sexta-feira, 8 de agosto de 2014

"Herdeiras da Sylvia" I. A poeta chicana Sandra Cisneros.



      
   "Herdeiras da Sylvia":  a poeta chicana Sandra Cisneros.



" When you are coming from a working class home, you don’t want to say you are a poet. You can’t say that. I could publicly say ‘I want to be an English teacher’ and that’s what people expected from girls.” – Sandra Cisneros


Quem conhece  o livro Ariel de Sylvia Plath - poemas publicados após o suicídio da escritora, que selaram sua fama como um/a d@s maiores poetas de língua inglesa do século XX-    talvez encontre ecos da voz dela ( a ironia e coragem de suas metáforas, a ousada forma de deixar expostas as feridas do feminino e do humano)  em  poetas contemporâneas, mesmo as que se destacam por  ter uma  voz  própria tão forte,  marcante e destemida quanto a poeta chicana, Sandra Cisneros.

Felizmente, Cisneros habita um outro momento na história das mulheres na literatura, no qual o reconhecimento e a legitimidade não se significam apenas no masculino e as subalternidades já entraram em cena com toda sua força,  ajudando  a criar uma paisagem literária bem menos homogênea e mais interessante.  Cisneros, nascida em  Chicago em 1954,  é uma estrela literária nos EUA, tendo uma vibrante obra que problematiza, entre outras coisas, o gênero e suas transgressões, classe social (o povo trabalhador, que ao lidar com todo tipo de adversidades consegue re-significar a vida, criando amor, criando beleza),  raça/etnicidade e questões de pertencimentos ( ser chican@/mexican@ nos Estados Unidos).  Antes de me tornar tradutora da sua poesia , do inglês ( e alguma vez, do espanhol) para o português, eu já tinha lido dois romances seus, "The House on Mango Street" e "Caramelo" (que tem versão em lingua espanhola, para quem se interessar) e seu livro de contos "Woman Hollering Creek" .   Leituras inesquecíveis, que me falaram de travessias muitas:  de fronteiras e culturas,  fases da vida, perdas, de conquista de voz, conquista de novas conexões com o mundo.  Daquilo que as gerações passam umas para outras, e o que não podem passar.   Daquilo  que cada um(a) tem que descobrir por si só, na estrada da vida.

Sou totalmente fã do trabalho de Cisneros, apaixonada mesmo, admiradora da capacidade que ela tem para me envolver, em prosa ou poesia. A traduzo, motivada  por  minha própria e por vezes desesperada busca de mestras e mestres, indo à procura de uma magia que me infiltre e me transforme.

Os poemas dela que eu já traduzi são muito variados, falando sobre experiências diversas - desde  "Tantas coisas que me assustam" (escrita originalmente em espanhol), que com linguagem simples traz  reflexões mais universais sobre a vida, até "Las girlfriends",  que exemplifica não só o senso de humor tão característico da poeta senão sua profunda identificação com "su gente" -  neste caso, mulheres com as quais ela compartilha uma origem social que sua ascensão posterior a uma certa elite cultural não apaga.

Gosto muito deste poema que compartilho aqui com vocês, e no qual eu escuto claros ecos da Sylvia. Creio que também os poderão reconhecer.   E para quem se empolgar com este e quiser ler mais alguns, é só visitar meu blog, ou ir atrás dos livros e publicações originais dela, que encontrarão com facilidade, pois circulam.

Natureza Morta com Batatas, Pérolas, Carne Crua, Lantejoulas, Gordura e Casco de Cavalo.
[Still Life with Potatoes, Pearls, Raw Meat, Rhinestones, Lard and Horses’ Hooves. ]

Para Franco Mondini

Em espanhol é naturaleza muerta e de maneira alguma é vida.

E certamente não é natural. Mas o quê é natural?
Você e eu. Eu te compro um drinque.
A uma mulher que não se comporta como mulher.
A um homem que não se comporta como homem.

A morte é natural, pelo menos em espanhol, creio.

A vida? Fico na dúvida.

Veja o exemplo da Contessa, quem nos seus tempos era divina

e agora porta uma verruga do tamanho deste diamante.
Então ragazzo, você é Veneza.
A você. A Veneza.
Não aquela de Casanova.

mas a das pensões baratas, ao lado da rodoviária.
Eu recomendo uma cama estreita manchada de sêmen, mijos e pena
face à parede.
As manchas, os detritos são românticos.
Você é positivamente Pasolini.
Dançando tango e fandango até a morte.
Se deixarmos. Eu não deixo!
Ninguém me supera, sou Piazzola.

Dançarei o tango com você na minha calçinha fio dental de renda
manchada com fluxo de primeiro dia
e uma teta só pendurada do meu vestido como as cataratas do Niágara.
Você falou 'duress' ou 'dress'?
Vamos cantar um dueto de Puccini – eu gosto de La Traviesa.
Serei teu macaco treinado.
Serei lantejoula e pulseira.
Serei Mae, Bette, Joan e Marlene para ti –
Serei qualquer coisa que você pedir. Mas peça algo glamuroso.
E que me faça rir.
Outro?
O que eu quero dizer, querido, é
que nada há de romântico na fome
para os famintos

O que eu quero dizer é que o medo não é emocionante
quando é você que tem medo.
O que eu quero dizer é que
a pobreza não é charmosa quando é a tua casa
da qual não se pode escapar.

A corrosão não é bela para os corroídos.
O que é beleza?
Batom num pênis.
Um beijo numa ferida purulenta.

Um salto agulha que pode perfurar um coração.
Um tijolo atravessando o pára-brisas que quer dizer eu te amo.

Uma mágoa que bate na porta.
Olha, eu preciso te confessar, aqui não é Veneza nem Buenos
Aires.
Que vivan las perras.
“Que me sirvan otro trago…”

É San Antonio.
O espelho não é uma feirinha.
É um incêndio. E estes são os vestígios
do que se pôde levar ou salvar.

As pérolas? Comprei na loja Winn’s.
Meu casaco de pele? Acrílico genuíno.
Graças a deus aqui não é Berlin.
Outro drinque?
Barman, outra garrafa, mas-
Ay caray e ah, meu deus!-
O loirinho bonito não quer mais nos servir.
Aos campos da morte! Aos campos da morte!

Que grosso. Que vulgar.
Beba até o fundo, meu docinho. Tenho a grana.
E ele, não sabe quem nos somos?
Que vivan los de abajo de los de abajo,
los de rienda suelta,
as bruxas, as mulheres,
os perigosos, os bizarros.
Eu conheço um bar
onde nos pagarão os drinques

se eu botar minha saia na cabeça e você entrar vestindo nada mais
além do meu sutiã preto.

[do livro Loose Woman., New York: Vintage, 1995]

Versão em língua portuguesa: Miriam Adelman
Revisão: Marcia Cavendish Wanderley.

       “El niño y el infierno” (1985), de Yolanda Andrade.
  

Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Arjuna Amorim/.Miriam Adelman

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