quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Uni-vers'idade: um breve relato das coisas


NOTA EXPLICATIVA

Raduan Nassar dirá, em Lavoura Arcaica, que “o tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo”. Jorge Luis Borges, em Otras Inquisiciones, considera que “há, basicamente, duas maneiras de conceber o fluxo do tempo: desde o passado em direção ao futuro, ou desde o futuro em direção ao passado” e, Ivan Izquierdo, lendo Borges, ressalta que “em qualquer um dos casos, o fluxo nos atravessa num ponto, que denominamos presente”. É interessante notar o quão dependente do “agora” pode ser o futuro (que ainda não existe) ou o passado (que só existe na memória). Consequências de um ponto simples e quase imaterial a que chamamos presente, o “houve” e o “haverá” estão presos à capacidade natural e humana de armazenar experiências sensíveis como memórias. Assim, vislumbramos o passado, em direção ao futuro, pelos olhos do presente e nos constituímos como sujeitos.
            Machado de Assis reviveu o verso do poeta inglês William Wordsworth, ao nomear um dos capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas como A criança é o pai do homem (The Child is father of the Man). A criança em mim é pai do que eu sou agora e eu - pobre adulto - sou filho da minha infância. É com esse espírito, de buscar no que fomos a raiz do que somos, que este “ensaio” se propõe a revisitar memórias de “leitura”.




Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposto pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido




Com a mudança de cidade, mais uma vez meu universo de significação sofria drásticas modificações. Morando com uma tia/segunda-mãe e dividindo o quarto com meu primo, a literatura que me foi apresentada não só transloucava valores, mas também os inaugurava no cerne das minhas constatações. A pergunta O que é literatura/arte? tornou-se uma indagação diária, as conversas com os outros iniciados na ordem acadêmica seguiam múltiplos focos e tudo contribuía para que em mim se desenvolvesse um gosto extremo pela interdisciplinaridade consiliente. Fico pensando no que disse Ortega Y Gassete, em A Rebelião das Massas:


Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser subsumido por nenhuma dessas categorias. Não é um sábio porque ignora formalmente tudo quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um ignorante porque é um ‘homem de ciência’ e conhecesse muito bem a sua pequeníssima parcela do universo. Temos que dizer que é um ‘sábio-ignorante’, coisa extremamente grave porque significa que é um senhor que se comporta em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade, é um sábio. (ORTEGA Y GASSET, 1987)


            As ideias de John Dewey sobre a arte, em Arte como experiência, modificaram as minhas leituras do idealismo alemão pós-kantiano, mais especificamente de Hegel, e dos textos que me chegaram nos últimos meses da graduação. Os argumentos que fundamentam a base de Dewey são hegelianos, pois evidenciam a obra de arte em seu caráter de obra material, sensível, que “se expõe para”, e de arte trazida pelo “espírito”, ou seja, o “para-si e em-si”. O que resulta do processo artístico de uma época, quando posto em um pedestal enquanto cânon (medida), distante da vida comum e cotidiana, afasta-se da experiência estética efetiva, sendo louvável como lembrete de que em sua origem participara dos modos de ver e sentir dos indivíduos que o vivenciaram. Até mesmo a obra de arte pode mudar de função, não perde seu valor, mas se atualiza e, de certa forma, se afasta da experiência imediata. Para tratar do afastamento, por mais dispare que possa parecer a referência, a Teologia da Libertação e o lugar do Fator Religioso na sociedade moderna contribuíram para o meu entendimento do que doravante chamarei Fator de Transcendência, ligado - de forma direta - com a vivência e a razão sensível.

Por mais que a sociedade se mundanize e, de certa forma, se mostre materialista, não podemos negar que vigora uma volta do fator religioso, místico e esotérico nos tempos atuais. Temos a impressão de que existe um cansaço pelo excesso de racionalização e de funcionalização de nossas sociedades complexas. A volta do religioso apenas revela que no ser humano há uma busca por algo maior. Há um lado invisível no visível que gostaríamos de surpreender. Quem sabe não se encontre lá um sentido secreto que sacia nossa busca incansável por algo que não sabemos identificar.  Nesse horizonte não confessional quiçá faça sentido se falar do fator religioso ou do espiritual. Ele sofreu todo tipo de ataque, mas conseguiu sobreviver. A primeira modernidade o via como algo pré-moderno, um saber fantástico que deve dar lugar ao saber positivo e crítico (Comte). Em seguida foi lido como uma enfermidade: ópio, alienação e falsa consciência de quem ainda não se encontrou ou  caso se encontrou voltou a se perder (Marx). Depois, foi interpretado como a ilusão da mente neurótica que busca pacificar o desejo de proteção e tornar o mundo contraditório suportável (Freud). Mais adiante, foi interpretado como uma realidade que pelo processo de racionalização e de desencanto do mundo tende a desaparecer (Weber). Por fim, alguns o tinham como algo sem sentido, pois seus discursos não têm objeto verificável nem falsificável (Popper e Carnap). (BOFF, 2011)
               
Precisamos resgatar a razão sensível. É bom que recordemos que, há milhões de anos, surgiu nos mamíferos o cérebro límbico, responsável pelos sentimentos, relações afetivas, cuidados com a prole, valores de grupo e pela comunicação oral, só posteriormente se desenvolveu o cérebro neo-córtex que irrompeu com a consciência reflexiva. Somos seres essencialmente híbridos, dotados de razão lógico-instrumental e sensível, animais com autoconsciência, mas, ainda assim, animais.
Do caos gerado pela natureza híbrida, do contraste entre o pensado e o ininteligível, surge o Fator de Transcendência. Hoje percebo que todas as minhas leituras e experiências enquanto sujeito e leitor me levaram a essa concepção. A arte é natural do ser humano assim como voar é natural às aves e nadar é natural aos peixes. É o resultado comum dos conflitos internos de um sistema tão complexo quanto possível.
No campo das artes o Fator de Transcendência é o que Maria Zambrano, em uma obra dedicada à relação da Filosofia e da Poesia, apontou como a “tentativa de expressar o inexpressível”. A luta do indivíduo contra o impensado, sua busca por exteriorizar o que não cabe em palavras. Em carta para seu tradutor italiano, Guimarães Rosa explicita:

Quero afirmar a você que, quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino’cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase “mediúnico” e elaboração subconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele muita coisa; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente. (BIZZARI, 1981)

            Nosso olhar está sempre e imediatamente condicionado pelos valores culturais que nos cercam desde os primeiros anos de vida, entendemos e interpretamos tudo a partir desses valores, mensuramos as situações e as escolhas tendo por base as indicações valorativas do nosso meio e, como diria Caeiro, estamos, de certa forma, “doentes dos olhos”, fadados a uma visão limitada por esse condicionamento. Combatemos o visível com o invisível e vice-versa, mas entre mortos e feridos, como fruto do bom combate, sempre surge a vontade transcendental, o impulso desbravador, e do caos de nós mesmos emerge o fator de trindade (animal/racional/transcendental), o expurgo exteriorizador.
            Lutando contra o dualismo (História da Literatura/Vivência Literária) e, ao mesmo tempo, estando perdidamente apaixonado pelas duas possibilidades, venho me formando enquanto leitor e – agora - professor. Acredito que o ensino de arte tem irrevogavelmente que passar pela noção de gosto, a experiência estética não pode ser ensinada, mas pode ser apreendida, aprendida e mediada. Todos nós somos capazes de sentir e, por conseguinte, estamos suscetíveis às possibilidades do sensível.
                

CONSIDERA-AÇÕES FINAIS


Como leitor, vivenciei três experiências que se unem pelo contraste e pelo indivíduo: a primeira literatura, aquela que antecedia a minha ideia de sujeito e que estava tão entrelaçada com a minha própria medida que era - ela mesma - uma medida minha; a segunda, mais impulsiva, um tanto mais estéril, profundamente enraizada no radicalismo adolescente, e que já apontava características do que seriam as minhas ideias de “adulto” sobre o tema; e a terceira, mas não a última, voltada para uma visão mais aberta e polissêmica da literário, uma perspectiva apreendida, que soma o “Bom costume” de Sexta-feira, em Robinson Crusoé, com as leituras de teoria e crítica literária oriundas do estudo acadêmico. Dessa forma, após uma breve revisitação do percurso, creio poder afirmar a tricotomia motriz do meu Ser professor, leitor e sujeito pensante, onde os pilares que movem o todo estão voltados para o pré-texto, enquanto busca pela experiência sensível, pelo gosto autônomo dos alunos e o pelo meu próprio; o com-texto, a partir da ambientação histórico-social de toda uma tradição literária, e o texto, como eixo central do ensino, unindo o instrumental ao emocional e trazendo para frente a vontade transcendental, o medo e a coragem que se assume perante às fronteiras, a instrução e a informação como ferramentas humanizadoras de fato. 





Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).

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