sexta-feira, 31 de outubro de 2014

ESTRADAS DA VIDA II. "Mulher ao volante".


                                                          I put my queer shoulder to the wheel.
                                                                                                  Allen Ginsberg.
                       
                                                          Her hand’s on the wheel, her hand’s in the air
                                                                                                   Hettie Jones.
  

Existem, em certos círculos acadêmicos, altas discussões sobre as formas e linguagens através das quais pessoas pertencentes a grupos subalternos ou subculturais “ressignificam” os tropos e narrativas heroicas da cultura ocidental moderna. Eu mesma venho participando destes debates, tendo-os trazido para  esta coluna quinzenal uma porção de vezes, com apontamentos sobre como podemos significar a aventura e a estrada - elementos frequentes nestas narrativas-  no feminino.

Num livro que é um belo exemplo da metodologia "trans-disciplinar "dos Estudos Culturais e contribuição fundamental para meu tema de hoje,  a estudiosa Katie Mills (2006) nos alerta para as nuances destes processos históricos de construção de caminhos "generificados".   Indo além de um certo "sentido comum" da academia, ela afirma que  precisamos rever a noção da exclusão das mulheres das práticas e mitos de mobilidade, que  na verdade reproduz uma falha corrente:  não consegue enxerga  experiências e contra-narrativas que, embora                                                                                                                       Imagem:  Graciele Iturbide.
menos visíveis ou audíveis, pulsam em frequências  que ouvidos e olhos mais afinados poderiam captar. Encontramos exemplos deste tipo nos casos estudados por mim: as vidas e as representações  das cowgirls do oeste norte-americano (já tematizadas aqui em datas anteriores),  a obra e vida das escritoras e artistas do círculo Beat.  São mulheres que se posicionavam de formas pouco convencionais perante os desafios da estrada. 
                                                                                                                                                                                              Imagem:  Graciele Iturbide
 
Nos casos que trago aqui, destacam-se questões  de história, representação e “cultura material”.   As vaqueiras  que participavam na vida da fronteira do oeste, por exemplo, dão uma boa dose de literalidade a outra metáfora que emerge  das minhas pesquisas sociológicas, pois a figura da amazona é um significante poderoso no imaginário ocidental,  e um que estimula e encontra abrigo em matrizes simbólicos divergentes* (Adelman & Knijnik, 2013). Por outro lado, Katie  Mills situa seu estudo  em fenômenos da história cultural do século XX norte-americano,  falando sobre a importância das estradas  e do acesso ao automóvel, elemento chave que permitiu aos Beats a tão almejada mobilidade numa época em que o “homem a cavalo” já retrocedia no tempo e começava a soar apenas como  mito folclórico.  Neste sentido, Mills nos convida a repensar as narrativas -  elaboradas desde os campos da literatura, do cinema e mesmo, por vezes, da televisão -   de mobilidade e como esta última é significada   .não só como liberdade (abstrata ou idealizada) mas principalmente como rebelião: “... os road stories do pós-guerra e da pós-modernidade oferecem não só a oportunidade de captar um pouco da automobilidade contemporânea senão também da revolução da autoridade entre as pessoas que se agarravam aos privilégios sociais da época anterior à guerra- uma hierarquia que não questionava o poder da riqueza ou dos mais antigos, nem tensionava os privilégios patriarcais ou raciais -  e aquelas que fizeram da história das estradas abertas da América, uma declaração de Independência"

Quem vem me seguindo por aqui sabe que venho examinando os modos em que escritoras Beat como Joyce Johnson, Bonnie Bremser e Diane di Prima abordam a mobilidade, a  liberdade e seus paradoxos, em obras de romance e memória.  Mais recentemente, a partir da convocação da Rita Felski (2003) de pensar novas metáforas de autoria feminina e me debruçando  sobre a poética de Hettie Jones , me ocorreu uma:  a metáfora de “mulher ao volante”,  que talvez condense o impulso poético que subjaz seu livro Drive, no qual - num gesto parecido ao da Felski- ,  a poeta  nos convoca a brincar com a convergência de metáforas de escrita e de autoria de vida.  Assim, a mão ao volante é a mesma que sustenta a caneta (ou digita no teclado), e o carro deixa de ser máquina objeto, máquina significado apenas veículo impessoal (ou mesmo representando a tecnologia, da qual por vezes se imagina o distanciamento das mulheres) tornando-se  veículo prenhe de desejos articulados no feminino, como nestes versos finais do seu poema “Ode to my car”:  Take me, friend,/onto life’s inviting byways, fold me into/your small roomy body, bear my luggage/my groceries, my precious children. Take me/surely to where I am now, in this perfectly /rounded silence, at this table of women,/writing.  Because of you, we can, and we do.

Eu diria que podemos, com Hettie Jones, pensar a noção de  [mulher] “ao volante”  na tensão criativa entre o literal e o metafórico.   Ela  nos convida a conduzir, a encontrar nosso movimento (corporal, individual, social e coletivo), ultrapassar barreiras sociais e culturais.  E conduzir é também, por vezes, comandar - quando necessário, e de preferência de formas que nunca se assemelharão  demais às  velhas formas autoritárias ou “patriarcais” arraigadas em quase todas as instituições sociais modernas.  Vale alertar também que Drive foi seu primeiro livro de poesia publicado. Contudo, saiu num momento em que Jones já era uma escritora madura, pelo que conseguiu reunir num volume  o trabalho de muitas décadas de vida.   A obra  foi premiada e seguida por mais dois belos livros de poesia desta mulher que, nascida em 1934, continua na ativa, construindo pontes entre pessoas que a partir de suas singularidades e diferenças, procurem  também as bases da aproximação.

E ofereço, para finalizar, este pequeno poema do livro Drive, traduzido por mim:

Ruby minha querida                       

A mulher no carro vermelho tem uma mão
ao volante e outra no ar

Ela mantém o ritmo da música
     do seu futuro
quer conhecê-lo
não quer ter nada a ver com ele
talvez ela conduza com velocidade suficiente
    para passar reto, reto mesmo

pelos estreitos muros do seu destino
derrubando todos com um golpe só
e passando por cima direto até
o paraíso

a mulher no carro vermelho


está pensando em viver para sempre
mas pensa também não pensar nisso

uma mão ao volante, outra mão no ar

   - Hettie Jones/tradução:  Miriam Adelman

  Imagem:  Graciele Iturbide























Imagens da fotográfa mexicana Graciela Iturbide.
 Consultem:  www.gracielaiturbide.org  e outros locais da web

 *Apontamos, no texto acima citado (Adelman & Knijnik, op.cit), o fascínio que existe sobre a mulher a cavalo dentro de um imaginário "masculinista" que hiper-sexualiza; em contraste, a figura da mítica amazona é frequentemente lida como símbolo do empoderamento feminino.

Referências: 

Adelman, M. & Knijnik, J.  "Introduction:  Women, Men and Horses - Looking at the Equestrian World Through a Gender Lens." Gender and Equestrian Sport:  Riding around the World. Springer, 2013. pp.1-14.

Felski, R  Literature after Feminism.  Chicago:  University of Chicago Press. 2003.
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Jones, H.  Drive. Brooklyn:  Hanging Loose Press. 1998.

Mills, K.  The Road Story and the Rebel:  Moving through Film, Fiction and Television. Carbondale:  Southern Illinois University Press. 2006.


Miriam Adelman é socióloga, tradutora, poeta e  - desde 2013-  aprendiz da arte fotográfica.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. .  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)


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