quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O lugar da Literatura



PLANÍCIE BRANCA


Campo de neve. Fogo. Cinza. A literatura amorfa, antes de ser literatura – mistério- é uma sinapse poética, um espírito errante que precisa estar posto, corporificar-se, limitar-se – alguns diriam – ao mal irrevogável e necessário do coletivo, ou salvar-se – para outros – do exílio abstrato e silencioso. O mar lácteo do papel se abre carregado de nuvens brancas. Um ponto-mosca, ave solitária, surge. Vai começar. A caneta consente a letra. Podemos? – diz o autor - e um par de colunas se levanta e entre elas – gigantesca – uma aranha tece. Tudo passa a existir aquém e/ou além. “Podemos começar”.


*


Um casal que atravessa a rua - arquipélago de duas ilhas - e a criança que – sorridente - aponta um brinquedo. Os cães transitam indiferentes. A vizinha, com seu jazz band, compra flores para um senhor de meia idade - calvo e doente. A igreja matriz, logo ali - Santa Rita. O sino e a hora – saudade. “Sabe aquela menina?”. Sangue rubro e sonoro correndo pelas ruas, avenidas, ruelas e becos. Veios de pedra. Murmúrio e palpitação. Uma buzina e outra e outra e outra. Os dormitórios se erguem como arvores de concreto, formigueiros de massa e suor. Três bicicletas vão e com elas cabeças e corpos. Vão carros e carroças. E eu vou. Somos iguais. Mais que iguais, somos idênticos. Todos nós. Gêmeos. Passando – inexoravelmente – (sozinhos) na multidão. Únicos – todos e cada um.

Passa a perna da moça e passa o rapaz sorrindo e passa a dona da padaria e o mundo passa e a rua passa e eu fico.

Olho sem procurar para tudo. E vejo as pessoas nas pessoas e os animais nos animais das pessoas e as coisas e o mato e a calçada e tudo é real. Tudo é verdade e são muitas verdades e todas são reais. 
                                                                                                                                                      Assim.


*


“Assim realmente o designariam segundo a classificação tradicional dos gêneros, porém, não sendo propósito meu apontar outras contradições, em minha discreta opinião, senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura. A história também. A história sobretudo, sem querer ofender. E a pintura, e a música. A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência. E a pintura. Ora, a pintura não é mais do que a literatura feita com pincéis”.


Saramago, J. História do cerco de Lisboa.



Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.