quarta-feira, 18 de junho de 2014

Tabacando...


Nos últimos três meses, minhas digressões nesta página ganharam um companheiro – dizem que melhor não há: um cachimbo.  Não sei se as tabacadas diárias são um hobby ou passaram a se tornar um hábito, ou os dois... O fato é que o universo da “nobre arte” (sim, ela faz mal a saúde...), com suas várias e interessantes nuances, me fisgou. De tal modo, que vou relatar aqui uma das minhas melhores “viagens” vivenciadas em terras nipônicas, num caso claro em que o cachimbo se tornou o coadjuvante ideal...  
Como de costume, em um entardecer de sábado, desfrutando do meu briar italiano abastecido com uma mistura inglesa, parei para refletir sobre os fatos corriqueiros da semana, e a minha cabeça começou a divagar...

Entre uma longa baforada e outra, através da densa e magnifíca fumaça, abri meus olhos e olhei firmemente para o horizonte e, nesse brevíssimo lapso de tempo, me dei conta de que já havia escurecido, e que a paisagem a minha frente era formada pelo lago Biwa, em sua mais bela plenitude. Na sequência, comecei a puxar pela memória qual fora a primeira vez que eu havia visto o maior (670 km2) e mais famoso lago do Japão... e bingo! Me lembrei rapidamente: foi na ocasião de uma visita a àidade de Nagahama (長浜市), situada na prefeitura de Shiga, em um ensolarado dia de primavera em 2011, para presenciar um festival de quimonos. Ainda me lembro, muito vivamente, do colorido desses trajes usados pelas jovens e sorridentes mussumés



Situada na margem nordeste do lago, a histórica cidade tem como referência, além do castelo de Nagahama e da arquitetura, aquilo que considero uma das melhores iguarias que já provei por aqui – e da qual uma boa parcela dos japoneses não gosta: o autêntico funazushi. Para muitos, ele seria um tipo de sushi “pré-histórico” e, na realidade, podemos, sim, considerá-lo um dos antecessores desse prato hoje mundialmente famoso, criado em Edo, atual Tóquio. Para que eu não precise me alongar muito sobre tão interessante iguaria, deem uma olhadinha, por favor, nos links abaixo, pois nesta minha digressão duas lembranças sobre o funazushi me vieram a mente: além do prato, acompanhado de uma gelada cerveja Asahi Super Dry, o seu cheiro forte, que lembra muito blue cheese, é algo marcante em minha memória olfativa. Para muitos de nós, ocidentais, não há grandes problemas em prová-lo, mas, para grande parte dos japoneses, esse prato feito com o peixe nigoro buna  (Carassius auratus grandoculis) - natural do lago Biwa - e recheado/conservado em arroz fermentado, tem cheiro e gosto insuportáveis... Lembrei-me também da expressão de imensa surpresa da senhora que nos atendeu no pequeno restaurante próximo a estação, quando pedi o dito cujo. Mas, ainda melhor, foi seu olhar de curiosidade quando à boca o primeiro e disse, antes que ela me perguntasse: “Oishii!!!” (“Gostoso!”). E verdadeiramente gostei mesmo da iguaria, que, para mim, passou a ser praticamente um sinônimo de lago Biwa.
Enquanto divagava, apreciando os fumos preciosos do meu cachimbo, que se esvaíam anoitecer adentro, tentava encontrar, no horizonte, o ponto onde se situaria a graciosa Nagahama, com seu desfile de coloridos e tradicionais quimonos e o seu gosto de funazushi, que, naquele momento, contrastava enormemente com o gosto defumado - uma mistura de café e chocolate amargo - proporcionado pela lenta queima do tabaco.
A minha frente - para ser mais exato, a uns trinta graus à esquerda –exibiam-se luzes. Dei dois passos à frente e, com os pés mergulhados na água (sim, fria...), me dei conta de que a cidade de Shiga se encontrava na outra margem, e, além de suas luzes, uma parte da ponte Biwako-Ohashi podiam ser avistadas. Eu me encontrava no lado noroeste do lago, para muitos japoneses e turistas o  mais bonito, onde a natureza está melhor preservada do que no outro lado, mais urbanizado.

O fato é que nos pouco mais de sessenta minutos em que fiquei ali “tabacando” e divagando sobre tais breves - mas intensos! - momentos meus em terras nipônicoa, aquele foi assaz especial: pela atmosfera, pela brisa leve que parecia aragem marítima, pelo silêncio e calma do início da noite. Sei que existem “n” lugares desse tipo aí no Brasil, por exemplo, mas a sensação foi a de que o tempo é algo que não pertence realmente a nós, sendo muito mais um produto de nossa(s) memória(s). Citando o poeta luso Fernando Pessoa (1888 – 1935): “A memória é a consciência inserida no tempo”. Tempo e memória,que bela dupla, hein??Ótimo tema para as próximas divagações acompanhadas de um belo briar.


Naquele fim de tarde, ainda me lembrei de outros lugares belos por mim visitados, nas imediações do Biwa, como as cidades de Hikone, Otsu e Ohmihachiman. Recordei-me, outrossim, do ponto às margens do lago, onde, dizem, o poeta Bashô faleceu e foi enterrado: lá se vê uma bananeira – a planta favorita do poeta - cujo nome ele adotou para si - (芭蕉, bashō). Tantas lembranças – dentre outras - que espero narrar nas próximas colunas.



                                                                                 Todas imagens publicadas na coluna possuem direitos autorais Copyright ©2014AkitiDezem


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Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros. Além da História sua grande paixão é a Fotografia (http://akitidezemphotowalker.zenfolio.com/).

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