sábado, 4 de outubro de 2014

RESISTÊNCIA


Nesta semana, a coluna Espaço do Leitor traz o conto Resistência de Jairo Barduni Filho, uma belíssima metáfora sobre a relação homem/ natureza, ou em termos antropologicamente corretos, entre natureza e cultura.

"Toda vez que o uivo cresce no peito, é hora de ecoar pelos ventos frios a dor de um caçador errante. Disseram que era um plano para mim, plano? Não creio em planos. Quem iria planejar tamanho infortúnio? A culpa é mesmo do homem, insípido caçador de si mesmo num outro alguém. Eterno incompleto de si, partes escondidas como artefatos soterrados, um refratário meu, e que eu nem queria que fosse. Só me sobra ser eu mesmo como meu pior parceiro, uma vilania muito bem conhecida e arquitetada pela minha pessoa.

Seu instinto agora não era mais do que a doce vontade de cuidar, queria unificar seu corpo ao do lindo outsider canino por um infinito momento cósmico. Queria elevar sua alma, sentir o cheiro limpo de suavidade. Quantos lobos estão perdidos e uivam em busca de seu companheiro. Ele achou achar sua pele gêmea em montanhas próximas. 



Certamente o medo do desconhecido lhe fez recuar em sua fome quase intempestiva, a postura do vizinho lhe desarmou completamente, um misto de desolamento com isolamento lhe comovera em sua assanhada caça noturna. Ao invés de avançar, resolveu observar, uma atenção que destoava de sua ansiedade cotidiana. Como posso me aproximar sem parecer fraco? Como um velho lobo como eu poderia ainda exercer alguma atração?

Eis o espelho de sua alma, sua fraqueza por alguns instantes estivera ali no seu focinho. Como se o reflexo da neve tivesse exposto sua última chance. Certo de que eram apenas os dois lobos escorraçados da matilha, a dor de não estar em bando lhe escorre a cada dia, mais em seu coração gelado expurga-se a sede ecoada através do uivo isolado, porém não menos assustador. 

É um lobo; é um lobo a procura de outro lobo; é um lobo tão bonito e tão experiente, porém incapaz de amar e ser amado pela matilha, tarde demais para lamúrias, porém, ainda assim é um lobo. Por isso és também um tolo animal em meio a imensidão viva da neve que captura suas pegadas espalhadas, bem marcadas a perder de vista.


Todos ali já sabem quem é aquele aparente belo lobo, tão visível entre os demais, e tão invisível em si mesmo, mas ninguém o conhecia melhor que ele mesmo. Mesmo recebendo a visita constante do forasteiro ele não parou de sofrer com sua condição de solidão. A felicidade não estava em ter o outro, mas sim ter a si próprio que, ele ainda não tinha. Não bastava se sustentar tinha de saber o motivo de estar ali sentido tudo aquilo. Talvez por não conseguir dominar a vida, ele se sinta tão metade, e ele já fora bom na arte de seduzir, porém, algo estava errado, sua pelagem talvez não estivesse reluzindo como já fora em outros invernos. 

Acho que nem mesmo de enfeite serviria uma pele gasta em atuais circunstâncias. As tonalidades cinza têm ficado cada vez mais carcomidas e desfiadas por entre vultosas tundras geladas. O vento é afiado! Uma navalha na vida de um ser vivo perdido na imensidão do gelo. Será o começo do fim, o começo do declinar de um pobre animal banido? A faca do caçador peregrino, decapitando sua efêmera beleza em meio à imensidão branca das montanhas. 

Decrépito animal condenado a sumir da paisagem fofa e desértica. E se esta faca fosse do seu companheiro? Daí então já se sabe como é a dor. És tão misterioso, mas tão doce que vá lá saber o que se esconde por trás daquela pelagem atraente. Eles possuem sempre belos olhos, e este tende a ser um engano perigoso e necessário. Já tentara descobrir quem seria o outro? É certo que tentaste. Quase obteve sucesso, porém, fora impelido em sua tentativa. E se sentiu mal depois disso. 

Sentiu que teve seu coração repelido, e ele só desejava rolar na neve em brincadeiras de morder, derrubar o grande e belo desconhecido no covil, unir seu corpo ao dele entre os ossos das vítimas. Acabou levando a pior. Bem feito! Pensou depois do insucesso: quem manda nutrir a sede nesta idade? Já era hora de criar prudência em lidar com novidades.

Mas este era o seu mal, sempre muito destemido e desajeitado, sempre muito arteiro, nunca desanimou de tentar, sempre quis experimentar, até quando ele pudesse sustentar um determinado modo se ser. Mas agora ele anda colhendo mais desilusões do que sucessos. O tempo de vida tem lhe jogado na cara suas armadilhas mais secretas. Seu ego desmanchara frente ao imperioso ambiente. Quem era ele para fazer pose em meio à grandeza da escultural natureza. 



Cansado, entristecido, com os olhos opacos de tentar sobreviver em meio ao inesperado cenário já trilhado, deseja fugir com talvez sua novidade para outro lugar, caminhar noites após noites pelas tundras em busca de terras mais afáveis. Deixar tudo para trás? Sempre fora assim mesmo, sempre destruiria velhas lembranças. Era hora de tentar destruir velhos planos alheios. Precisava agora apenas de uma novidade, com suas boas e más intenções.

Pouca coisa muda no horizonte, somente a neve se acumula nas copas das árvores, e, por vezes cai em cima de mais neve que desliza sobre mais e mais neve. O tempo passa, o cenário vai ficando vazio, e, ocorre apenas mais um sonho, um cálido adormecer de alma em meio à imensidão esbranquiçada. Todo heroísmo merece descansar em paz, e é preciso ser herói para ser você mesmo. Toda vez que a tempestade se intensifica, um de nós tende a desaparecer na paisagem, porém, ainda era tempo de uma última cartada de resistência. E se der certo?"


Jairo Barduni Filho nasceu em Visconde do Rio Branco, em 1981. Formado em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Mestre em Extensão Rural do Departamento de Economia Rural na UFV e Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente é professor do Departamento de Educação da UFV. Também é formado em técnico de artes cênicas pelo projeto solidário de teatro da UFV.
Contato: rfbarduni@yahoo.com.br





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