio Olavo Bilac de Poesia, pelo livro Poesia em 3
Tempos, concedido pela Academia Brasileira de Letras. Nos anos seguintes
produziu literatura infantil em prosa e verso, além de peças teatrais infantis,
tendo mais de 70 livros publicados. Sua extensa obra poética filia-se à
terceira geração do Modernismo e inclui os premiados livros: Geolírica.
ALGO PEÇO? ou me pertence?
Contudo a tudo pertenço
— às águas, árvores, astros
e acima de tudo às asas
das cantigas que amanheçam.
Vai, meu coração de pássaro,
sofrendo por lá num "tremolo".
Talvez tuas penas caiam
nas cordas manhãs de essência
e acordem pássaros trêmulos
no coração de outras penas.
Quem sabe se alando acordes
e cantos amanhecência
de pássaros cantos novos?
Com toda força a quem pertence esta incrível voz poética, um
pertencimento ao todo, a natureza a sociedade, exalta cantos novos, nesta
necessidades de aprofundamento da essência. Por mais que seu coração seja de
pássaro, portanto frágil, exalta cantos novos“alando acordes e cantos de
amanhecência...”
OS VISIONADOS
Havia um vento vagando
pela Minas do Ouro antanha.
Havia
um vento vagando
sobre congonhas-do-campo.
Havia
um vento soprando:
Aleijadinho, vem, anda!
Agora —
fardo patético
largado
num catre a um canto —
a
Bíblia lhe cai das mãos
mais
pesadas do que pedras.
A janela bate, aberta
— alguém no vento chamando? —
e o vento que vem penetra,
e na viração frenética
revira páginas santas.
Transido de frio e espanto
o
Aleijadinho estremece:
há um
latim que vocifera
de
algum Testamento. O Velho?
Apóstrofes desencantam-se.
E maldições se exacerbam.
Velhos versículos cantam.
Livram-se letras e inscrevem
cartelas de imagens pétreas.
O de
ante visão desvela-se?
Ecoa,
nítido, o transe:
— De pedra! Serão de pedra.
Doze estátuas de Profetas.
Pedra tenra. Quase humana:
algo assim feito estas mãos
que foram virando pedra.
O
vento, ouvindo, se amaina.
E eles vêm, eles vêm, os visionados.
De sarças inflamadas se ressarcem.
De verbo iluminado se afogueiam.
As barbas de sargaços e serpentes,
as falas de sarmento de uvas bravas,
as vozes de uivo amargo nas areias.
Eles vêm devagar. Visões sombrias.
Invisíveis ainda aos que os carregam
da pedreira azulada, eles vêm vindo.
E em blocos de esteatita se projetam.
E anos vígeis esculpem-lhes vigílias.
E seus olhos de pedra vão se abrindo.
E seus lábios de pedra se descerram.
E seus rostos de pedra vitalizam-se.
E seus trajes de pedra se despregam.
E seus gestos de pedra se reavivam.
E nos corpos de pedra, menos pedra,
são vividos profetas que se inspiram.
Havia
um vento chamando:
Aleijadinho! ... chamando.
E ei-lo
que se ergue dos séculos
— nos Passos madeiroeternos —
da
Minas do Ouro e montanhas.
Ei-lo nos doze Profetas
da pedra cantar eterno
põe o vento cismando
— De pedra! Serão de pedra.
Doze estátuas de Profetas.
Pedra tenra. Quase humana:
algo assim feito estas mãos
que foram virando pedra.
Com mais de 70 livros publicados, com uma obra gigantesca, não
se ouve seu nome em parte alguma. Nem os maiores escritores possuem uma vasta
obra como de Sttela, entretanto suas obras estão intocadas aos olhos
brasileiros.
Maria José de Carvalho
Nascida em São Paulo em 1918,
figura excepcional em contribuições intelectuais e artísticas, dedicou-se
a muitas modalidades do conhecimento. Musicista de formação, concluiu os cursos
de piano, canto e violino em 1938. Em 1940 formou-se em História e Geografia
pela Universidade de São Paulo. Poeta concretista, atriz, cantora e diretora de
teatro, manejava seis línguas e trabalhou como tradutora.
Recentemente, Álvaro Machado e Antônio Carlos Abdalla publicaram
na revista Ópera uma matéria sobre a autora, com detalhes apaixonantes da carreira
e peripécias de sua vida.
“A ‘neurose’ contra a qual sempre lutou – e à qual
chamava ‘praça pútrida’ e ‘poço de solidão’ – era uma dura provação para seus nervos e seu coração atingiu um limite. Raramente se viu neurose mais
produtiva. Sustentada por cultura profunda, vontade e sensibilidade incomuns,
essa descendente de comerciantes portugueses de Coimbra, criada no histórico
bairro paulistano do Ipiranga, alimentou, durante décadas, uma ‘persona’ de
temperamento imprevisível e irascível. Verdadeira ‘caixa de Pandora’ das
relações humanas, o contato pessoal com Mariajosé reservava delícias e tormentos inolvidáveis”.
o iniciado
que nome te dar
na faca e no gume
na lima e no lume
na lama dos limos
na lança no laço
na trança no traço
na trama dos limbos
que névoa te envolve
e densa
turva
teu sacro perfil
se destravando
a
treva
emerso a iluminaste
e
na dança do templo
que o corpo enlaça
a pupila embaça
o passo trava
e o sangue desata
em salva de prata
contido o lábio
na doce taça
que nome te dar
que medo te impele
que tolhida asa
o vôo te impede
que secreta chaga
de ferida pluma
te enluta o âmago
e que maga imagem
te dispara a seta
que o peito afeta
em bruma
e arfagem
ó
iniciado
que êxtase
nos espera
que ardente
dardo
através da estirpe
de transe
e treva
a dor
extirpa
o ir
é nosso rio
ao bramir
do touro
o ouro
de teu corpo
ao sol
o manso bezerro
o túrgido úbere
a plúmbea ave
o fruto maduro
lança e raiz
o chão e o sal
tua urdidura são
ao sol posto
evocamos
a chaga
que a taça embaça
e o violáceo laço
de obscura trama
nesta agosto
deposto
nos envolve o rosto
a
palavra
o chá
Infelizmente, mais uma grande autora que não temos acesso A
fortuna crítica, nem tampouco a sua obra. Tiramos estas poesia da plataforma de
Antônio Miranda, não há vestígios dos seus versos em canto algum. Mais uma
mulher esquecida.
que ânsia imemorial atrai os corpos
de ambarina e amavios impregnados
ossos tendões e carne e sangue nervos?
que impacto os enlouquece tange anula?
que plectro ou lançadeira ou sábia lâmina?
e exangues ao cansaço os abandona?
phallus vulva os seios mãos e boca
e a pele esse tecido permeável
são instrumentos de urdir tecer
e a estrutura imantada aniquilada
é deliquo amplo vôo queda a pique
num abismo do fogo gelo e nada
Gilka Machado
Gilka da Costa de Mello Machado
nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 12 de março de 1893. Vinda de uma família
de artistas e jornalistas - a mãe Thereza Christina Moniz da Costa era atriz de
teatro e rádio-teatro. Em 1910, se casa com o poeta, jornalista e crítico de
arte Rodolfo Machado, que morreria dali a treze anos, deixando-a com dois
filhos: Heros e Hélios (aquela seria uma bailarina consagrada e pesquisadora
das danças nativas brasileiras). Possuía
também em sua família poetas e músicos famosos. Mas a vida de Gilka não foi
fácil. Trabalhou na companhia Ferro Central do Brasil, com um magro salário.
Estreou nas letras vencendo um concurso literário do jornal A Imprensa,
dirigido por José Patrocínio Filho. Na época houve uma reprova sobre o prêmio
por ter seu trabalho tachado como “próprio de uma matrona imoral”. Os críticos
mais novos, no entanto, reconheceram a importância de sua proposta, que reivindicava
a libertação dos sentidos e dos instintos.
Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
O verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em seu labor,
gostos de afagos de sabor.
És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesmo acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.
Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.
Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!
— Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
— Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação,
és o elástico da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
— Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...
Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me veste quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...
Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inféria e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...
Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...
Gilka Machado, como se vê no poema
acima, era mulher a frente de seu tempo. Seu trabalho acurado de imagens corre
como sangue quente nas veias, viaja pelos sentidos considerados sórdidos e
inapropriados para a fêmea, e é da dor desta que nasce das cinzas uma mulher
ousada, despudorada, caminhando pelo erotismo. Invoca o sensorial e traz à luz
o desejo e a lascívia tão condenados. Numa sociedade onde os braços a mostra
causam espanto, usar termos como “língua-cocaína”mostra a força de seu uivo por
liberdade. Partcipou de movimentos em defesa dos direitos das mulheres. Fez
parte do grupo da professora Leonilda Daltro que fundou que fundou em Dezembro
de 1910 o Partido Republicano Feminino, do qual foi segunda secretária.
SER MULHER
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor,
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor,
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor...
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
Ser mulher, e oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
Fala de sua condição. Abre, escancara
ao mundo e não aceita o chão que pisa, a coração que lhe querem. Este poema é
de seu primeiro livro de poesia “Cristais Partidos”. O fino que se parte é a
fragilidade débil que não quer. Foi publicada em 1932 em Cochabamba, Bolívia, a
antologia “Sonetos y Poemas de Gilka Machado”. Ela recebeu o prêmio de “A maior
poetisa do Brasil” em 1933, pela revista O Malho, além também do “Machado de
Assis”, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1979, mesmo ano em que
a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro presta homenagem à mulher brasileira
na pessoa da poeta. É publicada na Antologia dos poetas brasileiros, organizada
pelo também poeta Manuel Bandeira e é objeto de estudo de alguns autores que se
debruçam sobre o gênero poético (ainda muito aquém do que se espera diante de
tamanho expoente em nossa literatura).
A QUE BUSCAS
EM MIM... (Em Meu Glorioso Pecado)
A que buscas
em mim, que vive em meio
de nós, e
nos vai unindo nos separa,
não sei bem
aonde vai, de onde me veio,
trago-a no
sangue assim como uma tara.
Dou-te a
carne que sou... Mas teu anseio
fora
possuí-la – e espiritual, a rara,
essa que tem
o olhar ao mundo alheio,
essa que tão
somente astros encara.
Por que não
sou como as demais mulheres?
Sinto que,
me possuindo, em mim preferes
aquela que é
o meu íntimo avantesma...
E, ó meu
amor, que ciúme dessa estranha,
dessa rival
que os dias me acompanha,
para ruína
gloriosa de mim mesma!
MEU
DESERTO... (em Meu Glorioso Pecado)
Meu deserto,
és para mim
o que é para
as aves o espaço:
murcham na
tua ausência
minhas asas,
saudosas dos
teus longes,
saudosas do
infinito da tua alma.
Ah! a
impossibilidade
dos meus
surtos,
sem as
distâncias iluminadas
do teu ser
misterioso!...
Por ti meu
sonho desfalece,
aos poucos,
de inércia,
como um pássaro cativo.
Vem com o
teu peito vasto,
com teu
espírito incomensurável,
dar-me a
ilusão,
dar-me a
certeza
de que é meu
todo o céu,
de que és
meu todo;
traze-me a
liberdade,
as
distâncias azuis;
deixa que eu
possa, bem no inferno dos teus braços,
roçar o
corpo pelas plumas do éter!...
(...)
Tua boca é
um voo... Que avidez de sangue!
Nunca se
sacia, nunca se conforta,
deixa sempre
exangue,
no seu rumo
infindo,
qualquer
outra boca em que, um momento, aporta
essa
malfazeja que é um demônio lindo.
Tua boca é
um voo... Quanta vez de ninho
lhe serviu a
minha (lembras? - Que tristeza
pássaro
daninho
que inda me
tresloucas!)...
Tua plúmea
boca, nos meus lábios presa,
ensaiava os
surtos para outras bocas...
Maria Ângela Alvin
Nasceu em 1 de janeiro de 1926, na
fazenda do Pouso Alegre, município de Volta Grande, Minas Gerais. Era irmã do
também poeta Francisco Alvim. Só publicou uma obra em vida: Superfície –
saudado por Carlos Drummond de Andrade. Sua estréia ocorre no mesmo ano de Hilda
Hilst. Mais uma voz calada pelo rouquidão masculina do cânone, da história
suprimida, da poesia invisível. Tem postumamente outras produções publicadas,
mas que nem chegam a passar pelos olhos de nós leitores. Seus poemas são de
extrema solidez no trato linguístico e passam por uma mística original e
sensível, pra longe do clichê que muitos autores da época possuem.
Soneto ao amigo
Procure ao largo de alma o lenitivo
para este mal da vida, sem promessa.
O corpo vive alheio a se ter vivo
quando fome maior nos arremessa.
Temos todos, enfim, um amor cativo
que tudo pode e inflama e tudo cessa
quando liberto em si vê seu motivo
a este amor dê tudo e nada peça.
Cante em sua voz o rito e os dissabores
do tempo e acontecer mas abstraindo
aspecto transitório e fáceis cores.
Só amor, enquanto é, nos anistia:
sem ele, seres, coisas, verso vindo;
são refúgios do medo sem poesia.
Neste soneto podemos enxergar sua
visão poética e minuciosa acerca da amizade, o tom de que se vale é pessimista,
mas é com o amor que se encontra para sanar as dores que carrega deste mundo.
Suas construções linguísticas são densas e opta por um estilo mais clássico,
além da minuciosa escolha dos termos, como vemos a seguir:
Inútil, inútil, inútil,
quem lê no ar brusco?
Capricho, a flor é fútil
num vaso etrusco.
Inútil, inútil, inútil
voltejo no asco.
Argila, és inconsútil
pouso de um frasco!
Nesse bojo profundo
há noites germinadas,
rosas do mundo.
Sorvo em treva o remédio
e cavo as esplanadas
do raso tédio.
Revolucionária em sua arte, Maria
Ângela Alvim vem no contrafluxo das produções da Geração de 45, pois traz
elementos simbólicos, entretanto, os utiliza com rigor e beleza; detentora das
palavras, coloca-as a prova e brinca com seus significados e sonoridades na
ponta da caneta, no carimbo da máquina de escrever. Não é de se surpreender,
mas de se indignar que tal maestria feminina permaneça esquecida no mofo de
nossos registros.
Deixamos aqui manifesta a nossa indignação no tocante às fontes
pelas quais passam nossa pesquisa. As informações das vidas de nossas poetas
são simplesmente sedimentadas num fundo frio de história morta. Dispendemos
horas a fio em um vão processo de busca por nomes, vestígios de vidas que
constituíram e fortaleceram o tão vasto veio artístico que possuímos no Brasil,
mas seus órgãos frágeis e sempre passivos permanecem rotos, rodeados das
literaturas fálicas. Identificamos, tristemente, que o que se tem posto, para
não ser farsa, é minimamente um desalento, ingratidão. Ao digitar em todos os
cantos da internet dezenas de nomes, surgem resquícios de existências opacas,
gravadas em nomes de escola, sobrenomes perdidos em outros nomes, letras
difusas em mares de outras letras que não se unem, assilábicas, lançadas num
ventilador que espalhou como pó suas individualidades. As vezes uma data, as
vezes um verso, muitas vezes nem um e nem outro. Constatamos o quanto pode ser horizontal
e difuso, além de questionável o conhecimento proporcionado pela internet, nos
aproximando em superfície e nos distanciando das raízes que nos formam. A raiz
se corta. O tronco grosso e rígido quer permanecer, mas se necessário o
derrubamos e plantamos outra semente. Outras: ressemeadura para um novo chão
fecundo.
Continuaremos na próxima publicação com aquelas
que tiveram nomes mais sólidos no chão no começo do século XX.
Ps.: optamos por citar as poetas segundo suas produções, sob o
contexto da mulher em condição de poeta, sem enfatizar divisões de movimentos
artísticos, mesmo citando-as como construtoras ou questionadoras de tais
movimentos; ressaltando que os mesmos se fazem na égide do machismo.
Lívia Marcelino Xavier. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais FAFIL/CUFSA. Pesquisadora da área da literatura, estética e arte.
Rafael Nunes de Sousa nascido em São Bernardo do Campo, em 25 de agosto de 1990. Estudou Comunicação das Arte do Corpo na PUC-SP e Letras na Fundação Santo André. É feminista, poeta e professor.
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