RIMBAUD, O REBELDE...POR CLAUDIO WILLER
”Rimbaud
aspirava à síntese de rebelião e revolução e queria a liberdade total e
intransitiva. Sua obra foi marcada pelo inconformismo absoluto.”
“Espero tornar-me um louco
muito mau”: essa frase de “Vidas”, uma das Iluminações, poderia ser sua
epígrafe geral. Foi muito louco e muito mau. Sua maldade deve ser entendida
dialeticamente, como negação criadora. Faltou – estranhamente – o capítulo
Rimbaud em A literatura e o mal, de Georges Bataille.
No quesito loucura, sua
poética é do delírio, do desregramento dos sentidos. O resultado, observou
Antonio Candido, é uma “obra difícil, feita para despistar leitores e desanimar
intérpretes”, pois “a relação da textura vocabular com as mensagens é tão
brilhantemente arbitrária, e ao mesmo tempo tão necessária, que o leitor
percebe sem perceber, a não ser nos poemas mais claros, nunca tem certeza” (“As
transfusões de Rimbaud”, em Rimbaud no Brasil, UERJ, organizado por Carlos
Lima).
Marcelin Pleynet, no
ensaio “A liberdade livre” (em Poetas que pensaram o mundo, organizado por
Adauto Novaes, publicado pela Companhia das Letras) amplia, acertadamente, a
noção do “desregramento dos sentidos” da “Carta do Vidente”: não são apenas os
cinco sentidos da percepção, mas a razão, o bom senso cartesiano (em francês,
sentido e senso são a mesma palavra, sens); o “senso comum, o sentido moral e o
sentido da liberdade”, até mesmo na acepção kantiana, transcendental. E,
acrescento, o próprio sentido das palavras: a relação de significação no modo
unívoco, substituído pela liberdade de significar.
Já foi questionada a
qualificação de Rimbaud como “poeta maldito” (inclusive por Pleynet). Mas nele
a maldição é programática, constitutiva da poética e visão de mundo. Se o
Nerval de “Anteros” e o Baudelaire de “Abel e Caim” se declararam amaldiçoados,
Rimbaud deu um passo adiante. Em Uma temporada no Inferno, criou o monólogo do
exilado no mundo – “Por ora sou maldito, tenho horror à pátria” – que perdeu a
memória – “De nada mais me lembro anterior a essa terra e o cristianismo” – e
tem o “sangue mau”.
Um selvagem da “raça inferior”, além de longínqua: “meus
pais era escandinavos: vazavam o flanco, bebiam o próprio sangue”.
Identifica-se aos marginais e párias; aos criminosos: é “o forçado intratável
contra quem se encerram as grades da prisão”. E especialmente aos negros,
metáforas do outro, da diferença: “sou um bicho, um negro”; por isso, verberou
os “falsos negros”.
Uma contribuição recente à
bibliografia sobre Rimbaud, em A folie Baudelaire de Roberto Calasso (Companhia
das Letras), o retrata como “adolescente selvático das Ardenas”, nascido e
criado “numa terra renitente a civilizar-se”. A selvageria e o compromisso com
o mal já estão em seus primeiros poemas; aqueles enviados a Théodore de
Bainville, o consagrado poeta, editor do Parnasse contemporain. O mais extenso
da série, “Sol e carne”, expressa, diz Calasso, “a afasia diante do horror
cósmico”: é o “horror do espaço”, levando-o a observar que “isso é puro Rimbaud
– um Rimbaud pascaliano”.
Rimbaud, o poeta perverso.
Entre aqueles poemas iniciais, “Os poetas de sete anos”, em que se descreve
como menino que “Teimava em se trancar no frescor das latrinas / Para pensar em
paz, arejando as narinas”. Encontra-se com uma “pirralha infernal”, filha de
oito anos do “operário ao lado”, que lhe pula às costas: “Ele por baixo então
lhe mordiscava as popas, / porquanto ela jamais andava de calcinha”. Observa
Calasso: “Até então a literatura vivera ignorando tudo isso. Nenhum escritor,
nem mesmo Baudelaire, ousara mencionar cenas desse tipo”.
Da mesma ordem é sua
adesão à Comuna de Paris, a sangrenta revolta de março a maio de 1871 da qual
não conseguiu participar (menor de idade e viajando sem dinheiro, foi detido e
mandado de volta para Charleville). Seus poemas mais militantes mostram que a
Comuna atraía como destruição. “As mãos de Jeanne-Marie” elogia as
“petroleuses”, mulheres que, nas últimas horas antes da ofensiva das tropas de
Versalhes, munidas de querosene, puseram-se a incendiar prédios públicos, sedes
de instituições, esperando que nada sobrasse para os ocupantes.
Para ele,
“nobres damas” que, com suas “Mãos sagradas, / em vosso punho, onde acolheis /
Nossas bocas jamais saciadas, / Gritam grilhões de alvos anéis!”. Em “A orgia
parisiense ou Paris se repovoa”, reclama da cidade voltar ao normal e a
burguesia retomar seus afazeres. Antecipa o “Mau sangue”: “O poeta irá tomar o
pranto dos Infames, / Os ódios do Forçado, as queixas dos Malditos; / E as
mulheres serão flageladas de amor. / Seus versos saltarão: Ei-los! Ei-los!
bandidos!”. Poeta e bandido: para Rimbaud, sinônimos.
Há um tipo de maldade mais
sutil, da qual o soneto “O adormecido do vale” pode servir como exemplo:
bucólico, aparente louvação à natureza, só no último verso é revelado que
descreve um cadáver, o jovem soldado com “dois furos rubros no peito”, caído na
guerra franco-prussiana. Engana o leitor, dizendo uma coisa à primeira vista, e
seu oposto. Mesmo procedimento, entre outros lugares, em “Infância”, a segunda
das Iluminações: “No bosque há um pássaro, seu canto vos detém e vos faz
enrubescer. / Há um relógio que não toca. / Há uma vala com um ninho de bichos
brancos”.
Um mundo encantador. Porém, “há, enfim, quando se tem fome e sede,
alguém que nos expulsa”. Tudo se inverte: contrastando com o cenário bucólico,
a infância é miséria e rejeição. Nesse poema em versos livres, “há uma catedral
que desce e um lago que sobe”. As inversões, que vêm junto com seus duplos
sentidos: o alto no lugar do baixo; o mundo às avessas que se multiplica nas
Iluminações.
“O barco ébrio”, que levou
a Paris para mostrar a Verlaine e demais integrantes do futuro simbolismo,
proclama seu ideal de liberdade absoluta. A tripulação do barco é morta,
permitindo-lhe vogar à vontade. Para Calasso, “a cerimônia inaugural da
literatura que soltou as amarras”, pois “O barco navega sem tripulação, porque
para guiá-lo bastam solidão monologante e frio delírio”. É arguto seu paralelo
com os também programáticos versos finais de “A viagem”, com que Baudelaire
encerrou As flores do mal: “Queremos, tanto o cérebro nos arde em fogo, / Ir ao
fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? / Para encontrar no Ignoto o que
ele tem de novo!”.
Provavelmente, Rimbaud
aprendeu algo sobre ocultação do sentido e linguagem cifrada com as leituras
esotéricas na biblioteca de Charleville. A bibliografia relacionando sua poesia
à simbologia alquímica em especial, e esotérica em geral, talvez seja superada
em volume pelos textos negando essa relação, ou alegando que em nada contribui
para a sua interpretação. Mas a interpretação alquímica do soneto “Vogais” é
inevitável, pela citação em “Alquimia do Verbo”.
Contudo, nem precisava haver
lido obras tratando de alquimia, hermetismo e ocultismo, como o comprovaram
biógrafos. Sua adesão ao princípio hermético das correspondências não veio
apenas daquelas leituras, mas do que já conhecia de poesia romântica, incluindo
o Nerval de Versos dourados e, principalmente, Baudelaire.
A censura retorna pela
porta dos fundos, a pretexto de restauração da moral ou do politicamente
correto. Verbetes de dicionário são alvo de ações judiciais. Tentam impedir a
adoção didática de obras de Monteiro Lobato. Livros declarados pornográficos
foram confiscados por ordem judicial em Macaé, RJ. Uma lei instituindo
programas em defesa da moral e bons costumes foi aprovada no Rio de Janeiro.
Retrógrados de toda sorte mobilizam-se. Novas eclosões de obscurantismo vêm aí. É hora de reler Rimbaud.
Reacionários atualizam sua
rebelião. Convidam à difusão dos impropérios contra os beatos em “Os pobres na
igreja”, na tradução de Ivo Barroso: “Todos, babando fé de mendicante e
inválido, / Recitam sua queixa infinita a Jesus / Que sonha, amarelado à luz do
vitral pálido”. E também contra os burocratas, em “Os assentados” e “Os
aduaneiros”; contra o Imperador, detentores do poder em geral e, por extensão,
Deus, que “ri nas toalhas dos altares”, em “O Mal”; contra o beletrismo em “O
que dizem ao poeta a respeito das flores”; contra os valores estéticos na
“Vênus Anadiômene” que mostra “a bela hediondez de uma úlcera no ânus”; contra
os bons sentimentos em geral em “O homem justo”.
E, no extenso “As primeiras
comunhões”, contra Jesus Cristo: “ladrão eterno de energias, / Há dois mil anos
deus que à palidez votaste / As faces que no chão encravam, de vergonha / E de
cefalalgia, as mulheres em dor”. Por isso, Rimbaud recusou os sacramentos na
“Canção da Torre mais Alta”: “Mas quem rezaria / À Virgem Maria?” – e também,
biograficamente, a extrema unção ao morrer.
Artigo originalmente publicado na Revista Cult, nº 178 em Abril de 2013. Disponível em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/04/o-rebelde/
Doutor em letras pela Universidade de São Paulo, é poeta e ensaísta. Traduziu Lautréamont, Ginsberg e Artaud. Recentemente publicou Um obscuro encanto:gnose, gnosticismo e poesia, ensaio; Geração Beat, ensaio; e Estranhas experiências, poesia.
Artigo originalmente publicado na Revista Cult, nº 178 em Abril de 2013. Disponível em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/04/o-rebelde/
Doutor em letras pela Universidade de São Paulo, é poeta e ensaísta. Traduziu Lautréamont, Ginsberg e Artaud. Recentemente publicou Um obscuro encanto:gnose, gnosticismo e poesia, ensaio; Geração Beat, ensaio; e Estranhas experiências, poesia.
1 comentários:
Muito estimulante o texto. Relendo Rimbaud pra ontem! :)
10 de agosto de 2014 às 16:13Postar um comentário
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