Uni-vers'idade: um breve relato das coisas
Raduan Nassar dirá, em Lavoura Arcaica, que “o tempo é o maior
tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso
melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior
grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo”. Jorge Luis
Borges, em Otras Inquisiciones,
considera que “há, basicamente, duas maneiras de conceber o fluxo do tempo:
desde o passado em direção ao futuro, ou desde o futuro em direção ao passado”
e, Ivan Izquierdo, lendo Borges, ressalta que “em qualquer um dos casos, o
fluxo nos atravessa num ponto, que denominamos presente”. É interessante notar
o quão dependente do “agora” pode ser o futuro (que ainda não existe) ou o passado
(que só existe na memória). Consequências de um ponto simples e quase imaterial
a que chamamos presente, o “houve” e o “haverá” estão presos à capacidade
natural e humana de armazenar experiências sensíveis como memórias. Assim,
vislumbramos o passado, em direção ao futuro, pelos olhos do presente e nos
constituímos como sujeitos.
Machado
de Assis reviveu o verso do poeta inglês William Wordsworth, ao nomear um dos
capítulos de Memórias Póstumas de Brás
Cubas como A criança é o pai do
homem (The Child is father of the Man).
A criança em mim é pai do que eu sou agora e eu - pobre adulto - sou filho da
minha infância. É com esse espírito, de buscar no que fomos a raiz do que
somos, que este “ensaio” se propõe a revisitar memórias de “leitura”.
Talvez a imobilidade das coisas ao
nosso redor lhes seja imposto pela nossa certeza de que tais coisas são elas
mesmas e não outras.
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido
Com a mudança de
cidade, mais uma vez meu universo de significação sofria drásticas
modificações. Morando com uma tia/segunda-mãe e dividindo o quarto com meu primo, a
literatura que me foi apresentada não só transloucava valores, mas também os
inaugurava no cerne das minhas constatações. A pergunta O que é literatura/arte? tornou-se uma indagação diária, as
conversas com os outros iniciados na ordem acadêmica seguiam múltiplos focos e
tudo contribuía para que em mim se desenvolvesse um gosto extremo pela
interdisciplinaridade consiliente. Fico pensando no que disse Ortega Y Gassete,
em A Rebelião das Massas:
Dantes os
homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou menos
sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser subsumido
por nenhuma dessas categorias. Não é um sábio porque ignora formalmente tudo
quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um ignorante porque é
um ‘homem de ciência’ e conhecesse muito bem a sua pequeníssima parcela do
universo. Temos que dizer que é um ‘sábio-ignorante’, coisa extremamente grave
porque significa que é um senhor que se comporta em todas as questões que
ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua
especialidade, é um sábio. (ORTEGA Y GASSET, 1987)
As
ideias de John Dewey sobre a arte, em Arte
como experiência, modificaram as minhas leituras do idealismo alemão
pós-kantiano, mais especificamente de Hegel, e dos textos que me chegaram nos
últimos meses da graduação. Os argumentos que fundamentam a base de Dewey são hegelianos,
pois evidenciam a obra de arte em seu caráter de obra material, sensível, que
“se expõe para”, e de arte trazida pelo “espírito”, ou seja, o “para-si e
em-si”. O que resulta do processo artístico de uma época, quando posto em um
pedestal enquanto cânon (medida), distante da vida comum e cotidiana, afasta-se
da experiência estética efetiva, sendo louvável como lembrete de que em sua
origem participara dos modos de ver e sentir dos indivíduos que o vivenciaram.
Até mesmo a obra de arte pode mudar de função, não perde seu valor, mas se
atualiza e, de certa forma, se afasta da experiência imediata. Para tratar do
afastamento, por mais dispare que possa parecer a referência, a Teologia da
Libertação e o lugar do Fator Religioso na sociedade moderna contribuíram para
o meu entendimento do que doravante chamarei Fator de Transcendência, ligado -
de forma direta - com a vivência e a razão sensível.
Por mais
que a sociedade se mundanize e, de certa forma, se mostre materialista, não
podemos negar que vigora uma volta do fator religioso, místico e esotérico nos
tempos atuais. Temos a impressão de que existe um cansaço pelo excesso de
racionalização e de funcionalização de nossas sociedades complexas. A volta do
religioso apenas revela que no ser humano há uma busca por algo maior. Há um
lado invisível no visível que gostaríamos de surpreender. Quem sabe não se
encontre lá um sentido secreto que sacia nossa busca incansável por algo que
não sabemos identificar. Nesse horizonte
não confessional quiçá faça sentido se falar do fator religioso ou do
espiritual. Ele sofreu todo tipo de ataque, mas conseguiu sobreviver. A
primeira modernidade o via como algo pré-moderno, um saber fantástico que deve
dar lugar ao saber positivo e crítico (Comte). Em seguida foi lido como uma
enfermidade: ópio, alienação e falsa consciência de quem ainda não se encontrou
ou caso se encontrou voltou a se perder
(Marx). Depois, foi interpretado como a ilusão da mente neurótica que busca
pacificar o desejo de proteção e tornar o mundo contraditório suportável
(Freud). Mais adiante, foi interpretado como uma realidade que pelo processo de
racionalização e de desencanto do mundo tende a desaparecer (Weber). Por fim,
alguns o tinham como algo sem sentido, pois seus discursos não têm objeto
verificável nem falsificável (Popper e Carnap). (BOFF, 2011)
Precisamos resgatar a
razão sensível. É bom que recordemos que, há milhões de anos, surgiu nos
mamíferos o cérebro límbico, responsável pelos sentimentos, relações afetivas,
cuidados com a prole, valores de grupo e pela comunicação oral, só
posteriormente se desenvolveu o cérebro neo-córtex que irrompeu com a
consciência reflexiva. Somos seres essencialmente híbridos, dotados de razão
lógico-instrumental e sensível, animais com autoconsciência, mas, ainda assim,
animais.
Do caos gerado pela
natureza híbrida, do contraste entre o pensado e o ininteligível, surge o Fator
de Transcendência. Hoje percebo que todas as minhas leituras e experiências
enquanto sujeito e leitor me levaram a essa concepção. A arte é natural do ser
humano assim como voar é natural às aves e nadar é natural aos peixes. É o
resultado comum dos conflitos internos de um sistema tão complexo quanto
possível.
No campo das artes o
Fator de Transcendência é o que Maria Zambrano, em uma obra dedicada à relação
da Filosofia e da Poesia, apontou como a “tentativa de expressar o
inexpressível”. A luta do indivíduo contra o impensado, sua busca por
exteriorizar o que não cabe em palavras. Em carta para seu tradutor italiano,
Guimarães Rosa explicita:
Quero
afirmar a você que, quando escrevi, não foi partindo de pressupostos
intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino’cerebral
deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos,
trabalho quase “mediúnico” e elaboração subconsciente. Depois, então, do livro
pronto e publicado, vim achando nele muita coisa; às vezes, coisas que se
haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente. (BIZZARI, 1981)
Nosso
olhar está sempre e imediatamente condicionado pelos valores culturais que nos
cercam desde os primeiros anos de vida, entendemos e interpretamos tudo a
partir desses valores, mensuramos as situações e as escolhas tendo por base as
indicações valorativas do nosso meio e, como diria Caeiro, estamos, de certa
forma, “doentes dos olhos”, fadados a uma visão limitada por esse
condicionamento. Combatemos o visível com o invisível e vice-versa, mas entre
mortos e feridos, como fruto do bom combate, sempre surge a vontade
transcendental, o impulso desbravador, e do caos de nós mesmos emerge o fator
de trindade (animal/racional/transcendental), o expurgo exteriorizador.
Lutando
contra o dualismo (História da Literatura/Vivência Literária) e, ao mesmo
tempo, estando perdidamente apaixonado pelas duas possibilidades, venho me
formando enquanto leitor e – agora - professor. Acredito que o ensino de arte
tem irrevogavelmente que passar pela noção de gosto, a experiência estética não
pode ser ensinada, mas pode ser apreendida, aprendida e mediada. Todos nós
somos capazes de sentir e, por conseguinte, estamos suscetíveis às
possibilidades do sensível.
CONSIDERA-AÇÕES
FINAIS
Como leitor, vivenciei
três experiências que se unem pelo contraste e pelo indivíduo: a primeira
literatura, aquela que antecedia a minha ideia de sujeito e que estava tão
entrelaçada com a minha própria medida que era - ela mesma - uma medida minha;
a segunda, mais impulsiva, um tanto mais estéril, profundamente enraizada no
radicalismo adolescente, e que já apontava características do que seriam as
minhas ideias de “adulto” sobre o tema; e a terceira, mas não a última, voltada
para uma visão mais aberta e polissêmica da literário, uma perspectiva
apreendida, que soma o “Bom costume” de Sexta-feira, em Robinson Crusoé, com as
leituras de teoria e crítica literária oriundas do estudo acadêmico. Dessa
forma, após uma breve revisitação do percurso, creio poder afirmar a tricotomia motriz
do meu Ser professor, leitor e sujeito pensante, onde os pilares que movem o
todo estão voltados para o pré-texto,
enquanto busca pela experiência sensível, pelo gosto autônomo dos alunos e o
pelo meu próprio; o com-texto, a partir da
ambientação histórico-social de toda uma tradição literária, e o texto, como eixo central do ensino,
unindo o instrumental ao emocional e trazendo para frente a vontade
transcendental, o medo e a coragem que se assume perante às fronteiras, a
instrução e a informação como ferramentas humanizadoras de fato.
Lucca Tartaglia está
onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios,
desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado
das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de
Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na
ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área
de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).
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