ESTRADAS DA VIDA II. "Mulher ao volante".
Allen Ginsberg.
Her hand’s on the wheel, her
hand’s in the air
Hettie Jones.
Existem, em certos círculos acadêmicos, altas discussões
sobre as formas e linguagens através das quais pessoas pertencentes a grupos
subalternos ou subculturais “ressignificam” os tropos e narrativas heroicas da
cultura ocidental moderna. Eu mesma venho participando destes debates, tendo-os trazido para esta coluna quinzenal uma porção de vezes, com apontamentos sobre como podemos significar a aventura e a estrada - elementos frequentes nestas narrativas- no feminino.
Num livro que é um belo exemplo da metodologia "trans-disciplinar "dos Estudos Culturais e contribuição fundamental para meu tema de hoje, a estudiosa Katie Mills (2006) nos alerta para as nuances destes processos históricos de construção de caminhos "generificados". Indo além de um certo "sentido comum" da academia, ela afirma que precisamos rever a noção da exclusão das mulheres das práticas e mitos de mobilidade, que na verdade reproduz uma falha corrente: não consegue enxerga experiências e contra-narrativas que, embora Imagem: Graciele Iturbide.
menos visíveis ou audíveis, pulsam em frequências que ouvidos e olhos mais afinados poderiam captar. Encontramos exemplos deste tipo nos casos estudados por mim: as vidas e as representações das cowgirls do oeste norte-americano (já tematizadas aqui em datas anteriores), a obra e vida das escritoras e artistas do círculo Beat. São mulheres que se posicionavam de formas pouco convencionais perante os desafios da estrada.
Num livro que é um belo exemplo da metodologia "trans-disciplinar "dos Estudos Culturais e contribuição fundamental para meu tema de hoje, a estudiosa Katie Mills (2006) nos alerta para as nuances destes processos históricos de construção de caminhos "generificados". Indo além de um certo "sentido comum" da academia, ela afirma que precisamos rever a noção da exclusão das mulheres das práticas e mitos de mobilidade, que na verdade reproduz uma falha corrente: não consegue enxerga experiências e contra-narrativas que, embora Imagem: Graciele Iturbide.
menos visíveis ou audíveis, pulsam em frequências que ouvidos e olhos mais afinados poderiam captar. Encontramos exemplos deste tipo nos casos estudados por mim: as vidas e as representações das cowgirls do oeste norte-americano (já tematizadas aqui em datas anteriores), a obra e vida das escritoras e artistas do círculo Beat. São mulheres que se posicionavam de formas pouco convencionais perante os desafios da estrada.
Imagem: Graciele Iturbide
Nos casos que trago aqui, destacam-se questões de história, representação e “cultura material”. As vaqueiras que participavam na vida da fronteira do oeste, por exemplo, dão uma boa dose de literalidade a outra metáfora que emerge das minhas pesquisas sociológicas, pois a figura da amazona é um significante poderoso no imaginário ocidental, e um que estimula e encontra abrigo em matrizes simbólicos divergentes* (Adelman & Knijnik, 2013). Por outro lado, Katie Mills situa seu estudo em fenômenos da história cultural do século XX norte-americano, falando sobre a importância das estradas e do acesso ao automóvel, elemento chave que permitiu aos Beats a tão almejada mobilidade numa época em que o “homem a cavalo” já retrocedia no tempo e começava a soar apenas como mito folclórico. Neste sentido, Mills nos convida a repensar as narrativas - elaboradas desde os campos da literatura, do cinema e mesmo, por vezes, da televisão - de mobilidade e como esta última é significada .não só como liberdade (abstrata ou idealizada) mas principalmente como rebelião: “... os road stories do pós-guerra e da pós-modernidade oferecem não só a oportunidade de captar um pouco da automobilidade contemporânea senão também da revolução da autoridade entre as pessoas que se agarravam aos privilégios sociais da época anterior à guerra- uma hierarquia que não questionava o poder da riqueza ou dos mais antigos, nem tensionava os privilégios patriarcais ou raciais - e aquelas que fizeram da história das estradas abertas da América, uma declaração de Independência".
Quem vem me seguindo por aqui sabe que venho examinando os modos em que escritoras Beat como Joyce Johnson, Bonnie Bremser e Diane di Prima abordam a mobilidade, a liberdade e seus paradoxos, em obras de romance e memória. Mais recentemente, a partir
da convocação da Rita Felski (2003) de pensar novas metáforas de autoria
feminina e me debruçando sobre a poética de Hettie Jones , me ocorreu uma: a metáfora de “mulher ao volante”, que talvez condense o
impulso poético que subjaz seu livro Drive, no qual - num gesto parecido ao da Felski- , a poeta nos convoca a brincar com a convergência de metáforas de escrita e
de autoria de vida. Assim, a mão ao volante é a mesma que sustenta a caneta (ou digita
no teclado), e o carro deixa de ser máquina objeto, máquina significado apenas
veículo impessoal (ou mesmo representando a tecnologia, da qual por vezes se imagina o distanciamento das mulheres) tornando-se veículo prenhe de desejos articulados no feminino, como nestes versos
finais do seu poema “Ode to my car”: Take me, friend,/onto life’s inviting
byways, fold me into/your small roomy body, bear my luggage/my groceries,
my precious children. Take me/surely to where I am now, in this perfectly
/rounded silence, at this table of women,/writing. Because of you, we can, and we do.
Eu diria que podemos, com Hettie
Jones, pensar a noção de [mulher] “ao volante” na tensão criativa entre o literal e o
metafórico. Ela nos convida a conduzir, a encontrar
nosso movimento (corporal, individual, social e coletivo), ultrapassar barreiras sociais e culturais. E conduzir é também, por vezes, comandar - quando necessário, e
de preferência de formas que nunca se assemelharão demais às velhas formas autoritárias ou “patriarcais” arraigadas em quase todas as instituições sociais modernas. Vale alertar também que Drive foi seu primeiro livro de poesia publicado. Contudo, saiu num momento em que Jones já era uma escritora madura, pelo que conseguiu reunir num volume o trabalho de muitas décadas de vida. A obra foi premiada e seguida por mais dois belos livros de poesia desta mulher que, nascida em 1934, continua na ativa, construindo pontes entre pessoas que a partir de suas singularidades e diferenças, procurem também as bases da aproximação.
E ofereço, para finalizar, este pequeno poema do livro Drive, traduzido por mim:
Ruby minha querida
A mulher no carro vermelho
tem uma mão
ao volante e outra no ar
Ela mantém o ritmo da música
do seu futuro
quer conhecê-lo
não quer ter nada a ver com
ele
talvez ela conduza com
velocidade suficiente
para passar reto, reto mesmo
pelos estreitos muros do seu
destino
derrubando todos com um golpe
só
e passando por cima direto
até
o paraíso
a mulher no carro vermelho
está pensando em viver para
sempre
mas pensa também não pensar
nisso
uma mão ao volante, outra mão
no ar
- Hettie Jones/tradução: Miriam Adelman
Imagens da fotográfa mexicana Graciela Iturbide.
Consultem: www.gracielaiturbide.org e outros locais da web
*Apontamos, no texto acima citado (Adelman & Knijnik, op.cit), o fascínio que existe sobre a mulher a cavalo dentro de um imaginário "masculinista" que hiper-sexualiza; em contraste, a figura da mítica amazona é frequentemente lida como símbolo do empoderamento feminino.
Adelman, M. & Knijnik, J. "Introduction: Women, Men and Horses - Looking at the Equestrian World Through a Gender Lens." Gender and Equestrian Sport: Riding around the World. Springer, 2013. pp.1-14.
Felski, R Literature after Feminism. Chicago: University of Chicago Press. 2003.
.
Jones, H. Drive. Brooklyn: Hanging Loose Press. 1998.
Mills, K. The Road Story and the Rebel: Moving through Film, Fiction and Television. Carbondale: Southern Illinois University Press. 2006.
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