sábado, 18 de outubro de 2014

FLORES DISPERSAS: AMOR E SOLIDÃO EM JÚLIA DA COSTA


"(...) No início do século 19, os romances de mulheres eram em grande parte autobiográficos. Uma das razões que as impulsionava era o desejo de descrever uma causa própria. Agora que este desejo não é mais tão imperioso, as mulheres começam a explorar o mundo das mulheres como nunca se escreveu antes, pois, até época bem recente, as mulheres na literatura eram certamente uma criação dos homens." (Virginia Woolf)

Nunca ouvistes as notas várias
Solitárias
Que solta mágica flauta
Quando a lua empalecida
Enternecida
Sobre as águas se retrata?
Tenho medo da vida e mocidade
Que me pulsa a ferver no coração!
Tenho pena do tempo que se escoa,
Tenho medo, meu Deus, da solidão!

Júlia da Costa deu continuidade a esta tradição da escrita autobiográfica a que se refere Virginia Woolf, pois no contexto em que viveu, a literatura foi seu único canal de expressão e de comunicação, durante uma vida marcada pelo amor não realizado, pelas limitações sociais impostas às mulheres, e pelos sentimentos de tristeza e solidão, como transparece nos versos acima. 

Considerada a primeira poetisa paranaense, nasceu em Paranaguá, litoral do Paraná, em 1º de julho de 1844, e faleceu em São Francisco do Sul, Santa Catarina, em 12 de julho de 1911. Além de poetisa foi escritora de crônicas-folhetins. Por conveniência e imposição familiar, casou-se  em 1871, com um homem rico e trinta anos mais velho, o Comendador Francisco da Costa Pereira, nascido na província do Minho, Portugal, e viúvo à época. Mas o amor de Júlia da Costa era o também poeta, Benjamin Carvoliva, com quem se correspondia quase que diariamente durante o namoro e, também depois de casada, através de cartas secretas.

                                      

Essas cartas eram colocadas em esconderijos diversos, tais como o oco de uma velha árvore. Em uma delas Júlia sugeriu que os dois fugissem, mas foi Carvoliva que fugiu provavelmente assustado com a ousadia da moça. Desiludida, Júlia passou a escrever de forma febril, poemas cada vez mais desesperançados e melancólicos. Começou a freqüentar serões e festas, e a pintar os cabelos de negro em uma época em que somente meretrizes e artistas o faziam. Além disso, passou a participar de campanhas políticas e a publicar em jornais e revistas, tornando-se uma lenda viva na pacata cidade em que vivia. 

Depois da morte do marido, a solidão se tornou cada vez maior, pois cessaram as festas que ele promovia, onde recebia catarinenses ilustres para banquetes e saraus, em um dos quais esteve presente o Visconde de Taunay. Viúva, já cansada das festas, Júlia fechou-se em casa com manias de perseguição. Durante o tempo em que permaneceu enclausurada, planejou escrever um romance e, para tanto, confeccionou painéis coloridos com cenas campesinas, interiores de lar e paisagens inspiradoras que espalhou pelas paredes. 

O espetáculo teatral “Flores Dispersas – Fragmentos da Vida e Obra da Poetisa Júlia da Costa”, com direção de Regina Bastos, é baseado na coletânea “Flores Dispersas”, publicada por Júlia da Costa entre 1867 e 1868. A peça revela a vida intensa, as paixões e os desencantos dessa que foi uma das primeiras representantes da poesia feminina paranaense. Segundo a diretora, “A vida dela é cheia de lendas. Pesquisamos nas fontes que consideramos mais seguras”.



A peça busca resgatar os grandes momentos da vida intensa de Júlia da Costa, conhecida como a poetisa das rosas. Uma mulher extraordinária que viveu intensamente a sua época. Considerada uma figura controvertida, forte, decidida e à frente de seu tempo, suas publicações no entanto, foram a público sob pseudônimos como Sonhadora, Americana e J.C. entre outros.

"Não era uma mulher bonita, porém muito elegante e assim, atraente. Sabia tocar piano e escrevia poesias. Era a poetisa da cidade e publicava muitos artigos nos jornais. Talvez fosse a única mulher pensante de toda São Francisco e por isso, era tão temida pelos homens. Uma mulher que entendia sobre política, que escrevia poesias e críticas nos jornais, que ousava nas roupas e pintava os cabelos, que defendia ferrenhamente a monarquia e o imperador era uma ameaça a qualquer homem em sã consciência. Talvez Carvoliva pensasse assim. Talvez Carvoliva fosse um grande covarde."
"Ele, por várias vezes, jurou amor eterno e dizia ser capaz de enfrentar os boatos da cidade maldosa para ficar com Júlia. Mentiras sinceras não interessam a Júlia. Ela era uma mulher firme, inteligente e não gostava de esperar e quando, por exceção, esperou Carvoliva por os riscos desse amor impossível no papel, decepcionou-se. Ele fugiu do destino como um rato. Patético e humilhante." 


Apesar de Júlia ter parado de escrever e perdido parte da visão depois do autoexílio, o tempo passado a quatro paredes – em que ela tinha somente a assistência de uma empregada, chegando a fechar as janelas com pedaços de madeira – não teria sido improdutivo. Foram encontradas depois de sua morte, colagens nas paredes, com muitas flores em papel seda, no que ela dizia ser uma antecipação para escrever a história de sua vida num romance, que infelizmente não se concretizou. 

Essa referência às colagens, é utilizada no espetáculo na forma de painéis translúcidos, em que Regina Bastos e seu marido, o premiado iluminador Beto Bruel, imprimiram imagens representando objetos e a mobília da época. Por trás e diante da tela, os atores representam cenas dos poemas e da vida de Júlia. “Como vamos nos apresentar em espaços onde talvez não haja um palco, fizemos uma instalação que inclui tela e iluminação”, diz a diretora. Outra detalhe particular é o de que a peça mantém a linguagem antiga do século 19, com trechos extraídos das obra e das cartas de amor da poetisa.


As cartas enviadas por ela foram encontradas pela pesquisadora Rosy Pinheiro Lima na década de 1950 com um neto do antigo namorado, no Rio de Janeiro. Já as cartas recebidas por Júlia desapareceram. Em uma frase certamente inspirada em sua experiência de vida, Júlia afirmou com ironia: “a inteligência é, de todos os fardos, o mais pesado para uma mulher”...


Serviço: “Flores Dispersas – Fragmentos da Vida e Obra da Poetisa Júlia da Costa”, com direção de Regina Bastos. De 16 a 26 de outubro, no Mini Auditório do Teatro Guaíra, em Curitiba.
Fotos: Ivan Ivanovick, Cido Marques e Enéas Lour (Divulgação da peça teatral "Flores Dispersas")
Referências:
Gomes, Roberto - "Julia".  Romance, publicado pela Editora Leitura de Belo Horizonte, MG: 2008.

                                       
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Izabel Liviski, é professora e fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisa História da Arte, Literatura e Artes Visuais. Escreve na Revista ContemporArtes desde 2009, editando a coluna INCONTROS quinzenalmente, é também co-editora da revista. 


1 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Belíssima história. O mais notável é que tanto a inteligência, quanto a solidão a que ela geralmente remete, ainda são fardos para qualquer um, não só para a mulher.

15 de outubro de 2014 às 15:02

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