Tabacando...
Nos últimos três meses, minhas digressões nesta página
ganharam um companheiro – dizem que melhor não há: um cachimbo. Não sei se as tabacadas diárias são um hobby
ou passaram a se tornar um hábito, ou os dois... O fato é que o universo da “nobre
arte” (sim, ela faz mal a saúde...), com suas várias e interessantes nuances,
me fisgou. De tal modo, que vou relatar aqui uma das minhas melhores “viagens” vivenciadas
em terras nipônicas, num caso claro em que o cachimbo se tornou o coadjuvante ideal...
Como de costume, em um entardecer de sábado,
desfrutando do meu briar italiano abastecido
com uma mistura inglesa, parei para refletir sobre os fatos corriqueiros da
semana, e a minha cabeça começou a divagar...
Entre uma longa baforada e outra, através da densa e
magnifíca fumaça, abri meus olhos e olhei firmemente para o horizonte e, nesse
brevíssimo lapso de tempo, me dei conta de que já havia escurecido, e que a
paisagem a minha frente era formada pelo lago Biwa, em sua mais bela plenitude.
Na sequência, comecei a puxar pela memória qual fora a primeira vez que eu
havia visto o maior (670 km2) e mais famoso lago do Japão... e bingo! Me
lembrei rapidamente: foi na ocasião de uma visita a àidade de Nagahama (長浜市), situada na prefeitura de Shiga, em um ensolarado dia
de primavera em 2011, para presenciar um festival de quimonos. Ainda me lembro,
muito vivamente, do colorido desses trajes usados pelas jovens e sorridentes mussumés.
Situada na margem nordeste do lago, a histórica cidade
tem como referência, além do castelo de Nagahama e da arquitetura, aquilo que
considero uma das melhores iguarias que já provei por aqui – e da qual uma boa
parcela dos japoneses não gosta: o autêntico funazushi. Para muitos, ele seria um tipo de sushi “pré-histórico” e, na realidade, podemos, sim, considerá-lo um
dos antecessores desse prato hoje mundialmente famoso, criado em Edo, atual
Tóquio. Para que eu não precise me alongar muito sobre tão interessante
iguaria, deem uma olhadinha, por favor, nos links abaixo, pois nesta minha
digressão duas lembranças sobre o funazushi
me vieram a mente: além do prato, acompanhado de uma gelada cerveja Asahi Super Dry, o seu cheiro forte, que
lembra muito blue cheese, é algo marcante
em minha memória olfativa. Para muitos de nós, ocidentais, não há grandes
problemas em prová-lo, mas, para grande parte dos japoneses, esse prato feito
com o peixe nigoro buna (Carassius
auratus grandoculis) - natural do lago Biwa - e recheado/conservado em arroz
fermentado, tem cheiro e gosto insuportáveis... Lembrei-me também da expressão
de imensa surpresa da senhora que nos atendeu no pequeno restaurante próximo a
estação, quando pedi o dito cujo. Mas, ainda melhor, foi seu olhar de
curiosidade quando à boca o primeiro e disse, antes que ela me perguntasse:
“Oishii!!!” (“Gostoso!”). E verdadeiramente gostei mesmo da iguaria, que, para
mim, passou a ser praticamente um sinônimo de lago Biwa.
Enquanto divagava, apreciando os fumos preciosos do
meu cachimbo, que se esvaíam anoitecer adentro, tentava encontrar, no horizonte,
o ponto onde se situaria a graciosa Nagahama, com seu desfile de coloridos e tradicionais
quimonos e o seu gosto de funazushi, que,
naquele momento, contrastava enormemente com o gosto defumado - uma mistura de
café e chocolate amargo - proporcionado pela lenta queima do tabaco.
A minha frente - para ser mais exato, a uns trinta
graus à esquerda –exibiam-se luzes. Dei dois passos à frente e, com os pés
mergulhados na água (sim, fria...), me dei conta de que a cidade de Shiga se
encontrava na outra margem, e, além de suas luzes, uma parte da ponte Biwako-Ohashi
podiam ser avistadas. Eu me encontrava no lado noroeste do lago, para muitos
japoneses e turistas o mais bonito, onde
a natureza está melhor preservada do que no outro lado, mais urbanizado.
O fato é que nos pouco mais de sessenta minutos em que
fiquei ali “tabacando” e divagando sobre tais breves - mas intensos! - momentos
meus em terras nipônicoa, aquele foi assaz especial: pela atmosfera, pela brisa
leve que parecia aragem marítima, pelo silêncio e calma do início da noite. Sei
que existem “n” lugares desse tipo aí no Brasil, por exemplo, mas a sensação
foi a de que o tempo é algo que não pertence realmente a nós, sendo muito mais
um produto de nossa(s) memória(s). Citando o poeta luso Fernando Pessoa (1888 –
1935): “A memória é a consciência inserida no tempo”. Tempo e memória,que bela dupla, hein??Ótimo tema
para as próximas divagações acompanhadas de um belo briar.
Naquele fim de tarde, ainda me lembrei de outros
lugares belos por mim visitados, nas imediações do Biwa, como as cidades de Hikone,
Otsu e Ohmihachiman. Recordei-me, outrossim, do ponto às margens do lago, onde,
dizem, o poeta Bashô faleceu e foi enterrado: lá se vê uma bananeira – a planta
favorita do poeta - cujo nome ele adotou para si - (芭蕉, bashō).
Tantas
lembranças – dentre outras - que espero narrar nas próximas
colunas.
Todas imagens publicadas na coluna possuem direitos autorais Copyright ©2014AkitiDezem
Links interessantes:
Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de
língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão.
Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor
de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no
Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros. Além da História sua
grande paixão é a Fotografia (http://akitidezemphotowalker.zenfolio.com/).
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